Tropeçando Pelo Infinito

Memórias de uma jornada através dos estados alterados de consciência

Introdução

A consciência focada e o pensamento linear são estratégias de sobrevivência. Huxley fala disso de maneira hábil e precisa em seu ensaio Portas da Percepção.

Mas para resumir aqui de maneira rápida e geral: se diante de um tigre, ficarmos admirando as belas listras pretas e alaranjadas de seus pelos, seu olhar feroz e imponente ou suas patas afiadas, seremos mortos.

É preciso reduzir a percepção do todo e focar apenas no que importa: lidar com aquela fera e dar um jeito de sobreviver.

Nosso corpo e mente são capazes de perceber muito mais do que percebemos no dia a dia com a consciência comum, focada e ordinária. Mas essa percepção é limitada e filtrada pela necessidade pura e simples de sobrevivência.

Em outras palavras, a consciência dirigida limita a amplitude da percepção, estreita o contato com o infinito que nos cerca. É como dizem em algumas mitologias: os mortais não podem olhar diretamente para Deus, pois se o fizerem ficarão cegos.

Ainda assim, nosso espírito sente saudades do infinito. Queremos dar uma espiada. Ver um pouco da luz que se esconde por trás das vendas que colocamos em nós mesmos para seguirmos vivos e funcionais.

Talvez seja esse o impulso que move tantos de nós: a vontade de explorar os sonhos, os mistérios e os estados alterados de consciência.

Essa busca, profunda e instintiva, se manifesta de muitas formas.

Alguns fazem jejuns ou dietas extremas. Tem gente que passa dias, meses, anos em retiros religiosos. Outros exploram os sonhos lúcidos e viagens fora do corpo. Há quem desenvolva práticas intensas de respiração ou concentração, mantras, cânticos, exaustão física e mental. E há aqueles, como eu, que encontram nas substâncias psicoativas um caminho rápido, arriscado — mas efetivo — para abrir essas frestas, voando com os dois pés para arrombar as portas da percepção.

Drogas?

São relatos de experiências com drogas? Talvez — mas também talvez não.
“Drogas” é um termo genérico, assustador, usado para descrever coisas muito distintas. Não existem “drogas” de maneira homogênea. Existem o cacto San Pedro, a Salvia Divinorum, os cogumelos, as sementes de Argyréia. Existem também a cocaína, o crack, a heroína — substâncias que não conheço e sobre as quais não falarei.

Cada planta e cada molécula carrega uma personalidade, uma história, um espírito diferente. Falar de “drogas” como quem fala de uma coisa única é como discutir frutas sem distinguir um abacaxi de uma mexerica.

Por isso não gosto da palavra “drogas”. Outras palavras como “expansores de consciência” também me soam enganosas: há vezes em que não se expande nada, só se confunde. Quase me agrada o termo “plantas de poder”, mas também acho impreciso — às vezes não é a planta, é a alma dela capturada em um comprimido. Está tudo bem. A própria Maria Sabina, na Sierra Mazateca, ao tomar comprimidos de psilocibina isolados, falou para Gordon Wasson e Hoffman que sim, a alma de seus niños santos estava ali na pílula mágica.

Quando preciso generalizar, prefiro termos neutros: substâncias psicoativas, substâncias alteradoras de consciência.

Simples, honesto, sem defender nem acusar.

Repressão

A história da repressão às substâncias é longa, complexa, e acessível a quem quiser buscá-la em livros e documentários. Não pretendo discutir isso aqui.

Só quero deixar claro um ponto: o problema não está nas substâncias. Está na relação que estabelecemos com elas.

Quando usadas para fugir da realidade ou anestesiar a dor, tornam-se armadilhas.

Quando usadas para ampliar, ou melhor, modificar a percepção e investigar outros ângulos da existência, podem se tornar espelhos, mestres, catalisadores.

Não se trata de fazer apologias ingênuas nem de advogar o uso irrestrito. É preciso respeito, informação, e um tanto de coragem.

As substâncias podem iluminar caminhos ou precipitar quedas. Mas reprimi-las, silenciá-las, tratá-las apenas como ameaça, é amputar uma parte ancestral da experiência humana: a saudade de se reconectar com o infinito.

Minha busca

Durante anos, entre erros, acertos e muita curiosidade, busquei essa conexão — principalmente nas plantas e nos fungos.

Esta coletânea é o relato honesto dessa travessia: sem o glamour da Nova Era, sem a condenação moralista, sem o distanciamento acadêmico. Apenas um testemunho real, escrito por alguém movido, acima de tudo por curiosidade.

Não era busca de cura, nem de Deus, nem de fuga, nem de conforto. Bom, às vezes pode ter sido tudo isso. Mas, olhando para trás, acho que era mesmo a pura curiosidade que me conduzia.

Os relatos que você lerá foram escritos em momentos distintos da vida, e trazem as marcas dessas fases: ora mais ingênuo, ora mais lúgubre, ora mais esperançoso.
Por honestidade, optei por preservá-los como foram registrados — são documentos vivos de um caminho real, não de um caminho idealizado. Não tem jornada do herói, mas relendo e reorganizando, vejo que sim, tem amadurecimento em todos os níveis, desde a maneira de relatar, até a qualidade das reflexões surgidas nas experiências. Portanto, peço paciência se os primeiros relatos soarem meio bobos. Talvez soem mesmo, mas sinto que simplesmente não poderia negá-los, mesmo que isso custe um pouco a qualidade do material compilado.

Sinceramente, ao reler certas passagens antigas, sinto quase vergonha — pela ingenuidade, pelos vícios de linguagem, pela quantidade de cigarros que eu fumava, pela soberba juvenil de quem acreditava compreender o mistério da vida. Ainda assim, decidi não apagar nada: mesmo as imperfeições fazem parte da jornada.

Não me siga!

Escrevo como quem partilha uma travessia, e não como quem ensina o caminho.

Não sou cientista, nem mestre, nem exemplo de qualquer coisa. Não busco conduzir, salvar, nem defender qualquer verdade absoluta — apenas apresentar os registros do que vi, do que senti, e de como integrei essas coisas em minha vida.

Cada experiência relatada aqui nasceu de um impulso íntimo, movido pela curiosidade e pela sede de mistério, não por qualquer fórmula de evolução pessoal.

As viagens, os medos, as pequenas descobertas que preenchem estas páginas são fragmentos de uma conversa silenciosa com as plantas, as substâncias, e sobretudo comigo mesmo. O que você encontrará nestes relatos é apenas isso: um diário sincero, escrito sem a pretensão de ser mais do que é.

Vivemos hoje cercados por discursos sofisticados sobre psicodélicos, espiritualidade e estados alterados de consciência — fórmulas de cura, métodos de autoconhecimento, promessas de transcendência. Mas minha intenção aqui é outra, talvez mais simples e talvez mais antiga: dar testemunho da experiência vivida, com seus tropeços e deslumbramentos, sem armaduras, sem firulas.

Nos anos 90 e 2000, quando participei de fóruns e comunidades do submundo da Internet, era comum encontrar esse tipo de relato cru: uma partilha direta, entre iguais, sem pretensão de doutrinar ou salvar. Falo um pouco mais sobre isso no último relato desse material (Retorno ao Salviaspace).

Foi nesse espírito que comecei, e é nesse espírito que desejo continuar.

Se alguma página deste livro puder tocar um coração, despertar um olhar mais atento para o mistério da existência, ou simplesmente semear respeito pela força invisível que sustenta a vida — então já terá cumprido sua função.

No fim das contas, esta coletânea é apenas isso: fragmento de memória de alguns caminhos tortos que segui, enquanto buscava pelo infinito.

Organização dos Relatos

Para organizar os relatos de maneira que façam sentido cronologicamente, mas que não se tornem monótonos, estruturei a coleção em partes, como se segue:

Parte I — Primeiras Experiências: obsessão pelos estados alterados de consciência

Relatos de 2001–2002

No início dos anos 2000 eu era apenas um jovem curioso, imprudente, cheio de pressa e vontade de viver tudo de uma vez. Tinha vinte anos, trabalhava e estudava a sério, mas em fim de semana sempre estava lá fumando mais do que deveria e tentando encontrar alguma saída para a sensação de que o mundo visível não era tudo.
As experiências desta fase são cheias de ingenuidade e deslumbramento — mas também de uma coragem quase tola. Cada pequena experimentação, e cada viagem à São Tomé das Letras parecia abrir um universo inteiro de possibilidades.

Parte II — Fronteiras Perigosas: quando tudo é levado a sério demais

Relatos de 2002

Aqui surgem algumas experiências mais difíceis — surtos de paranoia, sensações de dissolução da identidade, um contato precoce com a instabilidade da mente. Terminar o ano de 2002 com a cabeça no lugar foi uma vitória. O deslumbramento despretensioso deu lugar a um tipo meio estranho de espiritualidade esquizofrênica. Nessa época, eu comecei a perceber que atravessar portais de consciência não era apenas encantador: podia ser desconcertante, arriscado e profundamente desestruturador. Talvez eu não percebesse muito bem o que estava acontecendo, mas olhando para trás, acho mesmo que andei por um fio.

Parte III — Uso Recreativo: entre o ordinário e o extraordinário

Relatos de 2003-2005

Nessa época a vida parecia estar entrando nos trilhos. Estava namorando, cursando a faculdade, entusiasmado com o trabalho. A espiritualidade dava lugar a sonhos de carreira e vida adulta. Os ecos da busca antiga surgiam de maneira leve e despreocupada — como uma limonada roxa feita de cogumelos, em uma tarde meio perdida no tempo.

Parte IV — Despedidas: quando as portas se fecham

Relatos de 2011–2012

Depois de 2005, me afastei quase totalmente das substâncias, com exceção de algumas experiências breves, mas marcantes, com a Salvia — que ganharam uma parte exclusiva neste livro. Quando retomei alguns trabalhos, a sensação era clara: antigos ciclos se encerravam. Esses relatos são despedidas de mestres invisíveis, de velhas formas de caminhar pelo mistério, e talvez, de uma fase inteira da vida.

Parte V — Cerimônias: sob os ritos do sol e da chuva

Relatos de 2013

Em 2013, nasceu minha filha — e com ela, nasceu também um outro modo de buscar o sagrado. Fiz algumas experiências dentro de rituais tradicionais, com outros seres humanos ao redor, em rodas, em círculos.
Por algum tempo a relação com as plantas se tornou mais cerimoniosa, mais consciente do coletivo, da responsabilidade, da força silenciosa que sustenta a vida.

Parte VI — Problemas: vida adulta e sobrevivência

Relatos de 2013–2016, 2023

Com a vida adulta consolidada — filha para criar, trabalho para sustentar a casa — o uso das plantas mudou de novo. Deixaram de ser portas para o “além” e se tornaram apoios discretos para atravessar o “aqui”.
Esses relatos falam de um uso mais discreto, mas igualmente reverente das substâncias — e de um respeito renovado pela força misteriosa que elas carregam, mesmo quando silenciosas.

Parte VII — Salviaspace: fora do tempo

Relatos de 2005, 2006, 2011, 2023

A Salvia Divinorum sempre foi uma exceção. Enquanto as outras plantas pareciam obedecer a alguma lógica de crescimento ou de fases da vida, a Salvia sempre falava de outro tempo — um tempo dobrado, líquido, alienígena. Um tempo fora do tempo. Por isso esta parte não segue a linha cronológica. Nesta seção, reuni todos os relatos dessa planta misteriosa e caótica, que nunca coube direito no mundo normal, nem na linha reta da vida.

Parte I - Primeiras Experiências: obsessão pelos estados alterados de consciência

Relatos de 2001–2002

Tem coisa que não tenho certeza se começa de maneira gradual, pouco a pouco, ou se começa com grandes saltos quânticos, do 0 ao 100 em 2 segundos. Só sei que em algum momento, sem muita cerimônia, a realidade me deu sinais de que poderia ser mais plástica, mais ampla, mais misteriosa do que parecia.

Meu interesse pelos estados alterados de consciência começou cedo.

Na infância, eu via minha mãe participando de cultos pentecostais, onde pessoas gritavam, falavam em línguas estranhas, profetizavam e relatavam visões e sonhos. Tudo aquilo fazia o mundo parecer carregado de mistério. Ao mesmo tempo, ouvia meu irmão mais velho e seus amigos contando histórias sobre noites de bebedeira em festas punk — relatos de excessos, risadas e caos.

Alterações da consciência, seja pelos caminhos da fé, seja pelas noites de festa, sempre pareceram algo curioso e atraente. Sem perceber, cresci cercado pela ideia de que a realidade podia ser algo mais elástica e interessante do que o normal sugeria.

Em algum ponto, perdi o encanto pelo cristianismo e me interessei pelas religiões orientais, pela filosofia e pela contracultura que absorvia das conversas sobre rock que aconteciam à minha volta. Foi nesse espírito que, pesquisando sobre Syd Barrett em um fórum na internet, ouvi pela primeira vez falar sobre a kava-kava — uma planta das ilhas Fiji usada para promover relaxamento e socialização.

Descobri que o extrato da planta era vendido como ansiolítico e que estava ao meu alcance.

Do kava-kava para o interesse por outras substâncias foi um pulo. Mas não foi um caminho de influência de “más companhias” ou rebeldia cega. Foi um processo espontâneo, movido pela curiosidade e pela busca do mistério — onde transgressão e religiosidade caminhavam, de algum modo, lado a lado.

Esses primeiros relatos foram escritos num tempo em que eu ainda viajava de forma leve e deslumbrada, meio sem saber aonde ia. Havia entusiasmo, alguma imprudência, e um encantamento genuíno com as primeiras pequenas revoluções interiores.

[2001-07-02] - OUTRO DESSES FINS DE SEMANA ORDINÁRIOS

(Julho de 2001)

Então, no sábado, deixei o relógio para despertar às 9:00 da manhã, pois teria um grande dia pela frente.

Bah… grande merda deixar o relógio para as nove. Foi ele gritar no meu ouvido e eu dei um tapão nele e voltei a dormir até às 13:00 horas. Lá se foi metade do meu dia! Mas tudo bem: agora estava descansado de uma semana de muito trabalho…

Acordei, escovei os dentes, tomei um café preto para tirar o cheiro de sono da boca e, do jeito que acordei, fui para uma loja de produtos para bichos e plantas. Esses pet shops por aí…

Comprei terra, um vaso, roubei areia de um lugar que estava em construção e voltei para casa.

Misturei a terra com a areia conforme havia sido alertado pelo Pitângoras (meu pé de pitanga) em um sonho uns dias atrás. Replantei a planta no novo solo, que agora drenaria melhor a água e melhoraria a formação das folhas.

Com o outro vaso que comprei, separei a Maria da Joana, minhas outras plantinhas… especiais.

Tudo isso me pareceu um movimento positivo para elas.

Depois tomei um banho e resolvi andar. Era um daqueles sábados de sol em que você não tem muito o que fazer e resolve sair andando… Fui até o centro de Barueri, tomei tintura de kava-kava e fiquei “legalzinho”. Aí vi uns cartazes de um tal de “Universo em Desencanto” e uma tal de “Cultura Racional”. Os seguidores dessa cultura ficavam todos vestidos de branco. Pensei:

“Podiscrê! Quero ver qual é desses racionais aí. Vou bater papo furado!”

Enquanto olhava os cartazes, fumava um cigarro e sentia o efeito da kava-kava relaxando meu corpo e limpando meus pensamentos. Foi quando apareceu um cara de branco:

– Pode ler isso aí que desenvolve o raciocínio. – Podiscrê – respondi, e perguntei: – Ei… por que é “universo em desencanto”? – Porque se descobre de onde vem e pra onde vai.

Ele foi até um cartaz e começou a explicar sobre um tal de “supermundo de origem”, falou da evolução e de mais um monte de coisas… Enquanto ele falava, mostrei uns textos que eu tinha escrito sob efeito de maconha:

– Esses textos eu escrevi sob uma inspiração externa a mim…

Fui lendo o texto e o cara foi ouvindo com cuidado. Pediu para tirar uma cópia. Não sei se achava que podia ser alguma mensagem que o racional superior mandou pra mim, já que o texto tinha lá um tom meio religioso e profético. Enquanto uma mulher foi copiar o texto numa papelaria, ele me disse:

– Isso é um chamado! Você tem que comprar o livro da Cultura Racional.

Expliquei que, na verdade, o texto fazia uma crítica ao racionalismo puro:

Deus não seria apenas conhecimento. Para mantermos a cabeça em equilíbrio, a razão e a emoção deveriam coexistir, pois a razão sem encantamento destrói, e a emoção sem razão conduz à tolice.

O cara não gostou muito, mas eu também não insistiria. Falei:

– Você conhece o Tim Maia Racional? Ele participou dessa cultura, né?

Ele confirmou, mas comentou:

– O Tim Maia bitolou. Antes da cultura ele fumava maconha em todo lugar… as drogas são um problema.

Aí precisei intervir:

– Existem drogas e drogas, né?

– Ah, sim… falo desses ácidos, cocaína e tal… já usei muito disso. São problema.

– O problema são os excessos. Ou você acha que um baseadinho ou um chazinho de cogumelo de vez em quando vai matar alguém? Existem pessoas e pessoas. Para mim, só serve para adicionar.

Ele me perguntou se eu já tinha lido Carlos Castañeda.

– Podiscrê! “A Erva do Diabo” e tal…

Naquele momento, tudo parecia se encaixar: a espiritualidade, as plantas, a busca.

Então, após o papo furado, a crítica à razão pura e a cópia do textículo, fui embora. No horizonte, o sol ia descendo… mas ainda dava tempo de fazer algo interessante.

Resolvi ir até a Madeirit, uma fábrica abandonada aqui perto. Era o lugar onde via a beleza da vida revidando contra a degradação humana: concreto e ferro sendo dominados lentamente por plantas e fungos. Ali, sozinho, fumei um baseado, subi na caixa d’água e tirei fotos do pôr do sol.

Ah… o vento na cara… aquilo não tinha nada a ver com razão. Era pura sensação.

Se alguém me visse, provavelmente pensaria: “o que esse idiota está fazendo aí em cima?”. Mas eu não ligava. Era só pena deles, que talvez não soubessem como era boa a sensação de estar ali.

O sol foi embora. Um cara lá embaixo gritou alguma coisa. Fui ver:

– Ô, pode tirar suas fotos sossegado, mas a polícia está passando de helicóptero. Fica esperto.

Agradeci e resolvi sair. Segui por ruas vazias, fotografando flores ao lado de garrafas de refrigerante jogadas no chão, vendo a beleza desfigurada da cidade.

E acima de tudo, o céu: azul, vermelho, roxo. Meus olhos vermelhos. E a certeza de que o sol nasceria de novo, amanhã, depois, e depois, e depois…

E depois eu morreria. E o carbono do meu corpo alimentaria um pé de pitanga. E a vida continuaria.

Voltei para casa. Fumei, toquei violão, li a Bíblia.

E dormi. Sonhando.

← Voltar ao índice

[2001-10-14] - XIII... TÔ FICHADO

Sobre

Se tem algo que aprendi cedo é que nem toda transgressão nasce do desejo de romper regras; às vezes, ela nasce da simples tentativa de viver de forma mais autêntica.

