Relato
PARTE I
Era uma sexta-feira chuvosa, daquelas típicas de fevereiro, com o Carnaval batendo à porta. Saí do trabalho e fui direto pra casa do Sérgio, meu parceiro de viagem. Íamos juntos — mais uma vez — para São Thomé das Letras.
Mas o clima, tanto fora quanto dentro de mim, não ajudava em nada. A chuva caía sem parar, meu coração apertado remoía um fora recente de uma menina que eu gostava, e o Sérgio, pessimista como nunca, insistia que algo ruim ia acontecer. Ele nunca tinha encarado uma viagem longa dirigindo e estava visivelmente nervoso.
Mesmo assim, fomos. Cinco horas de estrada sob chuva pesada até chegarmos em Três Corações. A cidade me trouxe de volta memórias de uma viagem anterior — aquela em que fui mais ou menos preso, e na qual fiz uma promessa a Deus: não fumar mais maconha. E desde aquele dia, juro, eu vinha cumprindo. Foi difícil, principalmente convivendo com uma galera que inovava diariamente na arte de chapar. Era chá no narguilé, água gelada, palha de milho, seda colorida, cachimbo artesanal… fumavam pra ensaiar com a banda, pra ver filme, ouvir som ou só bater papo. Era como se tudo girasse em torno da cannabis. Mas eu resistia. Havia prometido, e promessa é promessa.
Chegamos à estrada de terra que leva até São Thomé lá pelas dez da manhã. Estava intransitável. Ficamos horas atolados no barro, enquanto um caminhão tentava ajudar outros carros. Minha mente oscilava entre a frustração amorosa da noite anterior e a expectativa (ou seria esperança?) de achar cogumelos nessa viagem.
Quando finalmente chegamos na cidade de pedras, tudo parecia igual: os hippies, o vinho barato, a gente simples, as pedras molhadas… a mesma São Thomé. Nos hospedamos num quartinho mofado com frases pixadas na porta:
“Não fume cigarros, pois pulmões você tem apenas dois. Fume maconha pois neurônios você tem milhões.”
“Why drink and drive if I can smoke and fly?”
O Sérgio estava chocado com tudo aquilo. Nunca tinha visto tanta gente esquisita junta. Nunca tinha ficado num muquifo daquele. Eu ria por dentro. Lá estava ele, o menino certinho, perdido no caos místico de São Thomé — ao lado de mim, o Mininu du Matu, que não sabia se estava se iluminando ou só despertando uma esquizofrenia latente. Mas o que eu queria mesmo era que o sol abrisse logo pra sair por aí atrás de uns cogumelos.
O Sérgio reclamava de tudo: a chuva, o povo, a cidade, o quarto, o cansaço. Saímos pra dar uma volta. Mesmo com o tempo fechado, a cidade estava cheia. Acho que ele esperava encontrar um lugar místico, cheio de gente elevada, em busca de espiritualidade. Encontrou um bando de malucos bêbados, tocando Raul Seixas e fumando baseado.
E lá estava eu, entre a caretice do Sérgio e a loucura da cidade, sem poder fumar, sem vontade de beber, e com medo de não encontrar nem um mísero cogumelo.
Mas São Thomé, com ou sem Harry Potter, tem algo que mexe com a gente. De vez em quando vinha um bem-estar inexplicável. Outras vezes, um vazio. Ondas de sensação. Uma espécie de desespero manso: “o que eu tô fazendo aqui?” — seguido de “nossa, como é bom estar aqui.” Talvez nas viagens anteriores eu nunca tivesse sentido isso por estar sempre chapado.
Fomos até o Cruzeiro, lá em cima, no meio das pedras. Ali, o bem-estar era mais forte. Tudo fazia sentido: o vento, o frio, a vista. Seguimos até a pirâmide — que, na real, é só uma construção de pedras com teto em forma piramidal, mas que virou ponto de encontro dos mais doidos: maconha, cola, vinho, violão, devaneio.
Sentamos ali por um tempo. Muita gente falando, rindo. Até que uma voz se destacou:
“…bola de cristal, duende, bruxa, vassoura… essas coisas eu num acredito! Só acredito no meu Jesus Cristo e na minha Virgi Maria!”
Na hora, sorri. Há poucos dias eu tinha chegado a uma conclusão parecida. Não sobre a Virgem Maria, mas sobre essa sede desmedida por misticismo. Até escrevi um artigo num fórum, intitulado:
Mamãe… Quero Ser Harry Potter!
Olá!
Bom… quero falar sobre uma coisa que tenho certeza que um monte de gente não vai gostar:
“Até onde vale a pena procurar ‘ampliar a consciência’?”
Quero dizer, claro que deve ser bom montar numa vassoura e sair voando, ou ler a mente de um mané, ver o futuro numa bola de cristal e fazer sexo com os sentidos ampliados, mas e aí?
O fato é que com essa onda de Nova Era, as pessoas andam buscando uma espiritualidade que no fundo me parece apenas estética e vazia.
Uma vez uma profeta orou pra mim e Deus falou: “eu permito, mas não é assim que deves me buscar”. Foi exatamente na época em que eu tava viajando nessa coisa de chakras e “superpoderes”… e aí, numa bela viagem de cogumelo, eu cheguei a conclusão que eu tô aqui nesse mundo material para aprender a viver nele. O espiritual tem a sua hora. Minhas vidas passadas apenas me trouxeram até aqui, e o futuro é indeciso e cheio de possibilidades… o importante é o aqui e agora!