Na primavera de 2001, tirei alguns dias para viajar sozinho até São Thomé das Letras, em Minas Gerais. Eu ainda era um garoto que, armado apenas com uma mochila (que tinha até nome!) - e uma sede imensa de mundo, acreditava que a liberdade estava logo depois da próxima curva da estrada.

Este relato é o retrato fiel de uma dessas pequenas aventuras: um misto de ingenuidade, busca espiritual e um choque inesperado com a estrutura repressiva da sociedade. Mais do que uma história sobre cogumelos e policiais, é uma história sobre descobertas — internas e externas — e sobre como, às vezes, a leveza diante das adversidades pode ser a maior conquista.

Ao reler este texto hoje, sorrio com certa ternura pelo garoto que eu fui: meio inconsequente, meio filósofo, e ainda acreditando que um pouco de música e gentileza poderiam mudar o clima até dentro de uma delegacia. Acho até que mudou mesmo haha.

Relato

Então era a primavera de 2001. Eu havia saído de férias do meu trabalho e separei três dias para ir viajar para Minas Gerais, em São Thomé das Letras. Fui sozinho acompanhado apenas de Michelle – minha mochila – e os mais diversos pensamentos. Também levava comigo um pouco de maconha. Coisa mínima mesmo. Não chegava a 10 gramas.

Peguei o ônibus e fui embora. A viagem foi bem tranqüila e cheguei em São Thomé pela manhã. Arrumei um quarto para ficar, andei um pouco sozinho, tirei algumas fotos, ouvi um pouco de música, fumei um baseadinho e essas coisas que a gente faz quando vai viajar…

No dia seguinte estava a fim de procurar uns cogumelos. Segui o caminho rumo a Três Corações onde tem um pasto que já achei muitos cogumelos numa experiência anterior. Fui até este pasto mas não achei nada. Andei mais até outro pasto. Andei muito. Muito mesmo! Cheguei até aquela gruta que vai para Machu Pichu, na Ladeira do Amendoim. Estava sozinho, sem água, sob o sol do meio-dia e SEM TER ACHADO UM ÚNICO COGUMELO!!!

Fiquei um tempo lá perto da gruta recompondo as energias para voltar. Comi umas folhas que me pareciam suculentas (tu não sabe o que se faz quando se está morrendo de sede e longe de tudo!) até que as folhinhas caíram bem… Pelo menos eu continuei vivo. Agora precisava voltar. Segui pela pedreira. Foi cansativo mas no final deu tudo certo. Fui à pousada em que estava ficando e tomei um banho. Parecia que ficaria o resto do dia descansando depois do “passeiozinho” que havia dado, mas não sei de onde me surgiram forças para dar mais uma volta. Resolvi fazer uma caminhada até a cachoeira da Eubiose. Na estrada resolvi fumar um baseadinho de nada. Só para ficar mais sossegado.

Fui andando. Chegando perto da cachoeira da Eubiose notei um pontinho branco num pasto. Pulei a cerca e… BINGO! Era um cogumelinho. Procurei mais cogumelos, mas tudo que achei foi um outro cogumelo já meio seco. Tudo bem… Tinha achado cogumelos! Irônico o fato de eu ter andado mais de 10 km durante o dia todo procurando cogumelos para não achar nenhum, sendo que no pasto da Eubiose (que não dava nem 2 km de caminhada) estavam rolando alguns! Eram apenas dois. Tsc… Ah! Mas era melhor que nada! Nem fiquei revoltado nem nada. Fiquei muito contente. Eram apenas dois, mas pelo menos estavam lá na minha mão. Fui com eles até a cachoeira, dei uma lavada lá mesmo e não demorei em comê-los. Não queria nada de chás… queria algo energizado pelas forças naturais do local. Imaginei que bem lavadinhos não haveria problemas. De fato não houve.

Após ter ingerido os dois pequenos fiquei andando pelas trilhas e tirando fotos da cachoeira da Eubiose. Não sentia nada de diferente até então. Inclusive me indagava se teria mesmo algum efeito com apenas os dois funguinhos. O sol no céu já estava com cara de apontar quatro e trinta da tarde e como estava sozinho e sem lanterna resolvi ir subindo de volta pela estrada em direção a cidade. Quem já andou a pé da Eubiose para São Thomé sabe que é uma caminhada razoavelmente cansativa e longa, pois é subida que não acaba mais…

No meio da estradinha eu já sentia alguma alteração de consciência. As coisas estavam um pouco mais nítidas e coloridas. Alguma coisa no som estava diferente. Abri os braços como espreguiçando e olhei para o céu. Era uma velha sensação de sempre! Os fungos estavam brincando comigo novamente!

Segui muito contente e chegando na cidade eu já estava razoavelmente alterado. Passei numa padaria e pedi uma coca-cola e um pão com manteiga. A mulher deve ter notado o tamanho das minhas pupilas, porque olhava com um aspecto assustado para mim e deve ter ficado mais assustada ainda ao perceber o jeito com que eu comia o pão. Eram dentadas nada sutis ou “etiquetadas”. Eram dentadas vorazes. Migalhas de pão voando para todo lado!

Não tive dificuldades em pagar o pão e a coca-cola. Me sentia bem. Sem medo de nada. Acendi um cigarro e fui caminhando em direção às pedras. Fui sozinho com o vento no rosto e a máquina fotográfica nas mãos. Fiquei observando a beleza do local. Me sentei numa pedra, olhei para os lados, não havia ninguém! Me deu vontade de ficar repetindo: “…uma onda leve me leva pra cima uma onda leve me leva pra cima uma onda leve me leva pra cima…” aquilo soava bem aos ouvidos. Era um som plástico, emborrachado, envolvente! Eu não estava alterado a ponto de ver as coisas derreterem e tal… era apenas uma acentuação na qualidade das cores, uma forma diferente de ouvir, um grande contentamento e a sensação de estar inserido em uma onda muito boa de pensamentos e sensações. É como se a mente estivesse com acesso livre ao mundo dos cogumelos e o mundinho de sempre. Era uma viagem totalmente controlável certamente devido a dose baixíssima de cogumelos que tomei.

Talvez por estar sozinho e não ver nenhuma alma viva (não era nenhum feriado ou temporada) me dava vontade de falar sozinho. E falava… sabia que estava falando sozinho e nem me importava. Não era qualquer espécie de diálogo filosófico DE mim PARA mim mesmo. Era apenas um pensamento alto. Cantarolava coisas malucas e balbuciava coisas inteligíveis.

Depois resolvi tirar algumas fotos. Fiquei um tempão tentando focalizar uma árvore para uma foto. Passava por entre uns pássaros nas pedras. Fiquei um tempo num Mirante. Tirei muitas fotos. Fumei muitos cigarros. Eles tinham um sabor muito especial naqueles estados de consciência. Lembro-me de ter visto uma casinha que tem um hippie que trabalha com reciclagem. A casinha parecia toda de massinha. Tava tudo colorido. Tudo parecia de massinha. Tudo me parecia perfeito para uma foto!

Uns cachorros começaram a latir e comecei a pensar se eles tentariam me atacar. Me escondi no meio do mato e os latidos cessaram. Depois, quando voltei para as pedras os latidos voltaram a me pentelhar. Desencanei daquilo e fui para o pico de uma pedra. Lá eu olhei as florestas e imensos campos verdes. Notei em especial uma árvore que se destacava das outras. Parecia meio amarelada. Percebi que de longe aquelas árvores pareciam quase todas iguais, mas eu bem sabia que de perto cada uma tinha algo em especial. Comecei a pensar sobre a caminhada que havia feito durante o dia. Na caminhada tudo parecia tão mais grandioso que eu! E agora eu estava lá em cima da pedra, e tudo parecia tão pequenino! Mas na verdade éramos do mesmo tamanho, e as árvores eram como pessoas! Estatísticas não são reais, mas as pessoas são todas loucas e tentam representar papéis normais! Ser normal? Ora essa! Ser normal é ser você mesmo. Que se foda se isso te faz parecer louco perante o resto do mundo! Ser normal é não representar um papel, um mito ou coisa parecida. Os modelos perfeitos do mundo das idéias de Platão não são normais porque eles na verdade não existem! Podem até ser utilizados como modelo do que pretendemos ser, mas nunca podemos pensar que somos eles de fato. Uma estrela te guia, mas é sempre inalcançável. O normal é o imperfeito. É a folha furada e comida por insetos almejando ser a folha brilhante na foto da embalagem do fertilizante! Mas antes ser imperfeito e real que ser uma bela foto colada numa embalagem plástica! O perfeito e belo é o imaginário! E percebi que os cogumelos haviam aberto uma ponte entre eu e o mundo imaginário. Conseguia sentir a perfeição nas coisas imperfeitas. E então o sol me brindou fazendo um espetáculo que acontece todo dia e nem por isso se torna vulgar: o crepúsculo.

Fui seguindo pelas pedras e cheguei até a Pirâmide. Lá fiquei fumando e olhando as pessoas. Observei um casal e senti falta de uma companhia feminina. Saí andando e me lembrei da minha família. Puxa, pela primeira vez na minha vida eu senti saudade da minha família durante uma viagem! Pensava em minha irmã, meu irmão, mãe… essas coisas. Não era qualquer necessidade de voltar para casa, era apenas uma lembrança. Tinha vontade de vê-los. Eu estava numa enorme afinidade com a idéia de família.

Sabia que quando voltasse para casa voltaria a ser o indivíduo quieto como sempre, mas percebi que não precisava participar da idéia para achá-la bacana. Podia ver poesia na cena “Velvet Underground” com aqueles manés se escondendo em quartos escuros e se entupindo de heroína, mas nem por isso eu precisava participar daquilo! Podia achar legal a filosofia raulseixista de botecos, mas também não precisava freqüentar botecos ou coisa parecida. As idéias estavam em todo lugar e eu não precisava participar de nenhuma delas. Era melhor eu criar a minha própria “idéia”. E a minha “idéia” consistia em apenas contemplar todas as outras sem julgamento. Era o observar atento e curioso de uma criança feliz e idiota.

Após o pôr-do-sol e mais um monte de pensamento maluco eu fui caminhando até a Pousadinha da Inês onde estava “hospedado”. Chegando lá eu tomei um banho. A sensação da água limpando o corpo era muito boa. Sentia uma força muito estranha nos ombros. Era como se eu estivesse usando uma armadura ou coisa parecida. Minha coluna ficava sempre totalmente ereta, bem diferente do jeito tortão que costumo ficar…

Saindo do banho eu fiz um copão de Nescafé. Huaaa!!! Café! Meu vício preferido! Fiquei ouvindo música, fumando, tomando café e olhando o contraste entre as cores do Marlboro, uma xícara branca e vermelha, as caixinhas de som e o disk-man. Aquilo me parecia tão bacana que resolvi tirar fotos. Eram fotos do quarto, fotos de caixinhas de som, Nescafé e tal… eram todas fotos absurdas!! Mas aquele contraste de cores me parecia tão perfeito para fotografias!! Uma pena que nenhuma dessas fotos tenha saído (já que eu havia esquecido de usar o flash da máquina)…

Sentia a falta de alguém para conversar. Nada desesperador, mas parecia que seria positivo conversar com algum conhecido. Às vezes me pegava fazendo gestos com as mãos para ilustrar algum pensamento que passava pela minha cabeça. Achava aquilo engraçado. Por que precisaria ilustrar um pensamento com gestos se não tinha ninguém ali para me ouvir? Lembrei do pessoal da minha banda. Pow, no dia seguinte eu poderia ver todo mundo e seria muito legal!

Deitei na cama e fiquei observando a iluminação do quarto. Pow! Aquele quarto tinha uma iluminação muito bem projetada! As cores amarelas das paredes contrastavam com o marrom das portas e janela. Observando a parede com atenção comecei a notar alguns poucos visuais. Coisas se mexiam. Olhando o teto de madeira também via alguns visuais quando parava para observar com calma. As coisas respiravam e borbulhavam me deixando maravilhado.

Mesmo sem fome resolvi fazer um sopão. Não foi difícil preparar a coisa. O difícil foi comer aquilo! Ficou muito ruim! Saí para andar pela cidade. As pessoas pareciam ter medo de mim. Eu não entendia bem o porquê, mas quando voltei para o quarto e me olhei no espelho eu entendi e eu mesmo fiquei assustado com meu aspecto: as pupilas estavam muito dilatadas! Definitivamente eu tinha um aspecto assustador. Parecia um monstro. Dei risada de mim mesmo e ao rir minha imagem ficava quase demoníaca. Era uma ironia aquele visual assustador, levando-se em consideração a paz que eu sentia.

Os efeitos do cogumelo já estavam diminuindo. O pico da viagem já havia passado e então resolvi fumar um baseado. Um outro pessoal havia chegado ao camping e eles montavam suas barracas enquanto eu fumava meu baseado. Notei um sapo no quintal e fiquei fumando meu baseado e brincando com o anfíbio. Depois tentei dormir… custou para eu conseguir pois havia tomado café demais… mas dormi.

Pela quantidade tão pequena de cogumelos até que tive uma experiência intensa.


No dia seguinte eu voltaria para casa. Ia arrumando as minhas coisas quando notei que havia sobrado muita maconha, pois não havia fumado quase nada. Para não jogar aquilo fora resolvi guardar e levar de volta comigo. Tinha uma paranguinha e uns baseadinhos já prontos e enrolados em folhas de uva.

Naquele dia eu me sentia muito bem, o que é muito normal, pois o dia posterior a uma trip de cogumelos geralmente nasce muito bonito. Tu fica com um puta ânimo para aceitar as coisas e seguir a tua vida com paz e amor no coração… e foi com esse contentamento todo que segui com as minhas coisas em direção ao ônibus para Três Corações, de onde sairia um ônibus para São Paulo.

Cheguei em Três Corações mais ou menos nove horas da manhã. Revelei umas fotos nesses “Kodak Express” de uma hora e enquanto esperava o ônibus fiquei olhando as fotos, comendo um salgadinho, tomando uma coca-cola e fumando meu cigarro. De repente me aparecem dois homens com uniforme bege. Era o uniforme da Polícia Militar de Minas Gerais. Um deles tinha os olhos claros, rosto fino e cabelo castanho. O outro tinha cabelo enrolado, bigode e era um pouco mais gordo. O mais magro disse:

  • Guarda essas coisas e me acompanhe.

Estranhei, mas logo entendi que teria problemas. Guardei minhas coisas com calma e até com um breve sorriso nos lábios. Era engraçado me ver numa situação dessas. Acompanhei os policiais descendo umas escadas até o banheiro da rodoviária. Chegando lá o magrinho novamente me dirigiu a voz dizendo:

  • Cê tem alguma droga aí?
  • Olha, não vou mentir. Eu tenho um pouco de maconha aqui sim.
  • Cadê?

Pedi para o policial gordo segurar minha coca-cola, abri minha mochila e dei a paranguinha miserável que encontrei.

  • Tem mais alguma coisa aí?
  • Acho que não…
  • Tem ou não tem?
  • Não.
  • Deixa eu ver!

Que droga! Eu acho que tinha! Eram aqueles baseadinhos enrolados em folhas de uva! O magrinho começou a revistar minhas coisas enquanto o gordo ficou olhando as fotos. Ofereci salgadinho e coca-cola para o gordo e fiquei comentando sobre as fotografias que havia tirado. O gordo tinha jeito de ser uma pessoa bacana. Conversava normalmente não como autoridade e condenado, mas como ser humano. Sem me tratar mal como o magrinho – filho duma puta – me tratava. Perguntava coisas como “quando chegou aqui?”, “de onde você é?” e essas coisas…

  • Ah! Achei! E essa maconha aqui? Como cê disse que não tinha?
  • Ow… desculpa aí… pensei que eu nem tinha mais isso.
  • Você tá ferrado! Vai pra delegacia com a gente.

Achei que o cara queria me assustar falando daquele jeito, mas eu estava feliz demais para ficar assustado com esse tipo de coisa. No dia anterior havia sentido coisas infinitamente superiores para me importar com essas coisas mesquinhas de humanos… não que eu havia deixado de ser um humano mesquinho como tantos outros, mas estava feliz demais para me importar com esses joguinhos de adultos e nem fiquei apavorado nem nada… só sabia que ia me ferrar.

Subimos as escadas e voltamos à rodoviária. Enquanto outros policiais verificavam um carro que parecia estar sem documentação, o gordo e o magro ligaram para a delegacia para enviar um carro para me pegar enquanto revistavam outros garotos em busca de drogas. Pedi emprestado o violão de um dos garotos que estava sendo enquadrado, me sentei em meio aquele caos, acendi um cigarro e fiquei tocando uma música. Era uma música da minha banda. Chama-se Hubble II. Ela foi escrita por um amigo meu. Era o seguinte:

Já faz três noites que eu não durmo,

Só para ver o sol nascer,

Estou esperando o fim do mundo,

Com um sorriso o anoitecer.

Os teus óculos escuros,

Te libertam da virtude,

Perdidos no deserto,

Em plena luz do meio dia.

Do meu telescópio mágico,

Consigo ver todos os teus sonhos,

A deriva sobre um mar de tirania.

Do meu telescópio mágico,

Consigo ver todos os teus sonhos,

Procurando um final feliz pra nossa história.

Você se lembra quando não tinha perigo,

De viver sozinho na cidade,

Areia e neve te fazendo companhia,

Contemplando a essência da verdade.

Por causa disso é que eu vou morar no céu…

Mas vou guardar um lugar para você,

Eu quero ficar velho o bastante,

Todos os dias junto com você.

Ver o mundo pelas lentes mágicas,

E saber por que a vida é assim,

Na solidão do espaço escuro e frio.

Ver o mundo pelas lentes mágicas,

E saber por que a vida é assim,

Estou tranqüilo, pois aqui não tem maldade.

Os garotos estavam limpos. Pediram o violão de volta. Uma pena. Ficaria horas me divertindo com aquele violão Del Vecchio afinadinho e macio!

Depois veio um outro carro da polícia. Entrei nele e seguimos em direção a delegacia. Estava meio confuso com aquilo, mas estava achando o máximo a sensação de poder viver o que um bandido vive. Aquele banco de plástico. Aqueles policiais com óculos escuros empinando o peito e pensando ter alguma autoridade. Armas. Grades. Era tudo tão novo! Não era bom ou ruim, era apenas uma situação que ainda eu não havia vivido. Achava meio ridículo aqueles policiais orgulhosos e decadentes, mas não levei aquilo para o lado pessoal. Parecia apenas um teatro no qual um bando de gente representava alguma autoridade digna de respeito, mas que no fundo no fundo eram pessoas que tinham suas vidas, suas famílias, seus defeitos, virtudes, sonhos, histórias, estórias e essas coisas… enfim…

Chegamos na delegacia. Fumei mais um cigarro. Por fora da delegacia havia um canteiro com plantas murchas, entrava-se e via-se uma espécie de balcão onde ficava o delegado e sua televisãozinha. Haviam alguns bancos e atrás do balcão uma espécie de cela. Um chiqueirinho pra dizer a verdade.

Começava a me preocupar com o ônibus, pois já havia comprado as passagens para às 13h30 e já era mais ou menos 12h30. Perguntei para o policial magrinho se daria tempo de eu pegar meu ônibus. Num olhar que expressava um misto de ódio e orgulho ele falou:

  • Se depender de mim você vai.