Não estou dizendo que não exista essas coisas, mas me pergunto: até onde este é o caminho?
Decidimos sair da pirâmide, mas estava começando a chover forte. Íamos sair na chuva mesmo, até que o cara que havia falado de Jesus Cristo e Virgem Maria me pediu um cigarro. Ele estava bêbado. Dei o cigarro e ele falou:
- Aí, ocê é meu irmão! Ocê tem um bom coração.
- Tsc… quê isso. Cigarro e água não se nega… - falei meio sem saber o que dizer.
Ele olhou bem nos meus olhos e falou:
- Se um dia ocê tivé comendo um lanche e vê um cachorro perto d’ocê, num espera ele pidi não. Oferece um pedaço. Os cachorro também é fio de Deus. O cachorro num vai pidi pr’ocê porque ele num sabe falar. Ocê é que tem que dar o pedaço do teu pão pra ele.
- É verdade.
- Hoje é ocê que tá me dando um cigarro. Amanhã a gente tá se encontrando por aí e ocê num tem um cigarro. Aí eu te dou um cigarro. As coisa é assim meu irmão! Tem que ter coração! Amor no coração! - disse com as duas mãos no lado esquerdo do peito e com um sorriso que era banguelo mas não vazio ou amarelo.
Ele pegou uma garrafa, deu um gole e falou:
- Toma um gole de pinga.
- Nem… tô sossegado…
Ofereceu para o Sérgio também, mas o Sérgio não quis. Era interessante o jeito que ele falava. Era com vontade. Seu olhar não era interesseiro e suas palavras não eram decoradas. Tive certeza que eu estava frente a um homem santo. Bêbado mas santo. Ele falou apontando para o horizonte verde que era lavado pelo céu:
- Olha isso aí! É tudo criação do nosso Pai. Ele deu isso pra todo mundo. Ele é o criador disso tudo! Cê vê como ele é bondoso?
- É… - aí eu já me empolguei, afinal, assuntos espirituais muito me interessam, mas geralmente não tenho com quem falar. Continuei - e é engraçado que uns querem ter mais que outros sendo que no final nada é de ninguém.
Ele pegou em seu próprio braço e falou:
- Isso aqui é pó! A matéria num é nada! Nóis é espírito!
Ele deu um sorriso que eu entendi como: “você entende o que eu tô dizendo”. Depois foi pra fora da pirâmide, onde chovia. Lá ele bebeu a água da chuva que escorria de uma pedra da pirâmide e depois falou:
- Essa água tá toda cheia de micróbio, mas eu num ligo! Eu num vou ficá doente porque eu também sô parte da natureza! Tem que ter fé meu irmão! Com fé não existe doença.
- É… e quando cê morre o pó do teu corpo volta pra natureza. Tu faz parte da terra.
Sorriu e disse:
- Cê vê. A gente acabou de se conhecer, mas parece que a gente já se conhece há muito tempo né não?
- É… a gente já se conhece de espírito.
- Podiscrê! Tá vendo aí! Ocê é meu irmão! Nossos ispírito se bateu!
- Irmão de espírito, né não? - falei ainda sem saber o que dizer.
Ele sorria. Me sentia bem conversando com ele. Era alguém que parecia que entendia o que eu falava e eu também entendia o que ele falava. Algumas coisas do espírito são difíceis de explicar, mas nossa conversa não tinha palavras difíceis e exprimia umas coisas profundas. Seu nome era Vitor mas era conhecido por Titio. Ele havia vindo de Varginha/MG com seu amigo Lourencinho.
- Tá vendo aquele ali ó! - disse apontando para seu amigo que falava com um outro pessoal - ele sabe muito mais que eu. Ele tem muita coisa pra ensinar. Muito mais que eu!
O Lourencinho era meio louco da cabeça. Ele era mais teatral, isso é, representava tudo que falava. Era também mais divertido e prático. Conhecia São Thomé muito bem e se encarregava de conseguir pinga para eles tomarem. Ele era menos filosófico que o Titio. Eu ficava olhando. Ele só zoava o tempo todo! Era meio confuso seu jeito de falar, apesar de ter um coração do tamanho do mundo. Não entendi direito o que ele tanto tinha para ensinar. Achei que o Titio apenas estava sendo humilde ao dizer que o Lourencinho sabia mais da vida que ele próprio.
O Titio chamou o Lourencinho e falou pra ele:
- Aí! Esse é meu irmão! - disse apontando para mim - acabei de conhecer, mas parece que a gente se conhece há muito tempo! - depois olhou pra mim e falou novamente - o Lourencinho é inteligente! Ele toma pinga, fuma maconha, toma chá. Ele é loucão, mas tem um monte pra ensinar.
Então fiquei batendo um papo com o Lourencinho, não porque estava interessado apenas em aprender com o Titio ou com ele. Estava apenas lá querendo papear e conhecer pessoas. Enquanto isso o Sérgio falava com o Titio, mas eu não acompanhei o diálogo dos dois.
E o Lourencinho era eufórico e divertido! Falava rápido sempre interpretando com as expressões faciais ou com as mãos o que falava. Ele pegou uma pedra que estava na parede da pirâmide e falou:
- Quando a gente tem um pobrema - disse apontando para o buraco que ficou na parede depois de tirar a pedra - a gente tenta tapar ele - aí ele pegou uma outra pedra da parede e colocou no buraco que havia aberto. Apontou para o novo buraco que havia ficado na parede e concluiu - mas aí fica um outro buraco para ser tapado. E a gente vai tirando a pedra de um lugar para tapar um buraco, mas aí abre outro, e tira, e põe, e tira… nunca acaba!