Mas o tom de voz e o jeito que ele falou “SE depender de mim” me fez saber que ele estava mentindo. Seu olhar não era bom. Um tempo depois fiz a mesma pergunta para o policial de bigode. Ele falou:

  • Não sei… se tiver alguém para assinar todos papéis pode até ser que sim… mas não se preocupa não que você não vai ficar aqui. Você vai sair. Você não é um menino ruim.

Achei graça da afirmação do policial mas não respondi nada. O magrinho me pediu para assinar umas coisas. Os outros policiais pareciam não gostar muito dele. Ele tinha jeito de ser novato na profissão e isso fazia dele um cara extremamente “caxias”. Os policiais foram saindo. O delegado falou para eu entrar na cela mas antes disso perguntou:

  • Tem alguma arma, canivete ou coisa assim?
  • Tenho um canivete…
  • Sem gracinhas hein?!

Nem respondi nada. O silêncio é uma virtude diante de frases estúpidas como esta. Que faria eu com um canivete cego na mão dentro de uma delegacia? Entrei na cela e perguntei se podia fumar lá dentro. Ele disse:

  • Pode sim. Só joga a fumaça lá para fora.

Fiquei lá dentro fumando. Era um lugar meio escuro. Tinha uns armários velhos e enferrujados, uma tábua de barraco no chão e uma janelinha pequenininha que dava vista para um canteiro bem mal cuidado. Fiquei olhando o que havia sido registrado nas paredes por outras pessoas que passaram por aquela cela. Lia-se coisa de todo tipo.

“…estou arrependido nunca mais farei isso”
“São Paulo Zona Sul”
“Nóis na Fita!”
“Gambé fiadaputa!”
“…fui pego mas sou inocente!”
“São Thomé nunca mais!”

E mais um monte de outras frases de ódio, medo, arrependimento ou simplesmente um registro de alguém que gostaria de ser lembrado ou conhecido. Fui até a portícula da cela e falei para o delegado:

  • Pow cara… vou perder meu ônibus. Será que não rola algum esquema de eu assinar o que tem que assinar pra ir embora rápido?

O cara pediu para ver minha passagem e tentou ligar no telefone que estava nela.

  • Só tá chamando…
  • Putz… pior que eu tô sem grana… se perder esse ônibus nem sei o que vou fazer.

Aí apareceu um maluco para pedir informações ao delegado sobre um suposto concurso para entrar na polícia. O delegado falou:

  • Certo, eu te respondo, mas faz um favor pra mim: corre lá na rodoviária e troca essa passagem… mas vai correndo que senão o garoto aqui vai perder viagem…

Pow! O cara foi meu salvador!! Me ofereci a fazer um café solúvel, já que tinha pó, fogareiro e açúcar nas minhas coisas. Fiz o café na cela mesmo e ficamos tomando e eu fumando feito um condenado. Literalmente. Aí apareceu o cara da passagem. Havia conseguido trocar para as 18:00 horas mais ou menos… fiquei contente pra caramba!

Depois de um tempo apareceu um velho. Devia ser algum amigo do delegado. Olhou para eu e a minha cara de bom cidadão e falou:

  • O que ocê tá fazendo aí meu fio? Ocê é novo, não tem cara de bandido. Pára de fumar essas droga. Óia só o W. trabaiando aí na delegacia. Nunca colocô uma porcaria na boca…
  • É… só a cervejinha do fim de semana que a gente não fica sem né? - falou o delegado.

Os dois riram e eu, apesar de não ver muita diferença entre a cervejinha e a maconhinha do fim-de-semana disse:

  • É… cê tem razão. Depois dessa nem quero ver maconha na minha frente.

Na verdade nunca me condenei no ato de fumar maconha. Sempre me foi uma coisa positiva, me proporcionou uma boa percepção e contato com a natureza e pensamento. Descobri coisas e a mim mesmo sob efeito da tão discriminada erva… mas… fazer o quê? Sempre soube que era uma coisa proibida. Não adiantaria de nada falar “quê isso meu! é uma erva natural e não pode te prejudicar!” Eu tinha que concordar. Sempre soube que estava desrespeitando as leis de uma sociedade que, querendo ou não, estava inserido… por isso concordei com o velho, pois sabia que ele tinha apenas boas intenções e que seu conselho era, do ponto de vista dele, benéfico para mim…

Quando o velho saiu, o delegado abriu a portícula e me deixou ficar sentado num banco. Falou que eu não precisava ficar lá na cela. Ficamos fumando. Ele me perguntou se eu estava com fome… de fato estava.

Então esquentamos a marmita dele no meu fogareiro e ele dividiu o marmitex comigo. Depois peguei o disk-man e colocamos numa caixa amplificada. Ficamos ouvindo Tom Zé e Mutantes. Batendo papo descobri que o delegado era baterista. Ficamos falando sobre música até aparecer dois policiais com um cara bêbado.

O cara se dizia promotor, mas ninguém acreditava nele. Os policias (não era nem o gordo nem o magro) o trataram mal e ele estava bem bêbado. Me pediu um cigarro e insistia em dizer que era um promotor de justiça de uma certa cidade vizinha. O delegado tentava ligar para um telefone que o tal promotor dizia para confirmar se ele era mesmo promotor… não entendi direito pra quê isso… quer dizer que se ele fosse promotor não precisava assinar nada? Achei meio estranho mas fiquei quieto…

Enquanto não conseguia ligar para o tal número, o delegado acabou fazendo amizade com o tal do promotor. Fiquei apenas observando o diálogo dos dois que às vezes era interrompido por algum indivíduo que estava cumprindo pena condicional e era obrigado a todo dia ir até a delegacia e assinar uns papéis. O delegado parecia ter amizade com todos eles. Tratava todos muito bem.

Enquanto eu tava lá só ouvindo os caras conversarem comecei a sentir sono. Me lembrei que quase não havia dormido noite passada porque durante a trip de cogumelos tinha tomado café demais… sentia um pouco de dor de cabeça também… mas o pior foi quando me lembrei que um primo meu trabalha na polícia. Caralho! Foi a única coisa que me tirou a paz. E se o cara me visse fichado e comentasse com meu pai:

  • Teu filho é um maconheiro criminoso!!

Fiquei preocupado rezando pra tudo quanto é santo. Até falei:

  • Aí Deus, se tu me livrar dessa eu paro de fumar maconha. Apesar de eu não achar isso uma coisa errada eu vou fazer pra deixar minha véia contente.

Aí toda vez que eu via alguém passando em frente a delegacia eu pensava: “tá lá! aquele é um anjo de Deus enviado pra me salvar”!

Mas não era não…

Mesmo Deus não tendo me livrado a cara naquela hora eu prometi:

  • Certo Deus, então a partir de hoje eu paro de fumar maconha… tudo bem que eu assine a coisa aí do dezesseis, mas pelo menos não deixa ninguém saber, certo?

Ele não respondeu nada, mas acho que quem cala consente e a promessa estava feita.

Num determinado momento o delegado conseguiu ligar para um certo número e confirmou que o bebum era promotor… então liberou o cara assim sem mais nem menos. Pensei: “pow! agora acho que também vou ser liberado”.

Mas nem fui. Continuei lá com sono e dor de cabeça…

Até que já era umas cinco horas da tarde e o delegado falou que a gente ia ter que ir à casa de um cara para ele fazer os papéis para eu assinar. Fechou a delegacia, abriu as portas do camburão, falou que eu podia ir na parte da frente.

E o delegado pisava com vontade. O carro corria! Ligou sirenes e derrapou em curvas apenas para se divertir. Foi tudo bem rápido, mas chegando em frente a casa do cara que tinha que assinar a papelada eu tive que ir no banco de trás e ele foi com mais calma no camburão.

O cara tinha cara de mau. Me ignorava. Perguntava dados técnicos meus para o delegado como se eu fosse um bicho que não podia falar. Eu nem liguei. Só mais um babaca representando uma autoridade escondida por uns óculos escuros comprado em qualquer camelô por aí. Filho da puta. Mas contra a minha própria vontade até senti um certo respeito pela figura. O cara representava muito bem. Era meio assustador o jeito sério que olhava. Não estava pra brincadeira não.

Chegamos novamente na delegacia, mas desta vez não fomos para o lugar onde tinha o balcão e a celinha. Fomos para uma espécie de casarão. É como se a celinha que eu estava fosse um boteco vendendo ovos coloridos enquanto o casarão fosse um restaurante de luxo. O delegado não entrou lá. Fomos eu e o cara sério. Sentei numa cadeira qualquer e o cara me perguntou um monte de bobeira e ficou digitando lá num computador. Depois imprimiu o negócio, assinou, me deu para assinar e falou que precisaria de um “curador”, seja lá o que isso queira dizer. O delegado assinou como esse tal de curador e eu fui liberado. Nem me despedi do cara sério, mas agradeci muito o delegado e, irônico, falei:

  • Até mais!
← Voltar ao índice

[2001-12-20] - FESTAS CORPORATIVAS

Sobre

Nem sempre é nas grandes aventuras ou nas viagens planejadas que as melhores surpresas acontecem. Às vezes, é no meio da rotina mais burocrática — entre ônibus de excursão, churrasco da firma e premiações toscas — que a vida resolve abrir pequenas janelas de magia.

Este relato nasce de um desses dias improváveis. Um dia que começou com a expectativa nula, misturado àquela velha sensação de deslocamento social, e que, sem querer, acabou trazendo encontros, pequenos rituais secretos e uma silenciosa conspiração da natureza a meu favor.

Por trás do desânimo com o mundo corporativo e da luta para parecer funcional no meio de um ambiente que nunca me coube muito bem, havia ainda a velha busca: a vontade de encontrar brechas, símbolos, momentos de liberdade. E foi assim, entre cervejas mornas, vaquinhas no horizonte e cogumelos inesperados, que aquele dia ordinário se tornou, sem muito alarde, uma pequena celebração da vida.

Relato

PARTE I

[Verão de 2001]

Pois é… vivo reclamando tanto do mundo corporativo, escritórios, mundo cão-pitalista, ar-condicionado, gravatas e tal…

Mas…

Hoje não quero satanizar isso tudo. Quer dizer, eu não mudei de opinião: O mundo ainda é cão, eu ainda odeio ar-condicionado, gravatas são invenções imbecis e tal…

Mas…

Acho que às vezes eu generalizo demais as pessoas. Quer dizer, nem todas as pessoas do escritório têm sorrisos amarelos. Ou talvez até tenham, mas o fato é que por trás daqueles sorrisos amarelo-melância existem histórias e alguns sonhos (por mais medíocres que possam ser). E têm pessoas amadas, amigos, pessoas odiadas. Têm família, têm filhos. Sim filhos! Tudo bem que esse povo às vezes não dá a atenção necessária para sua prole, mas, de uma forma muito irônica eles só levam essa vida sem magia pelos pirralhos. Visam dar um futuro para as crianças e essas coisas… fazemos muita idiotice e desgraçamos nossa vida por amor. É quase bonito pensar nisso.

Bom… enfim… o fato é que cheguei a conclusão de que por trás da mediocridade corporativa existem pessoas e histórias… sim… cá estou eu me redimindo dos meus pecados e julgamentos.


Bom. Seja como for, o fato é que ontem fui numa festa do departamento da empresa onde trabalho. Foi numa fazenda de uma funcionária.

Se liga: F-A-Z-E-N-D-A - que lembra vaca!

Sacou? V-A-C-A - que quando caga, e faz chuva e faz sol, faz nascer cogumelo.

Sacou? COGUMELO!!

Vamos por partes:

Às oito horas da manhã cheguei até a empresa onde trabalho e lá tinha um ônibus que levaria todo mundo para a tal da fazenda. Seriam aproximadamente quatro horas de viagem. O que mais me assustava era o fato de ter que ficar todo esse tempo sem fumar, já que não fumo na frente dos meus colegas de trabalho. Até uns meses atrás eu era um jovem aprendiz menor de idade. Agora sou maior, trabalho a sério mas acho que sou visto como alguém que não tem idade para fumar.

Durante a viagem todo mundo ia falando alto e cantando. Eu não estava com esse pique e resolvi ficar isolado no fundo, quieto. Não tava com muito saco para me relacionar, sabe? Aí o Sérgio, um chegado, sentou-se ao meu lado e pelo que vi ele também não estava num clima muito festivo. Nós fomos conversando um pouco sobre coisas sem importância. Depois de aproximadamente duas ou três horas de viagem via-se grandes pastos ao longo da estrada. Fiquei imaginando onde era aquele lugar, pois não sabia nem mesmo onde era a cidade que a tal da fazenda se localizava.

O fato mesmo é que eu não tava afins de participar de festinha nenhuma. Tava meio de saco cheio e ter que fingir durante uma fase de saco-cheísmo é muito foda. Então me passaram um violão dizendo:

  • Toca aí, rapaz! Eu sei que você sabe tocar!
  • Pow… nem sei tocar coisas legais… – falei, hesitante.
  • Toca qualquer coisa – eles insistiram.
  • Mas vocês não vão conhecer o que eu toco, além de que toco muito mal…
  • Toca aí e deixa de frescura.

Pois é… pensei “foda-se” e toquei Syd Barrett. “honey love ya honey little honey funny sunday morning love you more funny love in the sky line baby”. Depois mandei “I’ll Be Your Mirror” do Velvet Underground. Não sabia tocar mais nada, senão fragmentos de músicas. Toquei um pedacinho de “Polly”, depois outro de “Come As You Are” e essas coisas. Minha falta de talento foi suficiente para fazer as pessoas deixarem de prestar atenção no violão e ficarem conversando entre si. Foi a hora que entreguei o violão para um outro cara que tocava e fingi estar meio que dormindo…

Quando o ônibus pegou uma estradinha de terra comecei a imaginar se haveriam cogumelinhos, afinal, era uma fazenda e em fazendas geralmente têm pastos. Claro que era só um sonho, pois sem chance de conseguir cogumelos junto dos meus colegas de trabalho… mas fiquei sonhando lá.

Chegando na porteira da fazenda eu fiquei olhando pela janelinha do ônibus. Percebi umas vaquinhas pastando ao fundo. Um azul bonito no céu. Uma árvore florida. Era verão. Estava quente. Fiquei olhando a cerca. Muita merda de vaca. Fiquei divagando e olhando os detalhes da fazenda até que olhei pertinho de uma cerca de arame farpado e…

…TINHA UM COGUMELO LÁ NA MERDA!!!

Fiquei ansioso. Queria pular daquele ônibus naquela hora mesmo! Queria comer aquele cogumelo com merda e tudo! Aquele cogumelo tinha que ser colhido! Ele havia me visto! Eu havia o visto. Foi amor a primeira vista! Eu sei que foi!!

Mas graças as regras e bom costumes fingi nem perceber a existência do fungo lá na cerca. O ônibus então continuou seguindo mais um pouco e depois parou há uns trinta metros depois de onde eu vi o cogumelo. Estávamos tão próximos um do outro! Ambos na merda. O cogumelo na merda da vaca e eu ali perto de um monte de colega de trabalho elogiando a fazenda e fazendo um social com os pais da funcionária proprietária. Não tô dizendo que a merda eram as pessoas, mas eu me sentia na merda por não poder me relacionar direito. Desencanei daquilo. Eu tava com fome e sede, aí fui tomar uma cerveja e comer vaca morta no espeto. Aí uma menina que trabalha comigo sentou do meu lado num banco e suas pernas encostando nas minhas me deixaram um tanto quanto… bem… você sabe. Acontece que eu estava de calça de moleton. E todo mundo dizia:

  • Ei, levanta aí, vem pegar um churrasco!
  • É… er… hmmm… daqui a pouco eu pego.

Aí a menina saiu e foi cantar no karaokê. Cantou Raul Seixas de um jeito bem desafinado e divertido. “Não planto capim guinéeeeeh, pra boi amarrá rabo, tô virado no diabo, tô arretado é com você!”. Gostei. Depois de um tempo eu fui pegar mais cerveja e descobri que seria uma droga ficar naquela situação. Não tenho muito saco para fazer social, não sei cantar no karaokê, não podia fumar e iria ficar pelo menos seis horas naquela festa. O que fazer? Descobri que beber era uma boa opção, mesmo eu não sendo muito chegado em álcool.

Fiquei bebendo e enquanto já me sentia levemente alcolizado descobri uma máquina fotográfica digital. Ótimo! Gosto muito de fotografia! Peguei a máquina e fui tirando foto de tudo que via pela frente. Até de umas vaquinhas lá no horizonte.

Aí depois veio a hora dumas premiações dos “++” do RH. Tinha o prêmio ++ stressado, ++ aéreo, ++ on-line, etc… logo depois das premiações viria o tão esperado amigo-secreto. Então eu fiquei incubido de filmar toda a brincadeira. Que ótimo!! Poderia ficar longe de tudo sem parecer anti-social. Se alguém viesse pedir para eu me expor de alguma maneira eu tinha a desculpa: “agora não dá, estou filmando e tal…”

E então filmei as tais premiações. Até que foi engraçado. Depois teve o amigo secreto. A pessoa que me tirou me deu um CD do Gorky’s Zygotic Mynci / Spanish Dance Troupe. Eu havia dito que gostaria de ganhar esse CD. Até que a banda é legal e tem uma dosagem certa de insanidade e harmonia.

Na minha vez de entregar o presente eu falei bobagem graças a um acesso de sinceridade causado pela cerveja. Antes deixe eu explicar que a festa era de Recursos Humanos, e a pessoa que eu tirei de amigo secreto não trabalha totalmente em Recursos Humanos, mas sim no departamento de Consultoria da empresa. Então, na hora de dizer quem eu havia tirado eu falei:

  • Bom… quem eu tirei nem trabalha no RH, aí… mas eu tirei tal pessoa.

Aí a muié pegou o CD, me deu um abraço e depois falou:

  • Quero protestar! Eu sou de RH sim! Não de corpo, mas de alma!

Aí todo mundo bateu palmas e eu fiquei vermelho. Que bosta. Alma, alma… que mané alma! Aquela muié nem sabe o que é uma alma! Fiquei quieto e continuei a filmar.

Aí acabou isso tudo. Eu tinha uma vontade intensa de fumar. Vi um cara, o Luiz, que não fuma na empresa, mas lá estava fumando um cigarro de menta e tomando whisky. Como o Luiz é gente boa, estava bêbado e não sairia por aí dizendo pra todo mundo que tô fumando eu pedi para dar um gole no whisky e uns dois tragos no cigarro. Fumei rapidinho e ninguém, além dele, percebeu.

E aí acabou isso tudo e o Sérgio falou:

  • Ô! Vamos dar uma olhada ali nas vacas!

É claro que eu queria ver vaquinhas!! Existem cogumelos em pastos! Mas o fato é que daria muito na cara eu me enfiar no meio das vacas e sair caçando cogumelos. O problema não era o Sérgio, pois este sempre soube que eu gostava de alterar a cabeça. O que eu temia eram os outros funcionários…

Mas de qualquer forma eu fui com ele como quem não quer nada. Passando pela cerca eu vi meu chegado!! O cogumelinho do começo da entrada! Sabia que nossos destinos era acabarmos juntos!! Numa sutil incorporação do Mininu Du Matu eu o peguei em três movimentos de apenas um segundo:

1 - passei por baixo da cerca

2 - tirei o cogu da bosta

3 - guardei no bolso e saí por baixo da cerca

Andamos mais um pouco e o Sérgio decidiu que gostaria de caçar cogumelos. Ele achou um outro cogumelo e me deu. Também foi pro bolso em rápidos movimentos. Aí ele achou mais dois, mas meus bolsos estavam cheios demais com os anteriores e então eu guardei… er… na cueca.

Ah… eu sei! É escroto. Primeiro porque o cogu fica na bosta e deixar dentro da cueca é nojento, segundo porque depois eu preciso ingerir os cogumelos e já pensou se eu estou comendo um cogumelo e vejo um pêlo de saco enroscado no dente? É escroto, mas eu não via outra solução…

O fato é que eu levei os cogumelos escondidos até o banheiro e enquanto o diretor do departamento falava alguma coisa sobre a festa e o futuro do departamento, lá estava eu trancado num banheiro fedido e guardando uns cogumelos na caixinha em que veio um brinde que ganhamos na confraternização. Coloquei a caixinha dentro da minha estimada mochila e saí. Nem soube o que o diretor falou. Só sei que já era hora de irmos embora.

Foi entrarmos no ônibus e começou a cair uma forte chuva, o que me obrigou a dar um sorriso para São Pedro. Notei que enquanto todo mundo havia ido animado para a festa e voltava cansado, calado ou alcolizado, comigo ocorria o inverso: havia ido mal e voltado muuuuuuito feliz! O pessoal do violão voltou a dizer:

  • Toca aí!
  • Putz… eu não sei tocar nada legal.
  • Toca aí o que você sabe.
  • Ah não…
  • Toca aê!

Aí eu novamente toquei “I’ll Be Your Mirror” do Velvet e “Love You” do Syd Barrett. Foi o suficiente para aceitarem o violão de volta e me deixarem em paz. Fiquei sozinho no último banco do ônibus. Uns cogumelos na mochila. Um sorriso nos lábios. E enquanto isso a chuva ia caindo nos pastos das estradas por aí. Ah! São Pedro… o mundo é cão, mas a vida é bela!

PARTE II

Então, na sexta-feira, após sair do trabalho, eu fui para a casa de um colega com os já comentados cogumelos. Eu os havia colocado com mel num pote de vidro logo na quinta-feira após voltar da festa. Meu colega estava arrumando seu quarto e seu aquário.

  • E aí Gersão!
  • Ô… e aí irmão!
  • Só… arrumando o aquário?
  • É.

Ficamos quietos. Falei:

  • Ô Gerson, tenho três novidades pra contar. Uma boa, uma ruim e uma pior ainda.
  • Vixe… tô até com medo. Conta aí!
  • Começar pela “ruim”. Seguinte: amanhã não vai dar pra eu tocar com vocês - no dia seguinte estava combinado de a gente tocar uma guitarra e fazer um barulho na casa de um outro colega. Continuei - o motivo é a novidade “pior ainda”: minha vó tá internada. Mó foda. Corre até o risco de ter que amputar as pernas cara…
  • Putz… que foda!

Falamos sobre os problemas da minha vó. Falei:

  • Se Deus quiser vai dar tudo certo - e acho que Deus quis, pois hoje a véia tá feliz, contente e inteirona. Continuei - tô procurando manter a calma. Amanhã vou lá ver ela e tal…
  • Certo… vai sim! Mas e a novidade boa, qual é?

Não falei nada. Tirei o pote de cogumelos e mel e mostrei pra ele. O Gerson nunca tinha tomado cogumelos antes. Ele tinha uma grande curiosidade, pois sempre falei muito empolgado de algumas experiências que fiz. Ele pegou dois copos e dividimos a poção. Antes do Gerson tomar ele me perguntou:

  • Quanto tempo demora para bater os efeitos?
  • Coisa de meia hora.
  • Então dá para eu tomar e ainda terminar de limpar o quarto e o aquário né?
  • Tranquilão… pode tomar e continuar a limpar numa boa.

E tomamos, mas acho que por aquilo estar no mel o negócio veio bem rápido e então o mundo já era de plástico, o horizonte de massinha e as pessoas de borracha. Bem vindo ao mundo de Cubensis [musiquinha do Marlboro].

O Gerson, já começando a sentir os efeitos dos cogumelos ficou meio confuso enquanto terminava de limpar seu quarto. Pelo que eu o observava ele não sabia direito o que estava fazendo. Achei aquilo engraçado e enquanto sentia como a alma fungi vinha me tocando fiquei ouvindo Belle & Sebastian. Caía bem aos ouvidos. Tranquilo, suave. Um som calmo após um cansativo dia de trabalho…

O Gerson terminou de limpar seu quarto. O quarto do Gerson merece um parágrafo a parte: imagine você que o quarto do maluco tem CDs colados nas quatro paredes e no teto, e que várias obras de arte estão distribuídas pelo quarto, fazendo com que em cada lugar em que se olhe tenha algum detalhe colorido pra ficar pirando. E sob a óptica fungi, toda a vida daquele quarto ficava potencializada. Eu via suas paredes respirando. Tudo mudando de tamanho. O quarto parecia vir diretamente de um desenho animado, sem nenhuma forma pontiaguda, mas apenas formas arredondadas que não agrediam os olhos. E no teto via meu reflexo sendo formado por vários CDs. Desfocado, irregular, disforme, confuso, colorido. Parei em frente ao espelho e me olhei. Minhas pupilas extremamente dilatadas. Achei aquilo meio assustador, mas magnífico. Eu parecia perspicaz, vivo. Muito vivo. E então, em meio a conversas bizarras com o Gerson e a euforia típica de uma trip bem sucedida de cogumelos eu resolvi fechar os olhos para ouvir a música. E a música ganhava formas e cores. Era uma música ainda do Belle & Sebastian. Era uma cantada pela Isobel. E em minhas visões eu notava passeatas de cores, carros quadrados e formatos geográficos fazendo um desfile numa rua cheia de gente. E passavam cores, anuncios e cifras. Um carnaval psicodélico e visionário num dia de dezembro. E ainda com os olhos fechados tive a sinestesia com o som. Umas ondas roxas e negras pulsavam junto da música formando as imagens fantásticas e fluídas.

Ao abrir os olhos eu me sentia engolido pelo quarto do Gerson que tinha muita vida e muitas cores. Era tudo lindo e confortador. E eu voltava a fechar os olhos e via novamente a música cheia de ondas e cores. Era tudo muito belo e com aparência muito real e intensa. Elas iam me envolvendo, me engolindo e me fazendo esquecer do mundo lá fora. Agora eu entrava num ambiente colorido e musical. Era lá que eu via as coisas que estavam escondidas num baú da minha cabeça. Era o baú mais cheio de tesouros que qualquer doido poderia encontrar. Um baú de imagens abstratas, porém belas e coloridas.

Continuamos a conversar sobre a experiência. Falávamos das cores, do novo mundo, dos rastro deixados pela mão ao movê-las diante da luz, e as visões malucas que se podia ver de olhos fechados. Aí ele pegou uma câmera e começou a fotografar o quarto dele. Tirou fotos da minha cara com pupilas dilatadas. Tirou fotos de si mesmo. Tirou fotos de tudo o que via pela frente. Depois ele falou:

  • Ei… vamos comprar umas esfihas?
  • Putz… cara a gente não tá muito bom para ir a lugares cheios de gente. A gente tá muito louco.

Aí pensei um pouco mais e acabei dizendo:

  • Ah… num fode! eu tô de boa de esfihas mas vamos lá porque eu quero dar uma volta.

Aí foi a vez dele de dizer:

  • Mas a gente tá muito louco… é melhor não…
  • Gersão, Gersão, vamu comê isfirra!!! Vamu sim!! - falei zoando, e continuei - vamu dá um rolê por esse admirável mundo novo!!
  • Podiscrê.

Enquanto ele foi no banheiro eu peguei a máquina fotográfica e coloquei no bolso sem na verdade saber o porquê. Ele nem percebeu. E fomos. Andando pela rua ele me dizia:

  • Vamos manter o controle irmão. O mundo real é uma coisa, o dos cogumelos é outra.
  • Mas em qual mundo você está vivendo agora? - falei provocando.

A gente foi andando na calçada se deliciando por viver num mundo tão cheio de vida. Eu ía com as mãos no bolso comentando sobre tudo. Olhando as pessoas com cara de borracha. Era aproximadamente umas oito ou nove horas de uma noite quente de uma bonita sexta-feira. Havia muitas pessoas em todo canto.

Quando chegamos na Casa das Esfihas eu comecei a me “coçar” todo, quero dizer, sem estar sob efeito de nada eu já me sinto mal ao estar exposto a gente estranha, mas durante a trip estava muito mais sensível às coisas, e isso potencializava também o mal estar. Parecia um bicho me coçando todo. O Gerson pegou apenas duas coca-colas enquanto algumas pessoas estranhavam o nosso comportamento e, acredito eu, o tamanho das nossas pupilas.

Pegamos, acendemos um cigarro (engraçado como me lembro de algumas fumadas estratégicas durante as trips por aí). A gente foi andando na rua e ficamos conversamos sobre liberdade, regras e algumas filosofices de buteco. Falávamos sobre valores que a sociedade leva em consideração e outras coisas mais. O papo fluía de maneira suave e peculiar. É como se o mundo tivesse se tornando simples e a solução dos problemas da humanidade estivessem na cabeça de dois manés andando na rua. E falávamos alto. Todos podiam ouvir. E que ouvissem! Não importava o que pensassem de nós naquele momento. Estávamos em contato com o infinito e o infinito transcende de longe o julgamento míope e careta.

Seguimos em direção a casa de um colega - o Bira. Na verdade eu não sei o que faríamos lá, pois estávamos alterados demais e passar pela família dele seria um problema. Falei:

  • Gerson… acho que a gente tá louco demais para ir lá. A gente vai ter que passar pelo pessoal da família do Bira e aí vai ser foda.
  • Qualquer coisa a gente fala que tá bêbado.
  • Hmmm. Boa idéia!

Quando o Gerson do lado de fora do portão chamou o Bira me bateu um desespero, pois vi sua irmã vindo em direção à nós. Fui correndo ao orelhão e fingi estar telefonando para minha casa. Fiquei lá falando sozinho enquanto o Gerson improvisava um social. A irmã dele falou para nós entrarmos que o Bira estava em seu quarto com sua namorada.

O quarto do Bira fica separado da casa de sua família, de maneira que é possível chegar até ele sem passar pelos seus pais. Então fomos rapidinho e batemos na porta do quarto. Alguém lá de dentro perguntou:

  • Quem é?
  • Ô Birão. Sou eu e o irmão. Era só pra saber se você tava aí. Já estamos indo embora. Tchau - disse o Gerson ao perceber que a luz do quarto estava apagada e que provavelmente o Bira estava transando com a namorada.

Saímos correndo e dando risada, o que acabou por fazer algum barulho. A mãe do Bira perguntou:

  • O que tá acontecendo aí? Que barulho é esse?

O Gerson falou num tom de voz alto, como que falando mais para a mãe do Bira ouvir do que pra mim:

  • Ô irmão… nunca mais bebo com você. Tu toma uma cerveja e já fica loucão assim! - Depois respondeu - ô Martinha… a gente tá esperando o Bira aqui, tá?
  • Ah… tudo bem…

O bom é que o Gerson parece que consegue fazer um social em qualquer estado de consciência. Ficamos no portão do lado de fora da casa do Bira, e este chegou até nós e falou:

  • Que vocês querem seus porras?
  • Ô Birão… a gente só veio aqui pra ver se você estava aqui.
  • Ô Gersão, não fode! Eu estava transando, cacete!

O Gerson pegou um pedaço da pizza que o Bira segurava e voltou a falar:

  • Depois aparece lá em casa pra gente fumar um.
  • Se der certo eu apareço lá…

Fomos indo embora, mas aí o Gerson correu novamente até ao Bira e disse:

  • Ah… detalhe: a gente tá bem louco de cogumelo!
  • Seus filhos da puta!

Seguindo a rua decidimos que ao invés de irmos pela avenida principal caminharíamos através de uma estrada velha. Fomos seguindo. Depois mostrei a câmera para o Gerson. Ele falou:

  • Por que você trouxe a máquina?
  • Sei lá…
  • Ah… então vamos tirar fotos!

Ele começou a tirar umas fotos noturnas da estrada. Também tirava fotos de algumas pedras jogadas em qualquer canto por aí. Segundo ele “tudo estava perfeito para ficar numa foto”. Aí a gente conversou sobre várias coisas que só mesmo os cogumelos para trazerem ao limiar do verbo.

Estávamos andando e num determinado momento o Gerson apontou a máquina fotográfica para mim e falou:

  • Pow irmão vou tirar uma foto tua!

Mas eu olhei aquela lente em minha frente e me assustei. De um estado calmo e sereno agora eu passava a ficar tenso e incomodado. O fato era que aquela máquina me eternizaria! Era com aquela roupa e aquela cara que eu gostaria de ser lembrado para sempre? Ora, eu nem queria ser lembrado pelas fotos! E aquela lente continuava me secando enquanto o Gerson dizia:

  • Ah! Estragou a foto! Fica normal! Você tá com cara de assustado!
  • Mas não dá pra ficar normal Gerson. Essa lente me olhando é foda!
  • Quê isso! É só uma foto! Só uma imagem.
  • O problema é que é só uma imagem!

O Gerson foi tentando me convencer a ficar calmo, mas isso era quase impossível e ele acabou tirando uma foto em que eu estava assustado mesmo.

Talvez aquele tenha sido o meu momento mais instrospectivo da viagem. Pensei sobre o que na verdade eu representava para os outros. Me perguntava: “afinal, quem eu sou?”. Ora, eu não sabia dizer. Na verdade tinha uma idéia do que era e do que representava para os outros, mas provavelmente era uma idéia falsa, porque era a MINHA idéia de mim mesmo. E a foto então? Me guardaria num pedaço de papel, mas eu mesmo não podia ser aquela imagem no papel! Eu tenho movimentos, respiro, converso, etc. A foto captura apenas uma imagem morta da grandeza que é viver. A foto é um momento, mas não explica a origem, isso é, o que aconteceu para se chegar àquele momento, e o pior: às vezes explica incorretamente onde esse momento levará! Incorretamente porque uma imagem estática pode apenas mostrar probabilidades de determinadas coisas acontecerem, mas nunca certezas. E era uma lente. Pronta a capturar uma imagem. Enigmática. Estática. Fixa. Parada. Morta.

Fomos voltando. Sentia que o pico da viagem já havia se passado. Depois começou a chover. Como eu estava com a roupa que usaria para ir na casa da minha vó no dia seguinte, peguei a chave com o Gerson e fui correndo para lá, enquanto ele preferiu tomar banho de chuva. Aí cheguei em sua casa. Já estava passando a onda. Fiquei escutando Belle & Sebastian de novo.

Quando ele chegou a gente ficou conversando. Ele disse que aquele era seu “ano novo”, pois no reveillon do calendário ele teria que trabalhar (ele trabalha de vigilante noturno em um condomínio) e aquilo que vivenciava era seu verdadeiro ano novo. Até alguns rojões ou trovões o saudaram. A chuva lavou sua alma e o Gerson depois daquele dia nunca mais foi o mesmo (mesmo nos dias posteriores à trip). Ele deve ter sido iluminado naquele dia. Juro pra você.

Enquanto isso eu estava muito feliz. Não ao ponto de ter mudado minha vida, como aconteceu com ele, mas estava contente. Estava recarregado de energia para suportar o mundo. Meu olhar dilatado, sombrancelhas firmes, o corpo se esquivando de cada hostilidade do Mundo Cão. EU SOU MININU DU MATU!!

O Gerson foi ao banheiro, e enquanto eu estava sentindo a brisa ir embora pensei nos efeitos como se fossem uma presença. Falei para essa presença:

  • Não vai embora agora não! Fica mais um instante e me apresenta mais uma visão.

Mas aquela presença dizia no meu coração:

  • O que tu precisava aprender comigo tu aprendeu. O resto fica para a próxima.

Me deitei no chão e dormi ouvindo Velvet Undergound.

← Voltar ao índice

[2002-02-12] - QUEBREI MINHA PROMESSA

Sobre

Entre 2001 e 2003, eu tinha lá meus 19, 20 anos. Trabalhava desde os 14 em uma multinacional, em tempo integral — oito horas por dia, como gente grande. Levava o trabalho a sério, mas, na verdade, meus maiores focos de interesse eram outros: drogas, sonhos e as possibilidades de alteração da consciência. Olhando para trás, percebo o quanto eu era obsessivo com esse tema.

Não sei exatamente o que eu buscava. O segredo da vida, talvez.

Sempre que surgia uma oportunidade, metia a mochila nas costas e viajava para algum lugar onde pudesse fazer uso de alguma substância, com tempo e espaço para deixar a experiência acontecer. São Thomé das Letras era um dos meus destinos favoritos.

O relato que se segue, no entanto, é muito mais sobre aquele contexto de vida do que sobre o uso de substâncias em si. Quimicamente, essa viagem não trouxe grandes experiências. Mas as figuras quase míticas que conheci — o “santo bêbado” e o “bobo divino” — me marcaram de um jeito profundo, muito além de qualquer efeito químico.

Incluo este relato aqui mais por carinho a esses encontros do que por sua relevância direta ao tema do livro.

Se o leitor estiver mais interessado apenas nas experiências com substâncias, sinta-se à vontade para pular este capítulo. Não vai perder nada — ou pelo menos não no que diz respeito às experiências com psicoativos.

Relato

PARTE I

Era uma sexta-feira chuvosa, daquelas típicas de fevereiro, com o Carnaval batendo à porta. Saí do trabalho e fui direto pra casa do Sérgio, meu parceiro de viagem. Íamos juntos — mais uma vez — para São Thomé das Letras.

Mas o clima, tanto fora quanto dentro de mim, não ajudava em nada. A chuva caía sem parar, meu coração apertado remoía um fora recente de uma menina que eu gostava, e o Sérgio, pessimista como nunca, insistia que algo ruim ia acontecer. Ele nunca tinha encarado uma viagem longa dirigindo e estava visivelmente nervoso.

Mesmo assim, fomos. Cinco horas de estrada sob chuva pesada até chegarmos em Três Corações. A cidade me trouxe de volta memórias de uma viagem anterior — aquela em que fui mais ou menos preso, e na qual fiz uma promessa a Deus: não fumar mais maconha. E desde aquele dia, juro, eu vinha cumprindo. Foi difícil, principalmente convivendo com uma galera que inovava diariamente na arte de chapar. Era chá no narguilé, água gelada, palha de milho, seda colorida, cachimbo artesanal… fumavam pra ensaiar com a banda, pra ver filme, ouvir som ou só bater papo. Era como se tudo girasse em torno da cannabis. Mas eu resistia. Havia prometido, e promessa é promessa.

Chegamos à estrada de terra que leva até São Thomé lá pelas dez da manhã. Estava intransitável. Ficamos horas atolados no barro, enquanto um caminhão tentava ajudar outros carros. Minha mente oscilava entre a frustração amorosa da noite anterior e a expectativa (ou seria esperança?) de achar cogumelos nessa viagem.

Quando finalmente chegamos na cidade de pedras, tudo parecia igual: os hippies, o vinho barato, a gente simples, as pedras molhadas… a mesma São Thomé. Nos hospedamos num quartinho mofado com frases pixadas na porta:

“Não fume cigarros, pois pulmões você tem apenas dois. Fume maconha pois neurônios você tem milhões.”