Não entendi o que ele realmente quis dizer com aquilo. Nem sei se foi exatamente isso que ele disse. Depois ainda falou sobre Varginha, o local onde eles moravam. Disse que sua família era rica, mas no entanto ele gostava mesmo era de andar como andava: livre e improvisando a arte de viver. Aí falou novamente interpretando:
- Ocê entra no bar. Só de ocê pedir uma pinga o cara já te atende mal e num vê a hora de ocê ir embora porque ocê tá sujo e fedendo e vai assustar a freguesia. Mas se ocê tá bem arrumadinho e pede uma cerveja aí o cara te trata bem e puxa conversa. Cê vê como é as coisa? Memo com dinheiro no bolso pra pagar a pinga ocê tem que andar bem arrumadinho pra ser bem atendido.
Era mesmo verdade isso que ela falava. Mas porque afinal de contas ele estava dizendo isso?
Só de ver seu jeito espontâneo de falar e interpretar as coisas eu já podia entender o que realmente o Titio havia dito: o Lourencinho sabia ser feliz. Sabia ser espontâneo e sincero. Ele não tinha vergonha. Era como uma criança esperta e cheia de admiração pela vida. Um cara que achava o mundo dos homens uma coisa muito estranha. Um cara que sabia ser feliz e não entendia porque o mundo é tão complicado. Era um cara que cantava em voz alta e desafinada:
Dizem que sou louco
Por eu ser assim
Se eu sou muito louco
Por eu ser feliz
Mais louco é quem me diz
Que não é feliz
Não é feliz
Puxa, não posso negar que no momento em que me recordo e escrevo essas coisas, uma saudade me atormenta! Como eu gostaria de poder bater um papo com aqueles caras novamente!
Então após me infiltrar no mundo do Lourencinho o Titio falou:
- Agora todo mundo apaga o cigarro por favor. Eu quero fazer uma oração.
Os turistas que estavam lá não entenderam o porquê daquilo, mas mesmo assim quem tinha cigarro aceso ou jogou fora ou apagou. Então o Titio se ajoelhou no chão, abriu os braços e, olhando para o céu, rezou Ave Maria… mas em francês. Achei muito bonita a devoção e fé que ele tinha. Olhava para o céu, mas não era o céu. Ele ficava imerso num infinito nada e rezava. E apesar de eu não entender francês, podia entender o que dizia através do seu tom de voz. Era algo que nunca vi em igreja nenhuma. Não é o pastor que empina o peito e grita “glória Deus”, mas um cara sem o mínimo de vaidade, taxado de bebum louco por muitos que estavam lá na pirâmide. Era um cara vestido em roupas simples, sem nenhum traço de vaidade visível! Um cara que antes de terminar a oração colocava as duas mãos no lado esquerdo do peito e dava um sorriso para a Virgem Maria que ele tanto acreditava. Não havia levitações, milagres, vassouras voadoras ou bolas de cristal. Havia um ser humano ali na minha frente. Um ser humano que aceitava a idéia de ser humano e que ao invés de ficar numa busca pelo sobrenatural sabia o que era viver nesse mundinho real. E agradecia Deus por isso.
Quando a chuva cessou nós fomos saindo da pirâmide. O Titio abriu os braços, respirou fundo e falou:
- Olha isso tudo. Isso é a maravilha de Deus! Criador e criatura.
- Podecrer… e acho que vai até abrir um sol né não?
- Mas e se não abrir um sol? Isso tudo vai continuar sendo maravilha de Deus! Criador e criatura. Qual é a criatura que pode questionar o criador? O nome já diz: criador e criatura. Qual é a criatura que vai reclamar do que faz o criador?
Vixi. Aquilo veio bem no meu osso, pois estava numa fase ruim em que andava questionando Deus em um monte de coisa. Principalmente me perguntava do porquê ele não falar comigo. Caraio. Bastava ele falar: “aí cara, eu sei que você existe” que meu mundo seria outro. Mas até isso ele me negava! Ficava lá quietão. Eu começava a cogitar a possibilidade de não existir Deus nenhum. Aí pensava com meus botões: “caraio… eu tô ferrado! O mundo espiritual é uma mentira e o mundo material é uma porcaria”. Não cheguei a pensar em me suicidar, mas era uma sensação de total desamparo. Me sentia sozinho no escuro. Mas de repente o que eu presenciava vendo aquele indivíduo maltrapilho era algo que transcendia essas coisas. Um tipo de fé não intelectualizada. Não sei bem o que me cativava, mas tinha certeza de estar diante de um homem santo.
Eu falei:
- Pô cara! Acho que entendo o que tu diz! Pena que o resto do mundo não saiba apreciar isso tudo né não?
- Mas se tu sabe, então vai! Seja um profeta meu irmão! Grite alto! Fale tudo pra todos! Não escolha para quem falar, vai ver que é pra isso que tu tá vivo!
Ele falou isso e eu pensei que tinha tanto medo de dizer minhas opiniões para as pessoas, preocupado com o que poderiam pensar de mim. Aí olhava ele: não era um indivíduo lá muito apresentável, mas não se importava com o que pensavam dele.