“Why drink and drive if I can smoke and fly?”

O Sérgio estava chocado com tudo aquilo. Nunca tinha visto tanta gente esquisita junta. Nunca tinha ficado num muquifo daquele. Eu ria por dentro. Lá estava ele, o menino certinho, perdido no caos místico de São Thomé — ao lado de mim, o Mininu du Matu, que não sabia se estava se iluminando ou só despertando uma esquizofrenia latente. Mas o que eu queria mesmo era que o sol abrisse logo pra sair por aí atrás de uns cogumelos.

O Sérgio reclamava de tudo: a chuva, o povo, a cidade, o quarto, o cansaço. Saímos pra dar uma volta. Mesmo com o tempo fechado, a cidade estava cheia. Acho que ele esperava encontrar um lugar místico, cheio de gente elevada, em busca de espiritualidade. Encontrou um bando de malucos bêbados, tocando Raul Seixas e fumando baseado.

E lá estava eu, entre a caretice do Sérgio e a loucura da cidade, sem poder fumar, sem vontade de beber, e com medo de não encontrar nem um mísero cogumelo.

Mas São Thomé, com ou sem Harry Potter, tem algo que mexe com a gente. De vez em quando vinha um bem-estar inexplicável. Outras vezes, um vazio. Ondas de sensação. Uma espécie de desespero manso: “o que eu tô fazendo aqui?” — seguido de “nossa, como é bom estar aqui.” Talvez nas viagens anteriores eu nunca tivesse sentido isso por estar sempre chapado.

Fomos até o Cruzeiro, lá em cima, no meio das pedras. Ali, o bem-estar era mais forte. Tudo fazia sentido: o vento, o frio, a vista. Seguimos até a pirâmide — que, na real, é só uma construção de pedras com teto em forma piramidal, mas que virou ponto de encontro dos mais doidos: maconha, cola, vinho, violão, devaneio.

Sentamos ali por um tempo. Muita gente falando, rindo. Até que uma voz se destacou:

“…bola de cristal, duende, bruxa, vassoura… essas coisas eu num acredito! Só acredito no meu Jesus Cristo e na minha Virgi Maria!”

Na hora, sorri. Há poucos dias eu tinha chegado a uma conclusão parecida. Não sobre a Virgem Maria, mas sobre essa sede desmedida por misticismo. Até escrevi um artigo num fórum, intitulado:

Mamãe… Quero Ser Harry Potter!

Olá!

Bom… quero falar sobre uma coisa que tenho certeza que um monte de gente não vai gostar:

“Até onde vale a pena procurar ‘ampliar a consciência’?”

Quero dizer, claro que deve ser bom montar numa vassoura e sair voando, ou ler a mente de um mané, ver o futuro numa bola de cristal e fazer sexo com os sentidos ampliados, mas e aí?

O fato é que com essa onda de Nova Era, as pessoas andam buscando uma espiritualidade que no fundo me parece apenas estética e vazia.

Uma vez uma profeta orou pra mim e Deus falou: “eu permito, mas não é assim que deves me buscar”. Foi exatamente na época em que eu tava viajando nessa coisa de chakras e “superpoderes”… e aí, numa bela viagem de cogumelo, eu cheguei a conclusão que eu tô aqui nesse mundo material para aprender a viver nele. O espiritual tem a sua hora. Minhas vidas passadas apenas me trouxeram até aqui, e o futuro é indeciso e cheio de possibilidades… o importante é o aqui e agora!

Não estou dizendo que não exista essas coisas, mas me pergunto: até onde este é o caminho?

Decidimos sair da pirâmide, mas estava começando a chover forte. Íamos sair na chuva mesmo, até que o cara que havia falado de Jesus Cristo e Virgem Maria me pediu um cigarro. Ele estava bêbado. Dei o cigarro e ele falou:

  • Aí, ocê é meu irmão! Ocê tem um bom coração.
  • Tsc… quê isso. Cigarro e água não se nega… - falei meio sem saber o que dizer.

Ele olhou bem nos meus olhos e falou:

  • Se um dia ocê tivé comendo um lanche e vê um cachorro perto d’ocê, num espera ele pidi não. Oferece um pedaço. Os cachorro também é fio de Deus. O cachorro num vai pidi pr’ocê porque ele num sabe falar. Ocê é que tem que dar o pedaço do teu pão pra ele.
  • É verdade.
  • Hoje é ocê que tá me dando um cigarro. Amanhã a gente tá se encontrando por aí e ocê num tem um cigarro. Aí eu te dou um cigarro. As coisa é assim meu irmão! Tem que ter coração! Amor no coração! - disse com as duas mãos no lado esquerdo do peito e com um sorriso que era banguelo mas não vazio ou amarelo.

Ele pegou uma garrafa, deu um gole e falou:

  • Toma um gole de pinga.
  • Nem… tô sossegado…

Ofereceu para o Sérgio também, mas o Sérgio não quis. Era interessante o jeito que ele falava. Era com vontade. Seu olhar não era interesseiro e suas palavras não eram decoradas. Tive certeza que eu estava frente a um homem santo. Bêbado mas santo. Ele falou apontando para o horizonte verde que era lavado pelo céu:

  • Olha isso aí! É tudo criação do nosso Pai. Ele deu isso pra todo mundo. Ele é o criador disso tudo! Cê vê como ele é bondoso?
  • É… - aí eu já me empolguei, afinal, assuntos espirituais muito me interessam, mas geralmente não tenho com quem falar. Continuei - e é engraçado que uns querem ter mais que outros sendo que no final nada é de ninguém.

Ele pegou em seu próprio braço e falou:

  • Isso aqui é pó! A matéria num é nada! Nóis é espírito!

Ele deu um sorriso que eu entendi como: “você entende o que eu tô dizendo”. Depois foi pra fora da pirâmide, onde chovia. Lá ele bebeu a água da chuva que escorria de uma pedra da pirâmide e depois falou:

  • Essa água tá toda cheia de micróbio, mas eu num ligo! Eu num vou ficá doente porque eu também sô parte da natureza! Tem que ter fé meu irmão! Com fé não existe doença.
  • É… e quando cê morre o pó do teu corpo volta pra natureza. Tu faz parte da terra.

Sorriu e disse:

  • Cê vê. A gente acabou de se conhecer, mas parece que a gente já se conhece há muito tempo né não?
  • É… a gente já se conhece de espírito.
  • Podiscrê! Tá vendo aí! Ocê é meu irmão! Nossos ispírito se bateu!
  • Irmão de espírito, né não? - falei ainda sem saber o que dizer.

Ele sorria. Me sentia bem conversando com ele. Era alguém que parecia que entendia o que eu falava e eu também entendia o que ele falava. Algumas coisas do espírito são difíceis de explicar, mas nossa conversa não tinha palavras difíceis e exprimia umas coisas profundas. Seu nome era Vitor mas era conhecido por Titio. Ele havia vindo de Varginha/MG com seu amigo Lourencinho.

  • Tá vendo aquele ali ó! - disse apontando para seu amigo que falava com um outro pessoal - ele sabe muito mais que eu. Ele tem muita coisa pra ensinar. Muito mais que eu!

O Lourencinho era meio louco da cabeça. Ele era mais teatral, isso é, representava tudo que falava. Era também mais divertido e prático. Conhecia São Thomé muito bem e se encarregava de conseguir pinga para eles tomarem. Ele era menos filosófico que o Titio. Eu ficava olhando. Ele só zoava o tempo todo! Era meio confuso seu jeito de falar, apesar de ter um coração do tamanho do mundo. Não entendi direito o que ele tanto tinha para ensinar. Achei que o Titio apenas estava sendo humilde ao dizer que o Lourencinho sabia mais da vida que ele próprio.

O Titio chamou o Lourencinho e falou pra ele:

  • Aí! Esse é meu irmão! - disse apontando para mim - acabei de conhecer, mas parece que a gente se conhece há muito tempo! - depois olhou pra mim e falou novamente - o Lourencinho é inteligente! Ele toma pinga, fuma maconha, toma chá. Ele é loucão, mas tem um monte pra ensinar.

Então fiquei batendo um papo com o Lourencinho, não porque estava interessado apenas em aprender com o Titio ou com ele. Estava apenas lá querendo papear e conhecer pessoas. Enquanto isso o Sérgio falava com o Titio, mas eu não acompanhei o diálogo dos dois.

E o Lourencinho era eufórico e divertido! Falava rápido sempre interpretando com as expressões faciais ou com as mãos o que falava. Ele pegou uma pedra que estava na parede da pirâmide e falou:

  • Quando a gente tem um pobrema - disse apontando para o buraco que ficou na parede depois de tirar a pedra - a gente tenta tapar ele - aí ele pegou uma outra pedra da parede e colocou no buraco que havia aberto. Apontou para o novo buraco que havia ficado na parede e concluiu - mas aí fica um outro buraco para ser tapado. E a gente vai tirando a pedra de um lugar para tapar um buraco, mas aí abre outro, e tira, e põe, e tira… nunca acaba!

Não entendi o que ele realmente quis dizer com aquilo. Nem sei se foi exatamente isso que ele disse. Depois ainda falou sobre Varginha, o local onde eles moravam. Disse que sua família era rica, mas no entanto ele gostava mesmo era de andar como andava: livre e improvisando a arte de viver. Aí falou novamente interpretando:

  • Ocê entra no bar. Só de ocê pedir uma pinga o cara já te atende mal e num vê a hora de ocê ir embora porque ocê tá sujo e fedendo e vai assustar a freguesia. Mas se ocê tá bem arrumadinho e pede uma cerveja aí o cara te trata bem e puxa conversa. Cê vê como é as coisa? Memo com dinheiro no bolso pra pagar a pinga ocê tem que andar bem arrumadinho pra ser bem atendido.

Era mesmo verdade isso que ela falava. Mas porque afinal de contas ele estava dizendo isso?

Só de ver seu jeito espontâneo de falar e interpretar as coisas eu já podia entender o que realmente o Titio havia dito: o Lourencinho sabia ser feliz. Sabia ser espontâneo e sincero. Ele não tinha vergonha. Era como uma criança esperta e cheia de admiração pela vida. Um cara que achava o mundo dos homens uma coisa muito estranha. Um cara que sabia ser feliz e não entendia porque o mundo é tão complicado. Era um cara que cantava em voz alta e desafinada:

Dizem que sou louco
Por eu ser assim
Se eu sou muito louco
Por eu ser feliz
Mais louco é quem me diz
Que não é feliz
Não é feliz

Puxa, não posso negar que no momento em que me recordo e escrevo essas coisas, uma saudade me atormenta! Como eu gostaria de poder bater um papo com aqueles caras novamente!

Então após me infiltrar no mundo do Lourencinho o Titio falou:

  • Agora todo mundo apaga o cigarro por favor. Eu quero fazer uma oração.

Os turistas que estavam lá não entenderam o porquê daquilo, mas mesmo assim quem tinha cigarro aceso ou jogou fora ou apagou. Então o Titio se ajoelhou no chão, abriu os braços e, olhando para o céu, rezou Ave Maria… mas em francês. Achei muito bonita a devoção e fé que ele tinha. Olhava para o céu, mas não era o céu. Ele ficava imerso num infinito nada e rezava. E apesar de eu não entender francês, podia entender o que dizia através do seu tom de voz. Era algo que nunca vi em igreja nenhuma. Não é o pastor que empina o peito e grita “glória Deus”, mas um cara sem o mínimo de vaidade, taxado de bebum louco por muitos que estavam lá na pirâmide. Era um cara vestido em roupas simples, sem nenhum traço de vaidade visível! Um cara que antes de terminar a oração colocava as duas mãos no lado esquerdo do peito e dava um sorriso para a Virgem Maria que ele tanto acreditava. Não havia levitações, milagres, vassouras voadoras ou bolas de cristal. Havia um ser humano ali na minha frente. Um ser humano que aceitava a idéia de ser humano e que ao invés de ficar numa busca pelo sobrenatural sabia o que era viver nesse mundinho real. E agradecia Deus por isso.

Quando a chuva cessou nós fomos saindo da pirâmide. O Titio abriu os braços, respirou fundo e falou:

  • Olha isso tudo. Isso é a maravilha de Deus! Criador e criatura.
  • Podecrer… e acho que vai até abrir um sol né não?
  • Mas e se não abrir um sol? Isso tudo vai continuar sendo maravilha de Deus! Criador e criatura. Qual é a criatura que pode questionar o criador? O nome já diz: criador e criatura. Qual é a criatura que vai reclamar do que faz o criador?

Vixi. Aquilo veio bem no meu osso, pois estava numa fase ruim em que andava questionando Deus em um monte de coisa. Principalmente me perguntava do porquê ele não falar comigo. Caraio. Bastava ele falar: “aí cara, eu sei que você existe” que meu mundo seria outro. Mas até isso ele me negava! Ficava lá quietão. Eu começava a cogitar a possibilidade de não existir Deus nenhum. Aí pensava com meus botões: “caraio… eu tô ferrado! O mundo espiritual é uma mentira e o mundo material é uma porcaria”. Não cheguei a pensar em me suicidar, mas era uma sensação de total desamparo. Me sentia sozinho no escuro. Mas de repente o que eu presenciava vendo aquele indivíduo maltrapilho era algo que transcendia essas coisas. Um tipo de fé não intelectualizada. Não sei bem o que me cativava, mas tinha certeza de estar diante de um homem santo.

Eu falei:

  • Pô cara! Acho que entendo o que tu diz! Pena que o resto do mundo não saiba apreciar isso tudo né não?
  • Mas se tu sabe, então vai! Seja um profeta meu irmão! Grite alto! Fale tudo pra todos! Não escolha para quem falar, vai ver que é pra isso que tu tá vivo!

Ele falou isso e eu pensei que tinha tanto medo de dizer minhas opiniões para as pessoas, preocupado com o que poderiam pensar de mim. Aí olhava ele: não era um indivíduo lá muito apresentável, mas não se importava com o que pensavam dele.

Voltamos eu e o Sérgio para a cidade. O Titio e o Lourencinho ficaram na pirâmide pois eles estavam dormindo por lá e, além disso, havia chegado uns caras com uma garrafa de pinga. Eu e o Sérgio conversamos um pouco. Eu estava entusiasmado com a figura que havia conhecido. Tinha certeza que havia algo de muito santo e precioso naquele cara apesar de seu jeito maluco. Definitivamente não é o tipo de guru espiritual que se espera encontrar, mas para mim ele era sua santidade O Profetão Bêbado.

Já na cidade nós decidimos que compraríamos um vinho e levaríamos para eles. Aí realmente compramos, mas começou a chover novamente, e também já começava a escurecer. Subir nas pedras seria muito foda. Eu comecei a dar umas goladas no vinho enquanto ficamos se escondendo da chuva, andando pela cidade e olhando as lojinhas de coisas místicas. Numa mini-galeria havia alguns quadros pintados. Fiquei apreciando enquanto o Sérgio entrou numa loja. Um quadro de um elefante com cores muito fortes me chamou atenção.

Entrei na loja em que o Sérgio havia entrado. Haviam vários trabalhos de pintura. As assinaturas eram as mesmas do quadro do elefante. Bacana, estava frente ao pintor psicodélico. E ele falava com o Sérgio sobre um tal de Osho. Eu estava meio alterado pelo vinho e entrei de gaiato na conversa. Na verdade “a conversa” não existia porque era só o cara que falava. Dizia sobre experiências transcendentais, sobre Osho, uma muié que fumava um charuto para poder se manter no chão. Falava que Jesus ter andando nas águas não foi nada, pois na Índia isso é muito comum. Dizia que o conhecimento de Jesus não era quase nada perto do conhecimento transcendental de Osho. Falava de Nietzche, Schopenhauer. Aí eu ia perguntar alguma coisa mas ele não respondia e ficava falando e falando. Vomitava palavras decoradas dos trocentos livros que já leu por aí. Eu não sentia sinceridade e coração em suas palavras, e ficava bebendo e bebendo enquanto ele falava. E o cara dizia que fora iluminado quando o mestre dele deu um soco no peito dele e falou que freqüentava o Daime e…

Ôpa! Daime?!

  • Por aqui tem algum centro do Daime? - perguntei.

Ele falou rapidamente para eu me informar num certo local e então voltou a falar sobre o Osho e sua doutrina. Ah… agora podia falar a vontade de Oshos e coxos! Agora eu estava mesmo era pensando em me informar sobre o Santo Daime e ver se tinha a oportunidade de usar a tão falada “ayahuasca”. O Sérgio voltou para a hospedagem, e eu fui ver o negócio do Daime no local que o cara falou.

Que bosta… só haveria outra reunião em julho… voltei para a hospedagem. O Sérgio estava dormindo. Eu tomei uns comprimidos de kava kava e acabei com a garrafa de vinho ao som de Velvet Underground. Fumei muitos cigarros enquanto ficava da janela olhando a chuva cair. Eu estava bem, mas não digo que estava contente. Pow… a menina que me deu o fora ainda não havia saído da minha cabeça, o tempo parecia que não ia abrir e as possibilidades de achar cogumelos no dia seguinte me pareciam remotas. Além disso, estava fechado com minha promessa de não fumar maconha.

Eu sentei na cama, olhei para o teto e falei:

  • Pô Deus. Agora quero bater um papo contigo. Vem cá. Ó, eu cumpri minha parte da promessa apesar de ter assinado o tal do dezesseis… mas e agora, de que adianta? Vê essa garrafa de vinho? Tá seca! Vê que ando tomando um monte de kava kava? Pois é… tu bem que poderia me dar um sinal e me deixar fumar maconha, que tal?

Abri uma bíblia que havia levado comigo. Estava escrito que Deus falava para um cara comer um tal de um passarinho, mas o cara falava: “ow… Deus, mas esse bicho é impuro!” aí Deus falava “mas se sou eu que estou falando para você comer, quem é você para dizer que é impuro?” Se não me engano é uma passagem do livro de Atos.

Pude imaginar a conversa:

  • Rapaz, fuma aí sua maconha!
  • Mas senhor, eu havia prometido que pararia com isso. Não seria certo eu quebrar a minha promessa.
  • Se eu estou falando para você quebrar a tua promessa, quem é você para mantê-la?
  • Yuppie!! Então enrola um aí pra nóis Senhor!!

Mas então achei que aquilo era muito bom pra ser verdade. Fechei a bíblia e abri de novo, mas desta vez não saiu nada que me desse alguma resposta. Falei:

  • Ok, se eu tiver que continuar nessa minha abstinência tu me dá um sinal, senão amanhã eu volto a fumar meu baseadinho.

Aí fumei mais um cigarro e fiquei olhando a janela. O muquifo em que estávamos ficava ao lado de um bar, num sobrado. Lá da janela era possível ficar olhando as pessoas passando na rua lá embaixo. Muita gente bêbada andando e umas gotinhas de chuva caindo. A noite estava um pouco fria. Deus não havia dado nenhum sinal. A chuva continuava caindo na cidadezinha como sempre… que angustia que eu sentia… será que devia quebrar minha promessa? Uma voz dizia: “claro, afinal Deus nem te livrou do dezesseis e nem te deu um sinal”, mas outra dizia: “você prometeu… agora já foi!”