Voltamos eu e o Sérgio para a cidade. O Titio e o Lourencinho ficaram na pirâmide pois eles estavam dormindo por lá e, além disso, havia chegado uns caras com uma garrafa de pinga. Eu e o Sérgio conversamos um pouco. Eu estava entusiasmado com a figura que havia conhecido. Tinha certeza que havia algo de muito santo e precioso naquele cara apesar de seu jeito maluco. Definitivamente não é o tipo de guru espiritual que se espera encontrar, mas para mim ele era sua santidade O Profetão Bêbado.
Já na cidade nós decidimos que compraríamos um vinho e levaríamos para eles. Aí realmente compramos, mas começou a chover novamente, e também já começava a escurecer. Subir nas pedras seria muito foda. Eu comecei a dar umas goladas no vinho enquanto ficamos se escondendo da chuva, andando pela cidade e olhando as lojinhas de coisas místicas. Numa mini-galeria havia alguns quadros pintados. Fiquei apreciando enquanto o Sérgio entrou numa loja. Um quadro de um elefante com cores muito fortes me chamou atenção.
Entrei na loja em que o Sérgio havia entrado. Haviam vários trabalhos de pintura. As assinaturas eram as mesmas do quadro do elefante. Bacana, estava frente ao pintor psicodélico. E ele falava com o Sérgio sobre um tal de Osho. Eu estava meio alterado pelo vinho e entrei de gaiato na conversa. Na verdade “a conversa” não existia porque era só o cara que falava. Dizia sobre experiências transcendentais, sobre Osho, uma muié que fumava um charuto para poder se manter no chão. Falava que Jesus ter andando nas águas não foi nada, pois na Índia isso é muito comum. Dizia que o conhecimento de Jesus não era quase nada perto do conhecimento transcendental de Osho. Falava de Nietzche, Schopenhauer. Aí eu ia perguntar alguma coisa mas ele não respondia e ficava falando e falando. Vomitava palavras decoradas dos trocentos livros que já leu por aí. Eu não sentia sinceridade e coração em suas palavras, e ficava bebendo e bebendo enquanto ele falava. E o cara dizia que fora iluminado quando o mestre dele deu um soco no peito dele e falou que freqüentava o Daime e…
Ôpa! Daime?!
- Por aqui tem algum centro do Daime? - perguntei.
Ele falou rapidamente para eu me informar num certo local e então voltou a falar sobre o Osho e sua doutrina. Ah… agora podia falar a vontade de Oshos e coxos! Agora eu estava mesmo era pensando em me informar sobre o Santo Daime e ver se tinha a oportunidade de usar a tão falada “ayahuasca”. O Sérgio voltou para a hospedagem, e eu fui ver o negócio do Daime no local que o cara falou.
Que bosta… só haveria outra reunião em julho… voltei para a hospedagem. O Sérgio estava dormindo. Eu tomei uns comprimidos de kava kava e acabei com a garrafa de vinho ao som de Velvet Underground. Fumei muitos cigarros enquanto ficava da janela olhando a chuva cair. Eu estava bem, mas não digo que estava contente. Pow… a menina que me deu o fora ainda não havia saído da minha cabeça, o tempo parecia que não ia abrir e as possibilidades de achar cogumelos no dia seguinte me pareciam remotas. Além disso, estava fechado com minha promessa de não fumar maconha.
Eu sentei na cama, olhei para o teto e falei:
- Pô Deus. Agora quero bater um papo contigo. Vem cá. Ó, eu cumpri minha parte da promessa apesar de ter assinado o tal do dezesseis… mas e agora, de que adianta? Vê essa garrafa de vinho? Tá seca! Vê que ando tomando um monte de kava kava? Pois é… tu bem que poderia me dar um sinal e me deixar fumar maconha, que tal?
Abri uma bíblia que havia levado comigo. Estava escrito que Deus falava para um cara comer um tal de um passarinho, mas o cara falava: “ow… Deus, mas esse bicho é impuro!” aí Deus falava “mas se sou eu que estou falando para você comer, quem é você para dizer que é impuro?” Se não me engano é uma passagem do livro de Atos.
Pude imaginar a conversa:
- Rapaz, fuma aí sua maconha!
- Mas senhor, eu havia prometido que pararia com isso. Não seria certo eu quebrar a minha promessa.
- Se eu estou falando para você quebrar a tua promessa, quem é você para mantê-la?
- Yuppie!! Então enrola um aí pra nóis Senhor!!
Mas então achei que aquilo era muito bom pra ser verdade. Fechei a bíblia e abri de novo, mas desta vez não saiu nada que me desse alguma resposta. Falei:
- Ok, se eu tiver que continuar nessa minha abstinência tu me dá um sinal, senão amanhã eu volto a fumar meu baseadinho.
Aí fumei mais um cigarro e fiquei olhando a janela. O muquifo em que estávamos ficava ao lado de um bar, num sobrado. Lá da janela era possível ficar olhando as pessoas passando na rua lá embaixo. Muita gente bêbada andando e umas gotinhas de chuva caindo. A noite estava um pouco fria. Deus não havia dado nenhum sinal. A chuva continuava caindo na cidadezinha como sempre… que angustia que eu sentia… será que devia quebrar minha promessa? Uma voz dizia: “claro, afinal Deus nem te livrou do dezesseis e nem te deu um sinal”, mas outra dizia: “você prometeu… agora já foi!”
- Ow Deus… tu não vai dar nenhum sinal?
Não deu.
Então tá certo. Foda-se. Passe livre para fumar maconha!
Fui dormir alcoolizado. Amanhã seria um novo dia. Seria um Green Day. Boa noite.
PARTE II
Então era domingo! Acordei com um pouco de ressaca pela beberagem do dia anterior. Eu e o Sérgio fomos tomar café. Ai ai… que moça mais linda que atendia lá na padaria. E que aliança mais horrorosa em seu dedo!! Ela era tão simpática. Nessa altura do campeonato eu já havia esquecido um pouco do meu coração partido e do fora que havia tomado na sexta-feira. Estava mais tranqüilo.
Então compramos um vinho e fomos seguindo em direção às pedras. Fui levando a minha máquina fotográfica no pescoço e a garrafa de vinho na mão. Era meio complicado de subir nas pedras carregando o vinho e protegendo a máquina de bater nas pedras, mas para mim aquele era meu território! Estava novamente em casa! No meio das pedras e da vegetação de cerrado. Infinitos pastos se escondiam por trás da neblina branca no horizonte. Ali, tão perto do céu eu era novamente o Mininu du Matu. E quando estava ali em meu território eu era outra pessoa. Ficava um bicho ágil e destemido e não o garotinho tímido e triste sob o ar-condicionado no escritório. Ali eu pulava e não tinha medo da natureza, pois nós tínhamos um relacionamento íntimo. Nós nos conhecíamos e pedra alguma era capaz de me derrubar mesmo eu estando alcoolizado, segurando uma garrafa de vinho e uma máquina fotográfica.
Fui seguindo levemente alcoolizado por entre abismos e cactos. Apreciando a natureza e eternizando em fotografias a vida manifesta em suas flores exóticas. E tudo resplandecia apesar da neblina. O vento era forte e bagunçava meu cabelo. Mas o Mininu du Matu não se preocupa com penteados.
De repente começou a cair uns pingos anunciando mais uma chuva. Eu me sentia bem, mas o Sérgio estava meio gripado então resolvemos ficar um pouco no mirante, que era coberto e podia nos dar uma certa proteção da chuva.
Depois de uma meia hora esperando a chuva diminuir seu ritmo continuamos a caminhar pelas pedras rumo à pirâmide. Quando estávamos no cruzeiro o Sérgio teve problemas com a máquina fotográfica dele e resolveu voltar para a cidade. Falei para ele que eu estaria na pirâmide e continuei andando e levando a garrafa de vinho, que agora já estava pela metade. A chuva cessava e eu sentia que a água estava evaporando, pois o tempo ficou um pouco abafado. O dia não tinha aberto, mas estava um pouco mais quente.
Chegando na pirâmide encontrei o Titio, o Lourencinho e mais um discípulo deles. Era um outro maluco que não cheguei a saber o nome. Só sei que não tinha onde ficar e estava dormindo lá na pirâmide também. Era um cara discreto, mas parecia ser muito gente boa. Acabei falando muito pouco com ele.
- E aí meu irmão! - disse o Lourencinho.
- E aê! - ali eu deixava de ser o Mininu du Matu e voltava a ser tímido como sempre - ow.. trouxe um vinho aí pra nóis. Já tomei um pouco mas dá pra gente terminar com ele.
O Lourencinho pegou e tomou um gole, misturou com pinga, tomou pinga pura, ofereceu para o pessoal e tudo ficou bem. O Titio estava um pouco mais bêbado que no dia anterior, mas se os bêbados são mais sinceros, então o que dizer de um cara que ao beber só fala sobre paz e amor? Claro que ele tava bem loucão e às vezes acabava me fazendo ficar envergonhado. Uma turista tava lá e ele chegou nela e falou:
- Tá vendo esse aqui? - apontando para mim - esse aqui é meu irmão! Ó… nóis se conhecemo onti, mas parece que a gente já se conhece há muito tempo!
- Vocês até são parecidos né? - ela falou brincando.
- Ó! Aí! Tá vendo só! A gente até é parecido! - ele olhou para ela e falou dando risada - só a diferença é que ele ainda tem dente, né não?
A pirâmide estava num clima muito alegre e ora ou outra o Titio falava para eu descruzar os braços e abrir o coração. Eu não entendia o que queria dizer com aquilo. E o pior é que ele não era o primeiro a me dizer isso! Na época em que eu ia na igreja evangélica com minha mãe eu já tinha ouvido outras duas ou três profecias que me diziam para abrir o tal do coração. Mas oras, o que seria na verdade abrir o coração? Era isso que eu não entendia! O que era abrir a porra do coração? Enfiar um bisturi no peito e deixar tudo sangrar?
Então apareceu um cara com um violão. Ele tocava muito bem, mas era muito tímido. Por ser tão discreto ninguém nem o notava. Aí eu me sentei perto dele e fiquei ouvindo ele tocar Wish You Were Here. Ele solou a música direitinho e também cantou direitinho. Achei aquilo muito bacana. Ele me passou o violão e eu toquei alguma coisa sem cantar. Só toquei. Era bom compartilhar um violão no anonimato, mas aí o cara foi embora e eu voltei a ficar lá só vadiando e batendo um papo com o Titio. Ele agora preparava um cigarro de palha. Ele gritou:
- Ô Lourencinho, ô Lourencinho! Pega a pinga aí pra nóis!
Ele deu uma golada e depois me deu sua pinga. Dessa vez eu tomei. Brrr… mas só um golinho! Tá louco! Queimou tudo! Fiquei conversando com o Titio e num determinado momento falei que tava afins de fumar maconha. Na mesma hora ele foi pra fora da pirâmide e já me chamou. Chegou num pessoal e falou:
- Ow… tem como deixar meu irmão aqui fumar c’oceis?