  • Ow Deus… tu não vai dar nenhum sinal?

Não deu.

Então tá certo. Foda-se. Passe livre para fumar maconha!

Fui dormir alcoolizado. Amanhã seria um novo dia. Seria um Green Day. Boa noite.

PARTE II

Então era domingo! Acordei com um pouco de ressaca pela beberagem do dia anterior. Eu e o Sérgio fomos tomar café. Ai ai… que moça mais linda que atendia lá na padaria. E que aliança mais horrorosa em seu dedo!! Ela era tão simpática. Nessa altura do campeonato eu já havia esquecido um pouco do meu coração partido e do fora que havia tomado na sexta-feira. Estava mais tranqüilo.

Então compramos um vinho e fomos seguindo em direção às pedras. Fui levando a minha máquina fotográfica no pescoço e a garrafa de vinho na mão. Era meio complicado de subir nas pedras carregando o vinho e protegendo a máquina de bater nas pedras, mas para mim aquele era meu território! Estava novamente em casa! No meio das pedras e da vegetação de cerrado. Infinitos pastos se escondiam por trás da neblina branca no horizonte. Ali, tão perto do céu eu era novamente o Mininu du Matu. E quando estava ali em meu território eu era outra pessoa. Ficava um bicho ágil e destemido e não o garotinho tímido e triste sob o ar-condicionado no escritório. Ali eu pulava e não tinha medo da natureza, pois nós tínhamos um relacionamento íntimo. Nós nos conhecíamos e pedra alguma era capaz de me derrubar mesmo eu estando alcoolizado, segurando uma garrafa de vinho e uma máquina fotográfica.

Fui seguindo levemente alcoolizado por entre abismos e cactos. Apreciando a natureza e eternizando em fotografias a vida manifesta em suas flores exóticas. E tudo resplandecia apesar da neblina. O vento era forte e bagunçava meu cabelo. Mas o Mininu du Matu não se preocupa com penteados.

De repente começou a cair uns pingos anunciando mais uma chuva. Eu me sentia bem, mas o Sérgio estava meio gripado então resolvemos ficar um pouco no mirante, que era coberto e podia nos dar uma certa proteção da chuva.

Depois de uma meia hora esperando a chuva diminuir seu ritmo continuamos a caminhar pelas pedras rumo à pirâmide. Quando estávamos no cruzeiro o Sérgio teve problemas com a máquina fotográfica dele e resolveu voltar para a cidade. Falei para ele que eu estaria na pirâmide e continuei andando e levando a garrafa de vinho, que agora já estava pela metade. A chuva cessava e eu sentia que a água estava evaporando, pois o tempo ficou um pouco abafado. O dia não tinha aberto, mas estava um pouco mais quente.

Chegando na pirâmide encontrei o Titio, o Lourencinho e mais um discípulo deles. Era um outro maluco que não cheguei a saber o nome. Só sei que não tinha onde ficar e estava dormindo lá na pirâmide também. Era um cara discreto, mas parecia ser muito gente boa. Acabei falando muito pouco com ele.

  • E aí meu irmão! - disse o Lourencinho.
  • E aê! - ali eu deixava de ser o Mininu du Matu e voltava a ser tímido como sempre - ow.. trouxe um vinho aí pra nóis. Já tomei um pouco mas dá pra gente terminar com ele.

O Lourencinho pegou e tomou um gole, misturou com pinga, tomou pinga pura, ofereceu para o pessoal e tudo ficou bem. O Titio estava um pouco mais bêbado que no dia anterior, mas se os bêbados são mais sinceros, então o que dizer de um cara que ao beber só fala sobre paz e amor? Claro que ele tava bem loucão e às vezes acabava me fazendo ficar envergonhado. Uma turista tava lá e ele chegou nela e falou:

  • Tá vendo esse aqui? - apontando para mim - esse aqui é meu irmão! Ó… nóis se conhecemo onti, mas parece que a gente já se conhece há muito tempo!
  • Vocês até são parecidos né? - ela falou brincando.
  • Ó! Aí! Tá vendo só! A gente até é parecido! - ele olhou para ela e falou dando risada - só a diferença é que ele ainda tem dente, né não?

A pirâmide estava num clima muito alegre e ora ou outra o Titio falava para eu descruzar os braços e abrir o coração. Eu não entendia o que queria dizer com aquilo. E o pior é que ele não era o primeiro a me dizer isso! Na época em que eu ia na igreja evangélica com minha mãe eu já tinha ouvido outras duas ou três profecias que me diziam para abrir o tal do coração. Mas oras, o que seria na verdade abrir o coração? Era isso que eu não entendia! O que era abrir a porra do coração? Enfiar um bisturi no peito e deixar tudo sangrar?

Então apareceu um cara com um violão. Ele tocava muito bem, mas era muito tímido. Por ser tão discreto ninguém nem o notava. Aí eu me sentei perto dele e fiquei ouvindo ele tocar Wish You Were Here. Ele solou a música direitinho e também cantou direitinho. Achei aquilo muito bacana. Ele me passou o violão e eu toquei alguma coisa sem cantar. Só toquei. Era bom compartilhar um violão no anonimato, mas aí o cara foi embora e eu voltei a ficar lá só vadiando e batendo um papo com o Titio. Ele agora preparava um cigarro de palha. Ele gritou:

  • Ô Lourencinho, ô Lourencinho! Pega a pinga aí pra nóis!

Ele deu uma golada e depois me deu sua pinga. Dessa vez eu tomei. Brrr… mas só um golinho! Tá louco! Queimou tudo! Fiquei conversando com o Titio e num determinado momento falei que tava afins de fumar maconha. Na mesma hora ele foi pra fora da pirâmide e já me chamou. Chegou num pessoal e falou:

  • Ow… tem como deixar meu irmão aqui fumar c’oceis?
  • Ôpa… podi crê… fuma aí…
  • Esse aí é meu irmão! Conheci ele ontem, mas nosso espírito se bateu! Parece que a gente já se conhece há muito tempo!
  • Podi crê… ô pega aí, fuma aí…

Olhei para aquele baseado na minha mão. Há quanto tempo hein? Pensei que ia ser mais dolorido quebrar minha promessa, mas não foi um bicho de sete cabeças não sinhô. A fumaça veio me invadindo na primeira tragada. O gosto adocicado da maconha me inebriando, meu corpo foi se tornando leve, fui inspirando mais fumaça, mais, não agüentava mais fumaça… prendi. Quieto. Dava para segurar um pouco mais. Levantei a cabeça. Não dava mais! Precisava de oxigênio. Expirei lentamente… então respirei normalmente umas duas vezes e logo em seguida mais um tapa no baseado. Os olhos cirrados. Uma luta para tragar o máximo que podia, inspirei com vontade, o corpo foi ficando cada vez mais leve, o pulmão ia pesando, mais, mais, mais um pouco, um pouquinho ainda mais, deixei a coluna ereta e estufei a barriga para meu diafragma descer e sobrar um espaço livre para meus pulmões se expandirem um pouco mais. Mais, mais. Não cabia mais. Segurei a fumaça e passei o baseado. Segurei mais ainda. Soltei um pouco de fumaça e inspirei oxigênio por cima, soltei mais um pouco e inspirei novamente, e fui indo nesse ciclo até estar com os pulmões vazios novamente. Pronto. Quebrei a promessa. Estou muito louco! Já eras, fumei maconha, Senhor!

As vozes distantes ecoavam novamente em meus ouvido. Meus sentidos estavam novamente ampliados. As pessoas que me deram o baseado me perguntaram de onde era e pra onde ia. Conseguia me comunicar. Nada mal. Uma bonita garota que estava no meio desse pessoal parecia me olhar, mas talvez fosse apenas impressão. Era melhor nem pensar nisso aquela hora. Agora queria apenas aproveitar Mary Jane. O pessoal dizia que numa cidade vizinha ia ter uma rave. Eu falei que o céu ia abrir e se Deus quisesse ia rolar uns cogumelos. Um cara falava que via um cogumelo lá num pasto perdido no horizonte. “O cara tá querendo me zoar ou tá querendo parecer engraçado?” - pensei. Concluí - “Ora… não sei… fumei maconha”. Dei risada.

Então a partir daqui não me lembro da ordem cronológica dos fatos, mas isso também não muda em nada. Sei que a parte de cima da pirâmide havia secado. Um pessoal ficava lá em cima conversando e fumando. O pessoal que me arrumou o baseado subiu também. Então eu o Titio também fomos. Fiquei com medo dele, já que ele estava bem alcoolizado e não era o Mininu du Matu. Eu estava bem chapado e o vi subir. Fiquei preocupado, mas foi sem problemas. Então foi minha vez. Subi numa boa.

Uau… lá estava eu em cima da pirâmide chapado de maconha novamente! Fiquei um tempo tentando conversar com os caras que falavam da rave e o Titio foi para o outro lado da pirâmide junto com o Lourencinho, o discípulo deles e mais uma galera maluca. Ali entre o pessoal que eu estava todos se encontravam bem alterados. Falávamos pouco. Eles eram estranhos e me causavam paranóia. Me sentia muito inferior à eles, pois para mim eles eram “gente moderna” que sai pra balada e estão sempre “ficando” com alguém… eu era um mané capira vindo de um mundinho sem agitação ou muito movimento, a não ser o movimento de cores na cabeça. Eu era um careta drogado. Um quadrado que gostava de cogumelos… aquela paranóia me incomodou e então resolvi ir para onde estava o Lourencinho, o Titio e o resto do pessoal.

Lá em cima o Titio me trouxe um outro baseado. Agora um inteiro. Acendi o negócio e fiquei fumando. Lá longe vi que o Sérgio vinha chegando por entre as pedras.

Ele chegou, mas acho que nem percebeu que eu havia fumado. Para acabar com qualquer dúvida na cabeça eu resolvi falar: “pois é… fumei maconha”. Ele não respondeu nada. Ficamos lá conversando e então apareceu o Titio com mais maconha. Ofereceu para o Sérgio, mas ele não quis. Ficamos fumando mais e batendo papo.

Sob o efeito da erva o Titio me dava uma impressão ainda mais forte dele ser um profetão. O jeito que falava e as coisas que falava não eram tendenciosas ou mundanas. O tempo todo estava a falar sobre paz e amor. Num certo momento, como se soubesse da minha promessa quebrada, ele disse:

  • Não tem problema fumar maconha. Ocê não pode é fazer mal pra ninguém, mas fumar maconha não é pecado.
  • Podiscrê.

Então apareceu o Lourencinho. Me chamava atenção a união entre os dois. Eram carne e unha. Quando o Lourencinho não estava por perto o Titio ficava o procurando por todo canto. Um negócio bonito de se ver. Lembro de uma vez que o Lourencinho falou:

  • Eu aprendo um monte com o Titio e ele aprende um monte comigo.
  • É boa a troca de idéia de informações né? - eu disse, como se fosse um bom entendedor, mas ele respondeu:
  • Não é troca de informações, é amizade.

Achei isso demais.

Num certo momento o Titio me falou:

  • Cê é psicólogo né não?
  • Eu? Sou nada cara!
  • Cê é inteligente. Já pensou um dia você escreve um livro: “o mendigo e o burguês”?
  • Quê! Eu nem sou burguês! Sô mó chinelão!

Ele deu um sorriso. Ele sabia que eu não era burguês e sabia que ele não era mendigo. Mas confesso que apesar de eu não ser burguês e ele não ser mendigo, em algum nível era assim que eu me sentia. Eu era o rapaz de óculos aprendendo com o vagabundo iluminado. Eu tava lá todo limpinho com cara de otário intelectual aprendendo com um cara todo sujo que realmente parecia um mendigo. E acho que ele sabia que eu estava pensando isso.

O Titio foi uma figura misteriosa. Outro fato que me marcou foi quando o Lourencinho pediu minha máquina para tirar uma foto de todo mundo junto. Acontece que o Lourencinho estava trêbado. Eu tive medo de ele detonar a máquina que eu tanto estimava, mas nem demonstrei meu medo e entreguei na mão dele. Depois que ele bateu a foto o Titio olhou pra mim e falou:

  • Tá vendo. Não precisava se preocupar eu tava o tempo todo olhando ele.

Mas como? Eu nem tinha dito nada! Outra vez ainda ele olhou para o Sérgio sem ele falar nada. Então disse:

  • Que isso rapaz! Tira esse preconceito do teu coração!

Aí olhou pra mim e falou:

  • E ocê tem que abrir teu coração! Descruza esses braços! Abre eles e respira bem fundo. Sente o ar. Sente a vida!

Mas acontece que o Sérgio realmente estava com certos preconceitos desde que havia chegado na cidade. Ele tinha um certo medo de ver toda aquela gente louca. Não queria se misturar. Ficava muito quieto. E eu? Ora, na época que eu era evangélico e ia pra igreja vieram até profecias me dizendo para abrir o coração. Acontece que eu não sabia o que era na verdade abrir o coração. Tive que encontrar um profeta bebum para aprender o que é abrir o coração. E era tão simples. Era absorver a vida em sua plenitude. Sentir o vento. Aceitar idéias. Aceitar as coisas. Era simplesmente aceitar as coisas. Não criar resistência. Aceitar. Um coração aberto é um coração receptivo à vida. Livre de timidez, preconceitos, egoísmo e tudo. Isso era um coração aberto!! Então era isso!!

Num certo momento o Titio apontou para o céu e falou:

  • Óia só… olha pro céu agora e faz um pedido. Mas com vontade mesmo. Com fé.

Eu não tinha o que pedir, mas a fé do Titio me impressionava. E não era fingimento. Eu convivo com o fingimento e sei as diferenças entre alguém que finge sentir algo e alguém que realmente sente algo. Ali não havia fingimento ou vaidade. Não era alguém querendo falar bonito ou dar uma de santo.

Outra coisa que me chamou a atenção foi a forma com que o Titio ia juntando as pessoas e fazendo uma espécie de corrente: ele chegava em alguém, apontava para o Lourencinho e dizia algo como “esse é meu irmão”. Então ia conversando sobre paz e amor (assunto que todos sabem um pouco) e apresentava a pessoa que acabara de conhecer a um outro desconhecido. Essa era a forma com que agia. Se era uma forma intencional ou intuitiva eu não sei.

Era realmente um sujeito misterioso…

Sei que então, depois de um tempo lá com o pessoal da pirâmide, resolvi sair dali e dar uma volta pelas pedras sozinho. Saí divagando, fumando cigarros e tal… o sol estava abrindo! Nice day for a mushroom hunting! Encontrei o Sérgio e sugeri de irmos caçar cogumelos.

Descemos até a cachoeira da Eubiose parando de pasto em pasto e não achamos nada. Num certo pasto em que paramos vi um cara falando que não sei onde poderia ter uns cogumelos… ficamos conversando e o Sérgio sugeriu de dar uma carona para ele. Seu nome era Corélio ou Coré. Sei lá…

Entramos no carro e o Coré tava falando sua história. Também falava de uns tais cogumelos bem azuis que havia encontrado uma vez. Depois falou que era daimista e que tinha um fumo ali pra gente pitar. Ôba! Se é pra quebrar a abstinência canabilística que seja com estilo! Paramos num pasto, caçamos cogumelos mas nada… nessa altura do campeonato eu havia achado apenas um cubensis e um monte de cogumelo falsificado. Então fomos para perto de um riozinho que passava num pasto e eu e o Coré fumamos um baseadinho ali. Me senti bem. Era um fumo de boa qualidade. Ficamos papeando e depois resolvemos ir mais pra frente para achar cogumelos e também visitar algumas cachoeiras.

Após conhecer um monte de cachoeiras com o Coré, eu e o Sérgio voltamos para o nosso muquifo. Eu deixei o único cogumelo que achei curtindo com mel em um copo e fui tomar banho.

Depois do banho tomei meu cogumelo com mel e falei para o Sérgio que ia dar umas voltas. Subi até as pedras e lá encontrei o Lourencinho, o Titio e mais um pessoal. O Lourencinho estava chorando como uma criança. Aquilo me partiu o coração. E fiquei ainda mais puto quando fiquei sabendo que foi a polícia que tinha batido nele. O que aconteceu foi o seguinte: os policiais subiram até a pirâmide e por eles estarem mal vestidos pensou que eles eram mendigos ou coisa parecida. Então empurraram o Titio, e nisso o Lourencinho pediu para não fazerem isso. Então deram um soco no olho dele. A tristeza no olhar do Titio. As lágrimas do Lourencinho. Triste demais. Fomos seguindo para a cidade. Chegamos em frente à um bar e como tinha um real paguei uma pinga pra eles. Depois voltei ao muquifo.

Chegando no quarto o Sérgio me perguntou como eu me sentia, já que os efeitos do cogumelo deveriam se manifestar. Minha resposta foi apenas:

  • Saudável.

PARTE III

No dia seguinte não teve nada de especial. Eu e o Sérgio fomos procurar mais cogumelos, mas não tivemos sucesso.

Gritamos num vale para ouvirmos o eco de nossa voz e fomos visitar a Ladeira do Amendoim, onde o carro sobe sozinho devido ao magnetismo das rochas. E também fomos para o Vale das Borboletas, onde não tinha nenhuma borboleta. Lá eu nem entrei na água, mas fiquei andando pelas pedras e conhecendo o local.

Durante à tarde eu e o Sérgio fomos ver o sol se pôr e tirar fotos. No caminho para subir até as pedras um cachorro começou a nos seguir. O apelidamos de Thomé e da tarde até a noite ele passou a ser um grande companheiro de viagem. Lá em cima da pirâmide, segundo o Sérgio, dava para ver a curva do vento. O que me chamou a atenção foi ver densas nuvens chovendo em um pasto enquanto um raio de sol iluminava um outro pasto. O céu visto da pirâmide é algo inacreditável, pois a visão é de 360° graus. Esse foi o dia que me rendeu as melhores fotos que eu já tirei.

Então depois que o sol foi embora nós voltamos para a cidade lá embaixo para comer alguma coisa. Quando escureceu o céu estava limpo e dava para ver as estrelas brilharem, então fomos guiados pelo Thomé novamente até as pedras. Era legal notar que mesmo na escuridão as pedras pareciam brilhar. Encontramos um argentino e ele falava enrolado. Num certo momento ele bateu uma pedra na outra e vi sair fogo. E saía mesmo! Ao chocar uma pedra contra a outra surgia um fogo, uma faísca. Aquilo era bonito.

Então seguimos até a pirâmide. Lá ouvíamos uns malucos chapados de várias coisas cantarem um rap:

Você que cheira cola
Deixou o saquinho no chão
Os mano pisa sem vê
E te chama de vacilão
Se você cheirou sua cola
Leve o seu saquinho embora

Ou alguma coisa parecida.

Depois tentamos ir até o mirante, pois sabíamos que lá encontraríamos o Titio e o Lourencinho. Mas acontece que estava tudo muito escuro. Fomos novamente para a cidade. Lá uma mulher me pediu um cigarro, e depois me apareceu uma menina com a qual eu tinha trocado uns olhares umas horas antes. Ela estava meio bêbada e dizia para sua amiga careca:

  • E agora o que eu faço?

Eu olhei pra ela, dei um sorriso e vi ela falando de seu problema. Dizia estar confusa, pois tinha dois rapazes que gostavam dela, e em cada menino tinha algo que ela gostava. Perguntei seu nome. Brenda. Ela disse:

  • Ai, o que eu faço? Gosto de dois meninos, mas não sei com quem eu fico!