- Ôpa… podi crê… fuma aí…
- Esse aí é meu irmão! Conheci ele ontem, mas nosso espírito se bateu! Parece que a gente já se conhece há muito tempo!
- Podi crê… ô pega aí, fuma aí…
Olhei para aquele baseado na minha mão. Há quanto tempo hein? Pensei que ia ser mais dolorido quebrar minha promessa, mas não foi um bicho de sete cabeças não sinhô. A fumaça veio me invadindo na primeira tragada. O gosto adocicado da maconha me inebriando, meu corpo foi se tornando leve, fui inspirando mais fumaça, mais, não agüentava mais fumaça… prendi. Quieto. Dava para segurar um pouco mais. Levantei a cabeça. Não dava mais! Precisava de oxigênio. Expirei lentamente… então respirei normalmente umas duas vezes e logo em seguida mais um tapa no baseado. Os olhos cirrados. Uma luta para tragar o máximo que podia, inspirei com vontade, o corpo foi ficando cada vez mais leve, o pulmão ia pesando, mais, mais, mais um pouco, um pouquinho ainda mais, deixei a coluna ereta e estufei a barriga para meu diafragma descer e sobrar um espaço livre para meus pulmões se expandirem um pouco mais. Mais, mais. Não cabia mais. Segurei a fumaça e passei o baseado. Segurei mais ainda. Soltei um pouco de fumaça e inspirei oxigênio por cima, soltei mais um pouco e inspirei novamente, e fui indo nesse ciclo até estar com os pulmões vazios novamente. Pronto. Quebrei a promessa. Estou muito louco! Já eras, fumei maconha, Senhor!
As vozes distantes ecoavam novamente em meus ouvido. Meus sentidos estavam novamente ampliados. As pessoas que me deram o baseado me perguntaram de onde era e pra onde ia. Conseguia me comunicar. Nada mal. Uma bonita garota que estava no meio desse pessoal parecia me olhar, mas talvez fosse apenas impressão. Era melhor nem pensar nisso aquela hora. Agora queria apenas aproveitar Mary Jane. O pessoal dizia que numa cidade vizinha ia ter uma rave. Eu falei que o céu ia abrir e se Deus quisesse ia rolar uns cogumelos. Um cara falava que via um cogumelo lá num pasto perdido no horizonte. “O cara tá querendo me zoar ou tá querendo parecer engraçado?” - pensei. Concluí - “Ora… não sei… fumei maconha”. Dei risada.
Então a partir daqui não me lembro da ordem cronológica dos fatos, mas isso também não muda em nada. Sei que a parte de cima da pirâmide havia secado. Um pessoal ficava lá em cima conversando e fumando. O pessoal que me arrumou o baseado subiu também. Então eu o Titio também fomos. Fiquei com medo dele, já que ele estava bem alcoolizado e não era o Mininu du Matu. Eu estava bem chapado e o vi subir. Fiquei preocupado, mas foi sem problemas. Então foi minha vez. Subi numa boa.
Uau… lá estava eu em cima da pirâmide chapado de maconha novamente! Fiquei um tempo tentando conversar com os caras que falavam da rave e o Titio foi para o outro lado da pirâmide junto com o Lourencinho, o discípulo deles e mais uma galera maluca. Ali entre o pessoal que eu estava todos se encontravam bem alterados. Falávamos pouco. Eles eram estranhos e me causavam paranóia. Me sentia muito inferior à eles, pois para mim eles eram “gente moderna” que sai pra balada e estão sempre “ficando” com alguém… eu era um mané capira vindo de um mundinho sem agitação ou muito movimento, a não ser o movimento de cores na cabeça. Eu era um careta drogado. Um quadrado que gostava de cogumelos… aquela paranóia me incomodou e então resolvi ir para onde estava o Lourencinho, o Titio e o resto do pessoal.
Lá em cima o Titio me trouxe um outro baseado. Agora um inteiro. Acendi o negócio e fiquei fumando. Lá longe vi que o Sérgio vinha chegando por entre as pedras.
Ele chegou, mas acho que nem percebeu que eu havia fumado. Para acabar com qualquer dúvida na cabeça eu resolvi falar: “pois é… fumei maconha”. Ele não respondeu nada. Ficamos lá conversando e então apareceu o Titio com mais maconha. Ofereceu para o Sérgio, mas ele não quis. Ficamos fumando mais e batendo papo.
Sob o efeito da erva o Titio me dava uma impressão ainda mais forte dele ser um profetão. O jeito que falava e as coisas que falava não eram tendenciosas ou mundanas. O tempo todo estava a falar sobre paz e amor. Num certo momento, como se soubesse da minha promessa quebrada, ele disse:
- Não tem problema fumar maconha. Ocê não pode é fazer mal pra ninguém, mas fumar maconha não é pecado.
- Podiscrê.
Então apareceu o Lourencinho. Me chamava atenção a união entre os dois. Eram carne e unha. Quando o Lourencinho não estava por perto o Titio ficava o procurando por todo canto. Um negócio bonito de se ver. Lembro de uma vez que o Lourencinho falou:
- Eu aprendo um monte com o Titio e ele aprende um monte comigo.
- É boa a troca de idéia de informações né? - eu disse, como se fosse um bom entendedor, mas ele respondeu:
- Não é troca de informações, é amizade.
Achei isso demais.
Num certo momento o Titio me falou:
- Cê é psicólogo né não?