Eu olhei nos olhos dela e disse:

  • Eu ficaria comigo!
  • Ah não!! Três não!

Já era noite. Fomos num barzinho perto das pedras onde rolava um som ao vivo. A Brenda e sua amiga careca desapareceram em meio a um monte de gente. Por um tempo procurei por elas, mas depois desisti. Fiquei fumando e comprei uma garrafa de vinho. Aquele ambiente muito tumultuado me desanimava. Pensei em procurar pela tal da menina mais um pouco, mas desisti. Tava a fim de dar uns beijos, mas ao mesmo tempo, meu desejo era só sair do meio de todo aquele barulho de som alto e gente bêbada. Mas acontece que eu é que estava bêbado e acho que ela gostava de todo aquele barulho. Fiquei sentado na calçada. Um punk de um olho só sentou perto de mim.

  • Vai um gole aí de vinho?
  • Quero não… tô tomando pinga - respondeu o punk.

Ficamos lá conversando sobre música, eu fiquei pensando no olhar da tal da Brenda e bebendo. Nunca mais vi a menina.

Na manhã seguinte já era dia de ir embora. Estava de ressaca e cansado. Fomos na padaria tomar um café antes de pegar a estrada. Lá encontramos o Lourencinho e o Titio. Eles também estavam de saída e então daríamos carona à eles. Tiramos umas fotos da igreja e então entramos no carro e fomos… o Lourencinho dizia que no dia anterior tinha achado um monte de cogumelo.

Fomos numa boa ouvindo Raul Seixas. O Titio falava coisas bacanas. Falava sobre caminhos. Deu um terço de lembrança ao Sérgio e uma imagenzinha para mim. Achei bonito aquilo e guardei na minha carteira. Levamos os dois até a rodoviária de Três Corações e de lá seguimos nossa viagem para São Paulo. Estávamos muito empolgados com tudo que havíamos vivenciado. Minha mente agora estava nas palavras ditas pelo Titio, estava no carinho do cachorro Thomé, estava nas pedras que pegavam fogo, nos cogumelos que não achei, na tal da Brenda com quem não fiquei. Minha cabeça estava feliz. Meus pés estavam em uma lagoa e eu pensava nos carros atolados, nos dias nublados, nas promessas quebradas e em todas as coisas que deram erradas durante a viagem… olhei o céu azul lá fora e achei graça disso tudo.

← Voltar ao índice

Parte II - Fronteiras Perigosas: quando tudo é levado a sério demais

Relatos de 2002

O ano de 2002 foi estranho.

Pulei da infância para a vida adulta com 14 anos, quando comecei a trabalhar. Em 2002 eu já tinha 20 anos, mas, como uma árvore que cresceu em condições desfavoráveis e que vai subindo toda torta enquanto busca o sol, eu acho que eu era também assim meio torto.

Fazia coisas que exigiam responsabilidades no meu trabalho, e acho que fazia bem (fiquei mais de 10 anos na mesma firma em que comecei!). Mas minha adolescência ficou meio comprometida. Se de um lado eu era um rapaz muito ajustado, profissional, responsável, independente financeiramente da família desde criança; do outro eu tinha essa vida secreta de psiconauta, buscando oportunidades de fazer uso de substâncias, não deixando esse deslumbramento infantil ir embora.

Além disso, eu participava de uma comunidade de Internet, um grupo de e-mails. Não existiam redes sociais, nem Orkut, Facebook, nem nada assim. O mais próximo a uma rede social eram esses grupos, onde as pessoas escreviam, liam umas às outras e discutiam sobre tudo. Eu fundei um deles e nele escrevia, organizava o que outros mandavam, e montava uma espécie de revista semanal, uma e-zine. Foi ali que comecei a publicar meus relatos, minhas experiências, e outros textos também. Escrevi muita coisa, em muitos formatos, durante esse tempo.

Mas acho que eu levava tudo muito a sério. As conversas, as coisas dos grupos, e também as experiências com as plantas. E nesse tempo tive acesso a muitas plantas diferentes, e fiz diversas experiências em espaços de tempo muito curtos. Ainda que no começo as coisas tenham transcorrido razoavelmente bem — como nas experiências de Argyreia e Salvia com o Lucas —, vivi mais adiante situações que, olhando hoje com mais maturidade, sinalizavam alguns riscos.

Em algum ponto eu sentia mesmo ter atingido algum tipo de iluminação, e acreditei mesmo em umas coisas bastante duvidosas a respeito de tudo. Os hospícios estão cheios de Jesus Cristo. E a verdade é que, com ideias tortas sobre iluminação, nirvana e essas coisas, às vezes estive mais perto da loucura do que da sabedoria. Na verdade acho que sigo sempre estando mais perto da loucura do que da sabedoria, haha.

[2002-06-14] - UMA EXPERIÊNCIA COM AS ANTIGAS PLANTAS

Sobre

Foi em um feriado que teve em junho/2002 que eu e meu amigo Lucas fomos viajar. A intenção? A melhor possível: experimentar 15 sementes de Argyréia nervosa.

Eu já havia experimentado essas sementes numa outra ocasião, quando foi feita uma extração em água com sete delas. Havia sido legal e tudo, mas desta vez seria mais que o dobro da primeira experiência: seriam 15 sementes!! Fomos então viajar para Ilha Grande em Angra dos Reis. Ficaríamos na Praia do Aventureiro.

Relato

1. PREPARATIVOS

A gente pegou o ônibus em São Paulo, lá na Tietê, e depois de uma pá de hora batendo papo, ouvindo música e dormindo a gente chegou de manhãzinha lá em Angra. Aí ficamos vagando pela cidade procurando algum barquinho para levar a gente até a tal da Ilha Grande. Acontece que ainda era cedo demais e o sol não tinha nem nascido. Ficamos lá esperando algum barquinho e enquanto isso o Lucas falou sobre a última vez que foi à Ilha Grande e tudo. Falou que a ilha era grande mesmo e que haviam várias praias por lá. Nós íamos para a Praia do Aventureiro, o que levaria mais ou menos duas horas navegando de barquinho.

Depois de um tempo achamos um tiozinho de barco. Ele falou que ía para a Praia do Aventureiro, mas que tinha que esperar mais pessoas para completar o barco e tal… então ficamos lá batendo papo. O tio do barco ofereceu um baseado e a gente ficou lá fumando. Fumei com vontade mesmo. Talvez esse fosse o único baseado que fumaríamos durante a viagem toda, porque não estávamos levando nada de maconha para fumar lá.

O cara foi para a rodoviária ver se achava mais pessoas para completar o barco e nós ficamos lá esperando e ouvindo música. Quando voltou, já depois que o sol nasceu, falou que não ia mais para a Praia do Aventureiro, mas para uma tal de Praia do Abraão ou sei lá o quê… então fomos procurar outro barquinho. Por sorte achamos um que estava para sair. Aí ficamos lá navegando por um tempão.

Quando chegamos na praia já era mais ou menos onze horas. Eu fiquei surpreso do quanto a praia era bonita! Era bem selvagem mesmo. Não tinha nem energia elétrica (eles usava motor de fusca como gerador). A água era verde e cristalina. Dava até para ver uns peixinhos por lá. Fiquei um tempão intrigado com o porquê da água ser verde se o céu era azul… depois um colega meu explicou que era plânctons e coisa e tal…

Aí fomos seguindo até um camping. Não tinha absolutamente ninguém quando a gente chegou. Montamos a barraca e moemos as semente. Depois nós deixamos as pequenas curtindo em água. Foram duas garrafinhas de 500 ml com 15 sementes cada uma. O ideal então seria ficar em jejum até tomá-las, mas a gente não aguentou e acabou comendo miojo e bolachas durante a noite.

No dia seguinte acordamos cedo. Já havia algumas outras barracas lá no camping. Nas garrafinhas de água mineral estava a poção mágica. Parecia uma gasolina. O cheiro era um tanto quanto enjoativo e só de lembrar dá um nó no estômago. Antes de tomar aquilo eu fiz um copão de café solúvel. Na verdade café não é nada recomendável antes de umas sementinhas, já que ele pode dar uma “azedada” no estômago, mas mesmo assim quis tentar para ver se isso dava uma diminuída na fase de cansaço físico que já experimentei em uma experiência anterior.

Acontece que as sementes dão uma alterada bem legal na cabeça, mas existem algumas fases preliminares desagradáveis. Muita gente nem gosta delas por isso mesmo. Na primeira hora ela costuma deixar o estômago enjoado, causa vasoconstrição, dá um certo cansaço físico, tontura, dificuldade de respirar… acho que por isso não é uma droga tão comum…

Depois do café mandei a “gasolina” pra dentro. O gosto era até tragável, só mesmo o cheiro que não era dos melhores…

2. EMBARCANDO NO UNIVERSO DO LSA

A partir daqui já não me lembro com muita clareza a ordem dos eventos que sucederam, mas vou escrevendo como me vêm à cabeça:

Saímos para andar pela praia e seguimos em direção às pedras. Após uns 10 ou 20 minutos andando eu já sentia um grande desconforto estomacal. Era estranho o fato de ser um desconforto que não crescia gradualmente e sim chegava com força total. Vinha tudo de uma vez só. É como se as sementes apertassem um botão “náusea=on”.

Fomos seguindo em passos curtos e paradas “estratégicas” para amenizar a náusea. Depois de uns minutos percebi que já não estava enjoado. Simplesmente a náusea havia passado. Nada de cerimônias. Era como se agora as sementes apertassem um botão “náusea=off”. Às vezes sentia o cheiro das sementes vindo do além, mas não chegava a ser uma náusea ou uma sensação alarmante. Era só o cheiro enjoativo mesmo.

Passamos pelas pedras e continuamos andando pela areia fofa. Aí percebi que o café não havia adiantado de nada. Sentia-me cansado. Uma vontade de não me sustentar no chão e simplesmente cair. Ficar lá no chão estirado sob o sol. Não era um princípio de bad-trip ou uma coisa desesperadora. Era apenas um cansaço desgraçado, uma baita falta de vontade de caminhar ou fazer qualquer coisa.

Eu e o Lucas resolvemos nos sentar na areia para descansar. Fiquei olhando as ondas indo e voltando. Pareciam brincar entre si. Uma ía, outra vinha por cima, depois uma outra puxava as duas de volta para o mar… eu já sentia alguma alteração bem legal na cabeça. Ainda nada intenso, mas sentia que eu era algo abstrato. Eu não tinha uma forma humana. Eu era uma coisa indefinida presa num corpo cansado. Não tem nada a ver com experiências fora do corpo, mas mente e corpo pareciam dissociados. Também estava incomunicável. Até gostaria de comentar alguma coisa com o Lucas sobre a experiência, mas era difícil organizar as sensações numa linguagem. Dava preguiça.

Ainda com o corpo pesado resolvi me deitar na areia e ficar sob o sol. Me senti bem jogado na areia. O sol estava acolhedor e as sensações agradáveis das sementes começavam a crescer dentro de mim. Tapei os olhos com o braço e vinham muitas imagens mentais. Nada de visuais coloridos, eram apenas imagens da cabeça mesmo, uns raios e luzes no escuro.

3. NAVEGANDO

Então lá estávamos nós. O tempo já era um conceito abstrato. Não havia tempo, espaço, não havia nada senão tudo. Na verdade tudo parecia eterno ao mesmo tempo impermanente. É uma coisa bem esquisita mesmo.

Depois de um certo tempo (o que é isso?) resolvemos voltar para o camping em que estávamos. Eu já estava bem alterado mesmo. As cores estavam mais definidas e eu sentia um certo contentamento. Ainda era difícil me comunicar e ainda sentia-me uma coisa indefinida. Antes de iniciar a longa caminhada de volta ao camping eu fui tomar um banho de mar para ver se amenizava o cansaço físico.

A sensação de estar na água era maravilhosa. Um contato muito bom com a natureza. A água potencializava o contentamento proporcionado pelas sementes e atenuava o cansaço. Interagir com a natureza naquele estado era algo inexplicável. Parecia que eu sentia toda a água, como se eu fizesse parte da água. E com a areia também era assim, porque se eu pegava um pouco de areia na mão eu me identificava com a areia. Eu não era mais eu e nem era mais aquela coisa abstrata. Agora eu era o que eu olhava ou tocava.

Depois de ficar um pouco lá na água fomos andando pela areia rumo ao camping. Tentávamos falar sobre a experiência mas a linguagem não era o suficiente. Às vezes batia uma espécie de paranóia por ficar tão calado. Eu queria falar, comentar, mas sei lá… eu não estava num estado para transmitir, mas sim absorver. Eu era uma esponja absorvendo o mundo ao meu redor, absorvendo sons, cores, sensações.

Já bem próximos ao camping, paramos e nos sentamos numa pedra. Lucas teve a brilhante idéia de me sugerir olhar para o céu. A profundidade do céu era infinita na minha cabeça. As nuvens se mexiam, dançavam, se juntavam, formavam caleidoscópios e às vezes eram cortadas por pássaros. Olhando ali apenas para o céu eu me desligava de tudo mais. O céu era tudo que existia. E é como se eu fizesse parte daquele céu sem fim. Parece que até os sons do mundo ficavam em silêncio enquanto eu estava ali olhando pra cima. Era estranha a sensação de ficar um tempo contemplando o céu e depois mudar o foco da visão novamente para a praia. Eram dois mundos distintos e fantásticos. A paleta de cores para pintar o céu não era a mesma que pintava a praia. Um todo azul e branco. O outro todo amarelo, esverdeado.

Fomos andando pelas pedras parando aqui e ali. Me sentia muito bem. Nada de náuseas ou cansaço físico. Nada de paranóias nem nada. Quando andávamos eu me sentia muito contente e quando parávamos eu embarcava numa onda de pensamentos que geralmente me deixava um tanto quanto incomunicável. É como se houvesse uma grande quantidade de energia. Na verdade um excesso de energia que ao andar era liberada e me deixava num grau elevado de contentamento, mas quando ficava parado não era liberada e consequentemente me invadia e me deixava incomunicável. Pelo que eu senti nas sementes, parece que elas nos deixam num estado de absorção. É como se a nossa consciência fosse expandida em um monte de vezes, mas como nós não estamos acostumados a captar tudo de uma vez só a gente acaba meio confundido, e por isso, andar, fazer alguma atividade é essencial para uma viagem bem sucedida, pois caso contrário a gente pode ficar muito confuso com nossos fantasmas, nossos pensamentos, fantasias. É como se a anteninha de rádio fosse substituída por uma antena parabólica.

E eu tinha fome. Muita fome. O cansaço havia dado lugar à uma sensação de conforto físico, mas tinha fome. O Lucas dizia que não conseguia nem se imaginar comendo alguma coisa, mas eu tinha fome.

Andando, parando aqui e ali, acabamos chegando ao camping. Era estranho ver as pessoas todas sóbrias e seus olhares atentos. Não era nenhum tipo de paranóia, mas era gozado perceber que apesar de todos estarmos sob o mesmo sol aquelas pessoas estavam numa realidade muito diferente da minha. Eu estava sintonizado numa rádio e eles em outra.

Chegamos em nossa barraca e eu fui direto pegar uma bolacha daquelas “Club Social”. Desceu bem. Muuuuuuuito bem na verdade! Enquanto isso o Lucas ficou ouvindo música e curtindo o sol sentado numa pedra. A comunicação entre a gente resumia-se em gestos. Eu meio que entendia como o Lucas estava se sentindo pelo simples fato de olhar. E com tudo era assim. Eu olhava as pessoas das barracas vizinhas e parece que só de vê-las dava para saber muita coisa sobre elas. Era uma sensação de paz e compreensão.

Fiquei lá comendo a bolacha e dando uns pedaços para um gato cabeçudo e véio que apareceu. O gato era um tanto quanto nojento, mas era divertido vê-lo comer a bolacha. Aí depois acabaram as bolachas. Eu e o Lucas tentamos trocar umas palavras, mas era impossível. Eu sentia que eu falava coisas desconexas, espaciais. Eu não gostava de ouvir minha própria voz. “It’s no time to talk” - pensava. Era hora de absorver, de contemplar, não de dizer, falar.

O Lucas entrou na barraca e eu fiquei sentando numa pedra de olhos fechados sob o sol. E o sol cumpria bem seu papel. Esquentava cada molécula da minha carcaça. Me transmitia muita energia. Eu não tinha visuais, mas imagens oníricas brotavam em minha cabeça. Lembranças. Situações vividas. Imaginadas. Momentos de eternidade e tal…

Então resolvi fazer um miojo. Pensei “A Cozinha Psicodélica de Rodrigues”. Era uma grande aventura colocar cinco copos de água e jogar dois saquinhos de miojo numa panela enquanto o fogo se encarregaria de cozinhar tudo… foi meio complicado porque vinha muita informação na minha cabeça. Eu me pegava parado olhando para a panela com o pensamento muuuuuuito longe. Mas ao final deu tudo certo. Comemos o miojo e parecia ser um dos melhores miojos da minha vida. Comi na panela mesmo. Parecia um louco. Devorava aquilo!

Depois de comer o Lucas voltou para dentro da barraca e ficou ouvindo música. Eu voltei para minha “pedra do sol”. Estava bom ficar lá. Depois vi uma outra pedra que ficava atrás do camping. Era bem grandona e tinha sombra. Aí eu resolvi ir lá em cima. Tinha muita mata em volta da pedra. Eu deitei com os braços abertos nela e fiquei observando uma outra pedra que ficava em frente à ela, onde tinha a raíz exposta de uma grande árvore. Me sentia como a raíz exposta. Fiquei lá jogado em cima da pedra olhando minha “mãe” árvore derrubando gentilmente algumas folhinhas. Me sentia também as folhas que caiam. Aquela era minha forma naquele momento. Eu já não era uma coisa indefinida, mas sim uma raíz jogada em cima de uma pedra. Uma raíz olhando um céu azul. Quieto.

Fiquei muito tempo lá e então resolvi dar uma volta por uma trilha. Fui sozinho porque Lucas estava ouvindo música na barraca. Andei numa trilha vazia e fui subindo. A terra úmida acentuava o cheiro do mato. O barulho das ondas batendo nas pedras lá embaixo era assustador. Na verdade não era muito agradável, mas não chegava a ser desagradável. Uma pá de borboleta tava voando na trilha. Era divertido vê-las em seus vôos incertos. Coloridas. Leves. Loucas. Apesar de ser muito bom ficar na trilha, resolvi voltar para a barraca, pois não fazia idéia de quanto tempo estive fora… talvez fossem apenas alguns minutos, mas também podiam ter sido horas…

Voltei para a barraca e encontrei o Lucas. Seus olhos não negavam que estava viajando tanto quanto eu. Conseguimos trocar algumas palavras e resolvemos ir para a praia e lá ficamos sentados perto da água. Trocamos algumas palavras. Já não era tããããão difícil se comunicar, mas ainda era necessário um certo esforço.