- Eu? Sou nada cara!
- Cê é inteligente. Já pensou um dia você escreve um livro: “o mendigo e o burguês”?
- Quê! Eu nem sou burguês! Sô mó chinelão!
Ele deu um sorriso. Ele sabia que eu não era burguês e sabia que ele não era mendigo. Mas confesso que apesar de eu não ser burguês e ele não ser mendigo, em algum nível era assim que eu me sentia. Eu era o rapaz de óculos aprendendo com o vagabundo iluminado. Eu tava lá todo limpinho com cara de otário intelectual aprendendo com um cara todo sujo que realmente parecia um mendigo. E acho que ele sabia que eu estava pensando isso.
O Titio foi uma figura misteriosa. Outro fato que me marcou foi quando o Lourencinho pediu minha máquina para tirar uma foto de todo mundo junto. Acontece que o Lourencinho estava trêbado. Eu tive medo de ele detonar a máquina que eu tanto estimava, mas nem demonstrei meu medo e entreguei na mão dele. Depois que ele bateu a foto o Titio olhou pra mim e falou:
- Tá vendo. Não precisava se preocupar eu tava o tempo todo olhando ele.
Mas como? Eu nem tinha dito nada! Outra vez ainda ele olhou para o Sérgio sem ele falar nada. Então disse:
- Que isso rapaz! Tira esse preconceito do teu coração!
Aí olhou pra mim e falou:
- E ocê tem que abrir teu coração! Descruza esses braços! Abre eles e respira bem fundo. Sente o ar. Sente a vida!
Mas acontece que o Sérgio realmente estava com certos preconceitos desde que havia chegado na cidade. Ele tinha um certo medo de ver toda aquela gente louca. Não queria se misturar. Ficava muito quieto. E eu? Ora, na época que eu era evangélico e ia pra igreja vieram até profecias me dizendo para abrir o coração. Acontece que eu não sabia o que era na verdade abrir o coração. Tive que encontrar um profeta bebum para aprender o que é abrir o coração. E era tão simples. Era absorver a vida em sua plenitude. Sentir o vento. Aceitar idéias. Aceitar as coisas. Era simplesmente aceitar as coisas. Não criar resistência. Aceitar. Um coração aberto é um coração receptivo à vida. Livre de timidez, preconceitos, egoísmo e tudo. Isso era um coração aberto!! Então era isso!!
Num certo momento o Titio apontou para o céu e falou:
- Óia só… olha pro céu agora e faz um pedido. Mas com vontade mesmo. Com fé.
Eu não tinha o que pedir, mas a fé do Titio me impressionava. E não era fingimento. Eu convivo com o fingimento e sei as diferenças entre alguém que finge sentir algo e alguém que realmente sente algo. Ali não havia fingimento ou vaidade. Não era alguém querendo falar bonito ou dar uma de santo.
Outra coisa que me chamou a atenção foi a forma com que o Titio ia juntando as pessoas e fazendo uma espécie de corrente: ele chegava em alguém, apontava para o Lourencinho e dizia algo como “esse é meu irmão”. Então ia conversando sobre paz e amor (assunto que todos sabem um pouco) e apresentava a pessoa que acabara de conhecer a um outro desconhecido. Essa era a forma com que agia. Se era uma forma intencional ou intuitiva eu não sei.
Era realmente um sujeito misterioso…
Sei que então, depois de um tempo lá com o pessoal da pirâmide, resolvi sair dali e dar uma volta pelas pedras sozinho. Saí divagando, fumando cigarros e tal… o sol estava abrindo! Nice day for a mushroom hunting! Encontrei o Sérgio e sugeri de irmos caçar cogumelos.
Descemos até a cachoeira da Eubiose parando de pasto em pasto e não achamos nada. Num certo pasto em que paramos vi um cara falando que não sei onde poderia ter uns cogumelos… ficamos conversando e o Sérgio sugeriu de dar uma carona para ele. Seu nome era Corélio ou Coré. Sei lá…
Entramos no carro e o Coré tava falando sua história. Também falava de uns tais cogumelos bem azuis que havia encontrado uma vez. Depois falou que era daimista e que tinha um fumo ali pra gente pitar. Ôba! Se é pra quebrar a abstinência canabilística que seja com estilo! Paramos num pasto, caçamos cogumelos mas nada… nessa altura do campeonato eu havia achado apenas um cubensis e um monte de cogumelo falsificado. Então fomos para perto de um riozinho que passava num pasto e eu e o Coré fumamos um baseadinho ali. Me senti bem. Era um fumo de boa qualidade. Ficamos papeando e depois resolvemos ir mais pra frente para achar cogumelos e também visitar algumas cachoeiras.
Após conhecer um monte de cachoeiras com o Coré, eu e o Sérgio voltamos para o nosso muquifo. Eu deixei o único cogumelo que achei curtindo com mel em um copo e fui tomar banho.
Depois do banho tomei meu cogumelo com mel e falei para o Sérgio que ia dar umas voltas. Subi até as pedras e lá encontrei o Lourencinho, o Titio e mais um pessoal. O Lourencinho estava chorando como uma criança. Aquilo me partiu o coração. E fiquei ainda mais puto quando fiquei sabendo que foi a polícia que tinha batido nele. O que aconteceu foi o seguinte: os policiais subiram até a pirâmide e por eles estarem mal vestidos pensou que eles eram mendigos ou coisa parecida. Então empurraram o Titio, e nisso o Lourencinho pediu para não fazerem isso. Então deram um soco no olho dele. A tristeza no olhar do Titio. As lágrimas do Lourencinho. Triste demais. Fomos seguindo para a cidade. Chegamos em frente à um bar e como tinha um real paguei uma pinga pra eles. Depois voltei ao muquifo.
Chegando no quarto o Sérgio me perguntou como eu me sentia, já que os efeitos do cogumelo deveriam se manifestar. Minha resposta foi apenas:
PARTE III
No dia seguinte não teve nada de especial. Eu e o Sérgio fomos procurar mais cogumelos, mas não tivemos sucesso.
Gritamos num vale para ouvirmos o eco de nossa voz e fomos visitar a Ladeira do Amendoim, onde o carro sobe sozinho devido ao magnetismo das rochas. E também fomos para o Vale das Borboletas, onde não tinha nenhuma borboleta. Lá eu nem entrei na água, mas fiquei andando pelas pedras e conhecendo o local.
Durante à tarde eu e o Sérgio fomos ver o sol se pôr e tirar fotos. No caminho para subir até as pedras um cachorro começou a nos seguir. O apelidamos de Thomé e da tarde até a noite ele passou a ser um grande companheiro de viagem. Lá em cima da pirâmide, segundo o Sérgio, dava para ver a curva do vento. O que me chamou a atenção foi ver densas nuvens chovendo em um pasto enquanto um raio de sol iluminava um outro pasto. O céu visto da pirâmide é algo inacreditável, pois a visão é de 360° graus. Esse foi o dia que me rendeu as melhores fotos que eu já tirei.
Então depois que o sol foi embora nós voltamos para a cidade lá embaixo para comer alguma coisa. Quando escureceu o céu estava limpo e dava para ver as estrelas brilharem, então fomos guiados pelo Thomé novamente até as pedras. Era legal notar que mesmo na escuridão as pedras pareciam brilhar. Encontramos um argentino e ele falava enrolado. Num certo momento ele bateu uma pedra na outra e vi sair fogo. E saía mesmo! Ao chocar uma pedra contra a outra surgia um fogo, uma faísca. Aquilo era bonito.
Então seguimos até a pirâmide. Lá ouvíamos uns malucos chapados de várias coisas cantarem um rap:
Você que cheira cola
Deixou o saquinho no chão
Os mano pisa sem vê
E te chama de vacilão
Se você cheirou sua cola
Leve o seu saquinho embora
Ou alguma coisa parecida.
Depois tentamos ir até o mirante, pois sabíamos que lá encontraríamos o Titio e o Lourencinho. Mas acontece que estava tudo muito escuro. Fomos novamente para a cidade. Lá uma mulher me pediu um cigarro, e depois me apareceu uma menina com a qual eu tinha trocado uns olhares umas horas antes. Ela estava meio bêbada e dizia para sua amiga careca:
Eu olhei pra ela, dei um sorriso e vi ela falando de seu problema. Dizia estar confusa, pois tinha dois rapazes que gostavam dela, e em cada menino tinha algo que ela gostava. Perguntei seu nome. Brenda. Ela disse:
- Ai, o que eu faço? Gosto de dois meninos, mas não sei com quem eu fico!
Eu olhei nos olhos dela e disse:
- Eu ficaria comigo!
- Ah não!! Três não!
Já era noite. Fomos num barzinho perto das pedras onde rolava um som ao vivo. A Brenda e sua amiga careca desapareceram em meio a um monte de gente. Por um tempo procurei por elas, mas depois desisti. Fiquei fumando e comprei uma garrafa de vinho. Aquele ambiente muito tumultuado me desanimava. Pensei em procurar pela tal da menina mais um pouco, mas desisti. Tava a fim de dar uns beijos, mas ao mesmo tempo, meu desejo era só sair do meio de todo aquele barulho de som alto e gente bêbada. Mas acontece que eu é que estava bêbado e acho que ela gostava de todo aquele barulho. Fiquei sentado na calçada. Um punk de um olho só sentou perto de mim.
- Vai um gole aí de vinho?
- Quero não… tô tomando pinga - respondeu o punk.
Ficamos lá conversando sobre música, eu fiquei pensando no olhar da tal da Brenda e bebendo. Nunca mais vi a menina.
Na manhã seguinte já era dia de ir embora. Estava de ressaca e cansado. Fomos na padaria tomar um café antes de pegar a estrada. Lá encontramos o Lourencinho e o Titio. Eles também estavam de saída e então daríamos carona à eles. Tiramos umas fotos da igreja e então entramos no carro e fomos… o Lourencinho dizia que no dia anterior tinha achado um monte de cogumelo.
Fomos numa boa ouvindo Raul Seixas. O Titio falava coisas bacanas. Falava sobre caminhos. Deu um terço de lembrança ao Sérgio e uma imagenzinha para mim. Achei bonito aquilo e guardei na minha carteira. Levamos os dois até a rodoviária de Três Corações e de lá seguimos nossa viagem para São Paulo. Estávamos muito empolgados com tudo que havíamos vivenciado. Minha mente agora estava nas palavras ditas pelo Titio, estava no carinho do cachorro Thomé, estava nas pedras que pegavam fogo, nos cogumelos que não achei, na tal da Brenda com quem não fiquei. Minha cabeça estava feliz. Meus pés estavam em uma lagoa e eu pensava nos carros atolados, nos dias nublados, nas promessas quebradas e em todas as coisas que deram erradas durante a viagem… olhei o céu azul lá fora e achei graça disso tudo.