Voltamos para o camping. Dessa vez entrei na barraca e decidi encarar uma viagem musical. Ouvi Shpongle. É um som eletrônico que induz alguns visuais e sensações de outro mundo. Era bizarro, mas maravilhoso! Sentia a cabeça ouvir a música em 3,4,5,6,7 dimensões! Os sons agudos se alojavam na parte da frente do meu crânio. Os sons graves vibravam atrás do crânio e também faziam a coluna vertebral vibrar. Alguns outros sons ficavam bem no centro da cabeça e algumas vozes se espalhavam por todos os “quartos” da minha cabeça estruturada puramente em som. Sentia minha cabeça como se fosse uma casa. Haviam diversas salas que suportavam determinados tipos de música. Música era tudo o que existia. Não sentia meu corpo. De raíz passei a ser música. Não criava situações imaginadas na cabeça (como geralmente faço ao ouvir música), mas eu era a própria música. Me transformava com ela. Às vezes tirava o fone do ouvido e era muito estranha a sensação de voltar a ouvir o mar e as pessoas. Aí voltava a colocar o fone no ouvido e a música e seus detalhes me encantavam. Aí me deu vontade de ir mijar. Tirei o fone do ouvido mas saí da barraca ainda em forma de música. Não via nada na minha frente senão lembranças de detalhes, vozes e essas coisas… acho que aquilo era o ápice da viagem. Estava muito intenso.

Cheguei no banheiro, mijei e senti uma enorme vontade de fumar um cigarro. Acontece que tinha acabado o meu cigarro e também meu dinheiro. Apesar de ainda ser música resolvi pedir um cigarro para uma menina da barraca vizinha:

  • Ow… é… você… pode… me arrumar um… é… cigarro? - disse eu parecendo um lunático.

Ela me deu o cigarro e perguntou se eu podia emprestar um garfo para ela comer, porque havia esquecido e coisa e tal. Aí eu fui lá na barraca fumando meu cigarrinho, peguei o garfo e fui até ela. Aí fiquei lá parado em frente a ela e o pessoal dela. Fiquei lá parado olhando pra nada, fumando. Segurando o garfo. Aí como ninguém dizia nada eu deixei o garfo em cima da pedra que ela estava e saí fora dali.

Devo ter assustado a menina. Eu parecia um lunático. Desconexo, perdido, longe, fora de órbita.

Mas o Marlboro. Huaaa!!! Como era bom fumar aquele maldito cigarro! Foi chato notar que a “vizinhança” sabia perfeitamente que eu estava absolutamente aéreo. Mas ah! Nem me importei!

Aí o Lucas saiu da barraca. Fomos novamente para a praia… não sei se foi da minha cabeça mas de repente… acabou a trip. Na hora que eu estava mais louco ela simplesmente se foi. Sobrou apenas algumas coisas dela, como o contentamento e a paz de espírito, mas a loucura, a alucinação simplesmente se foi. Assim como os botões “náusea=on” e “náusea=off” as sementes haviam apertado “insanidade=on” e “insanidade=off”. Foi uma mudança radical. Agora eu já estava bem melhor para conversar com o Lucas e falar sobre a experiência. Ele também já estava voltando…

Então já estava escurecendo. Nós conversamos sobre um monte de coisa. Falamos muito mesmo. O pensamento agora fluía junto da linguagem, o que era muito bom. Depois eu achei dois reais na minha mochila, o que deu pra comprar um Derby e sustentar meu vício até o outro dia.

Durante a noite foi bem complicado, porque tava tudo escuro e não tínhamos lanternas ou velas para iluminar a barraca ou mesmo para preparar uma comida. Sobrevivemos com um isqueiro que eu achei na praia e que iluminava um pouquinho as coisas.

4. O DIA SEGUINTE

No dia seguinte tudo ocorreu ok. Ficamos caretas durante o dia, só andando pela praia e tudo. À tarde encontramos uns gringos que estavam fazendo intercâmbio no Brasil. Tinha um holandês, um francês e mais um monte de figuras lá. Eles estavam fumando maconha em um bong feito de bambu e ofereceram para nós. Foi muito bom fumar depois de um dia inteiro sóbrio. Me lembro muito bem que um deles tinha um aspecto caricatural. Ele fumava e parecia que a fumaça saia de toda sua cara. Parecia que saia da boca, do nariz, dos olhos, das orelhas. Parecia uma espécie de “homem-tocha”. Era engraçado.

Aí ainda mais tarde a gente fumou Salvia divinorium, que o Lucas havia conseguido. Essa é uma erva especial. É um alucinógeno extremamente potente e era usado por uns povos antigos, os quais fumavam para ter visões e conversar com entidades do mundo astral. Alguma coisa assim.

Mas tinha só um pouquinho com o Lucas. Eu coloquei o fone de ouvido, fiquei ouvindo música e dei um trago no bong com salvia. Aí fiquei de olhos fechados. Senti uma energia bizarra passando da minha mão esquerda, subindo os braços, passando pelo ombro, descendo o braço direito até fechar o ciclo na mão direita. Aí depois eu vi uma floresta onde tinha um velho pajé magricelo. Ele estava sentado numa pedra e cantarolava uma canção (acho que porque eu estava ouvindo uma canção no fone de ouvido). Depois vi uma planta que tinha folhas em formato de coração. Aí caia um pingo nela e tudo ficava brilhando. Foi muito bonito.

Mas perto do que li a respeito de Salvia eu me decepcionei com os efeitos. Eu imaginei que seria algo extremamente bizarro. Pensei que ia perder noção da realidade e tudo, mas só tive mesmo uma visão. Um dia pretendo experimentar uma dose forte de Salvia para compreendê-la melhor.

5. CONCLUSÕES

Essa foi a primeira vez que fumei Salvia e a segunda vez que tomei sementes. Algumas características estiveram presentes em ambas experiências com as sementes:

  1. É preciso saber que o começo da trip é sempre difícil tanto a parte das náuseas quanto do cansaço físico. São momentos complicados, mas passageiros e suportáveis. Como geralmente o começo de uma trip pode determinar o seu desenvolvimento, tem que saber esperar a semente interagir com o teu corpo e o teu corpo assimilar a semente sem se arrepender de nada.

  2. Efeito camaleão. Você passa a ser aquilo com que interage. Você vira água, raiz, música e céu. É uma coisa positiva se utilizada num lugar legal, mas pode ser perigoso não preparar um ambiente propício.

  3. A trip vem em ondas. Às vezes parece que está indo embora, mas volta e vai e volta.

E é isso aí.

6. UM PEQUENO ACONTECIMENTO POSTERIOR À TRIP

Quando fumei a Salvia ouvindo Shpongle, tive a visão que relatei, de um pajé em uma floresta cantando uma canção enquanto uma gota de água ou orvalho escorria pela folha de uma planta.

Pois bem.

Posteriormente tive um sonho. Esse mesmo pajé era um sujeito que fazia atendimentos às pessoas que iam se consultar com ele, como se fosse um oráculo. Eu entrei na fila, e quando chegou minha vez, ele não falou nada, mas me deu uma estatueta de papagaio, feita de madeira. Estava bonito, bem feito e - com exceção da parte do peito - estava todo pintado. Ele apenas me entregou aquele papagaio de madeira e não falou nada. Talvez eu tinha que dar o acabamento e pintar o peito do artefato? Sei lá.

Pois bem.

Certo dia, ao chegar de noite em casa depois da faculdade, já era umas 23h e pouco, eu fui pegar comida para esquentar no microondas e vi uma caixa de papelão ali perto da mesa. Tive a sensação de que a caixa se mexeu, mas achei que era impressão.

Depois a caixa realmente se mexeu!

Fiquei meio assustado, mas fui lá e abri a tal da caixa. E o que é que havia dentro dela?

Pois é, um papagaio. De verdade. Sem penas no peito.

Não faço a mínima idéia do que isso pode querer dizer, mas foi algo no mínimo curioso e inusitado.

Parece que meu padrasto comprou ou ganhou de não sei quem.

Coincidêeeencias…

← Voltar ao índice

[2002-08-31] - UMA EXPERIÊNCIA COM O SANTO DAIME

Sobre

Em 2002 o mundo era outro: sem internet móvel, sem GPS, sem redes sociais. E eu também era outro. Jovem, inquieto e faminto por respostas, decidido a conhecer o Santo Daime — mesmo sem carro, sem conhecidos no meio, e sem ideia clara de onde estava me metendo.

Hoje, relendo este relato antigo, vejo o quanto eu era corajoso e ingênuo com aquela mochila nas costas, perdido no meio do mato à noite, sem meios de me comunicar com ninguém, atrás de uma experiência que prometia revelar mistérios profundos.

Esta é a história da minha primeira vivência com a ayahuasca, através do Santo Daime no Céu de Maria, aos pés do Pico do Jaraguá.

Relato

Avenida Paulista, 31 de agosto de 2002 - mais ou menos três horas da manhã.

Dois mendigos dormem,
em frente a um edifício de luxo.
Parece até uma forma de protesto.

Agora aqui estou eu sentado em frente a estação do metrô. Deve ser umas três da manhã e parece que São Paulo está sempre acordada. Agora pouco fui numa lanchonete tomar um café e pedi um lanche que estava terrivelmente ruim. Dei uma mordida e joguei o resto no lixo. Foram uns três reais jogados assim para o nada. Quem me conhece sabe que não sou fresco para comida e estou em jejum desde meu último almoço. O lanche é que era ruim mesmo, pode acreditar…

Sabe, é engraçado andar assim sem rumo na Avenida Paulista. É tarde. Madrugada. Não tenho nada a perder. Me sinto um espírito livre. Não tenho dinheiro, estou mal vestido, com sono, fome. Me sinto estranho. Mas me sinto livre.

Tudo ainda é um pouco confuso. Busquei tantas respostas objetivas para meus dilemas. Fui bombardeado com zilhões de peças de um quebra-cabeças. Tento construir esse quebra-cabeças. Tento me reconstruir das migalhas que há pouco me tornei. O que eu estou fazendo aqui a essa hora? Bem… acho que vou ter tempo de relatar minha experiência desde o início, afinal de contas, acabei de saber que a estação do metrô só vai abrir 4h45 e, segundo um cara ali, agora é 2h55 da manhã.

Fumo um cigarro e contribuo com o lixo dessa sociedade em que vivo. Me sinto um verme, mas até os vermes tem sua centelha divina. Até eles são parte da vida. Vamos lá…

Sexta-feira foi um dia como quase todos os dias de agosto foram: confuso. Estava com várias dúvidas quanto a tudo. Amores, projetos, problemas no trabalho, estudo, pessoas… enfim… essas coisas. Eu me sentia imerso num caos. Estava afogado em dilemas e dilemas e dilemas. Acontece que esta sexta-feira tinha algo de diferente: seria o dia que eu ia experimentar o ayahuasca pela primeira vez. Já havia ouvido falar muito sobre a bebida alucinógena e tinha uma curiosidade imensa quanto aos seus efeitos. Li um monte de coisa, perguntei para um monte de gente, criei diversas expectativas… mas eis que então chegou o Grande Dia.

Saí do meu trabalho às 17h e não teria aula hoje. Como já havia passado numa entrevista para participar de uma sessão do daime eu resolvi aproveitar a preciosa sexta-feira livre.

Peguei o trem, desci em Osasco, peguei um ônibus… que droga!! O trânsito estava parado! Comecei a divagar na possibilidade de não chegar a tempo na sessão, pois esta começaria às 20h e já era mais de 18h…

Quando o ônibus chegou no lugar onde eu ia descer já eram sete e pouco. Fiquei ainda mais desesperado, pois não fazia idéia de como chegar ao local (bem escondido, diga-se de passagem) onde são realizadas as sessões. Então, como um louco, saí correndo sem rumo perguntando se as pessoas sabiam como chegar até o Céu de Maria (o nome do local das sessões) e cada pessoa que eu perguntava me parecia indicar um lugar diferente e eu, bobo que sou, seguia os vários conselhos parecendo uma barata tonta.

Vale uma pausa para dizer sobre o local onde eu estava naquele momento: imagine você que estava tudo escuro e haviam várias estradinhas de terra. O que eu sabia é onde devia descer do ônibus, e que o caminho que devia seguir era por uma longa estrada de terra. O que eu não sabia é que ali então haviam várias estradinhas de terra! Me perdi nas trilhas escuras, me assustei com latidos de cães bravos e por fim me dei por vencido. Sim, o Grande Dia não existiria. Eu teria que me contentar com o que os livros e pessoas me dizem… eu não experimentaria o ayahuasca…

Mas então algo em mim me fez ir falar com o segurança de um galpão que ficava lá perto. Comecei a falar e o cara já me respondeu:

  • A igreja do daime? É só ir seguindo aqui que você acha - disse apontando para uma das estradas de terra, que estava bastante escura.

Então fui correndo. Pelos meus cálculos eram mais ou menos 19h50…

Fui andando rápido. O peito doía. Fumante correndo é uma porcaria. Estava cansado e comecei a andar mais devagar. Foda-se. Se eu não chegasse a tempo… foda-se… estava cansado demais. Então, para minha salvação vi uma luz de farol… não hesitei em pedir carona e… o carro parou!!

  • Ôpa… vocês estão indo para o daime? - perguntei para o casal do carro.
  • Sim. Entra aí - respondeu o cara que estava dirigindo.

Então, ainda ofegante, entrei no carro.

  • É a primeira vez que você vai participar do daime?
  • É sim. E vocês?
  • Nós já viemos outras vezes. A igreja que eu costumo ir fica lá em Camanducaia.

E fomos conversando. Eles eram de Minas Gerais e estavam passando um tempo em São Paulo. Ricardo e Drica.

  • Você bebe? - perguntou o Ricardo para mim.
  • Nem… dei uma parada com isso.
  • Cheira um pózinho?
  • Nem. Eu gosto é de cogumelo.
  • É… então você é dos nossos.

O Ricardo foi dirigindo e cantando uma canção sobre um cara que tava sem dinheiro e que foi parar num pasto com sol, vacas e cogumelos…

  • Você pita um?
  • É… mais ou menos. Ando meio sossegado. Fumar demais confunde e cansa a cuca - não falei desse jeito, mas com esse sentido.
  • Você é daimista e nem sabe.

Dei risada.

Após uns minutos pela estrada de terra nós chegamos ao tão esperado local. Céu de Maria. Lá no pico do Jaraguá.

Chegando lá me senti mal. Tava cheio de gente que era estranha para mim. Me sinto mal em multidões onde sou percebido. Tinha umas muié com cara de bruxa, uns malucos com cara de hippie, capoeirista, uns outros com cara de playboy. Lá estava eu cheio de preconceitos…

O Ricardo me recomendou guardar a mochila num quarto e depois disso ficamos fumando e conversando. Ele tava procurando uma seda para fumar um antes de iniciar o trabalho e então me lembrei que tinha um baseadinho pronto dentro do meu maço de cigarros. Sabe como é… caso desse tudo errado e eu dormisse no meio do mato era melhor já estar preparado…

Entreguei o baseado e a gente subiu lá no alto para fumar. Na verdade para eles fumarem, porque eu não queria. Estava afins de ver como o daime por si só me alteraria.

Ficamos lá em cima os três e mais um outro maluco que falava sobre capoeira. Era legal ficar lá em cima olhando as estrelas, as nuvens e o pico do Jaraguá piscando eternamente. O Ricardo falava umas coisas bacanas. Tinha uma natureza muito boa e calma.

Então fomos para frente da igreja. A Drica foi acender uma vela e aí comecei a ver alguns pontos negativos que determinaram boa parte da minha experiência: as imposições liturgicas. Umas mulheres repreenderam a Drica por ela ter acendido aquela vela para seu “anjo da guarda”, como ela disse, pois diziam que era necessário antes de acender aquele altar acender umas outras velas nuns outros altares. Ela ficou puta da vida e o Ricardo falava:

  • Ei, tem que ter humildade Drica…

Então entrei na igreja. O teto era todo colorido com bandeirinhas (tipo de festa junina) azuis, brancas e acho que algumas verdes também. No centro havia um pilar e um altar cheio de imagens de santos, fotos do fundador da doutrina do daime e também algumas velas. O altar tinha a forma de uma estrela de seis pontas. Num canto havia duas portículas onde era servido o daime e também notei uns quadros com uma cruz de dois braços pendurada no teto.

Os visitantes/novatos deveriam sentar-se em círculo numas cadeiras para receberem as instruções. Ali naquela roda eu percebi que eu estava muito cheio de coisas ruins. Ficava julgando as pessoas com olhares. O clima tenso entre os novatos também me envolvia. Ninguém sabia ao certo o que haveria de acontecer naquela noite. Havia todo tipo de gente: do meu lado direito uma véia com cara de intelectual, do lado esquerdo uma véia doente e na minha frente uma menina de pernas abertas. Pensei eu:

  • Ai caraio, num posso ficar olhando essas coisas… é um negócio sério e tal…

Deste grupo, além da menina, notei algumas outras pessoas que mesmo sem querer fizeram parte da minha experiência: havia um cara de um jeito muito tímido mas que parecia ser uma boa pessoa. Um gordão metaleiro com cara de mau que olhava tudo aquilo como uma palhaçada. Um garoto de cabelos compridos que parecia curioso até a morte. Toda essa diversidade de gente me chamava atenção.

Depois das instruções, foi desfeita a roda de novatos e as cadeiras foram colocadas em seus devidos locais. Um cara foi para o centro e falou algumas coisas. Aqui outro problema para mim: notei que havia uma nítida hierarquia entre os “fardados” (membros) e os novatos. O que me parecia “errado”, pois na minha concepção, os fardados não deveriam “mandar” nos novatos, mas sim apoiá-los em suas dificuldades. Mas então eu não sabia se podia me sentar ou se deveria ficar em pé. Talvez sentar-se era privilégio dos fardados, pois todos os novatos estavam em pé. Mas como estava cansado e não sabia exatamente o certo e errado fui me sentar. E ainda movido pela ansiedade me sentei pertinho da portícula que serviriam o daime.

Rezaram três pai nosso e três aves maria intercalados e depois disso formou-se uma fila para as pessoas irem beber o chá.

Novamente a hierarquia dominou. Os fardados iam entrando na frente dos novatos, como se eles nem existissem ou fossem irrelevantes… chato, mas foi indo assim até que chegou minha vez. Fui até a portícula e o cara que servia me olhou bem nos olhos. Ele era meio velho e seus olhos azuis e fixos parece que me diziam:

  • Se prepara malandro.

Encheu um copo da bebida marrom que estava numa espécie de filtro. Tomei de um gole só. Era ruim, mas para quem já tomou tintura de kava kava e sementes de argyreia, não era totalmente intragável…

Certo. Tomei. E aí?

Me sentei enquanto os outros da fila iam tomando a bebida. Fiquei meio que meditando. Via algumas luzinhas. Estaria eu sentindo os efeitos mágicos da bebida? Pura ilusão… estava absolutamente sóbrio. Aqui, antes de sentir os efeitos da bebida, percebi que estava entrando em conflito com meu ego. Meus julgamentos, meus pensamentos sobre mim mesmo, uma astúcia maldita que eu tinha dentro de mim, minha não aceitação de regras. “Não aceitar as coisas é falta de humildade. Mas se eu aceitar as coisas estaria me submetendo ao erro. Mas quem sou eu para avaliar algo como errado ou não?” enfim… comecei a ver mais nitidamente problemas meus… não era nenhum efeito do chá. Não havia passado nem 15 minutos que eu havia tomado. Estava absolutamente sóbrio, mas esses pensamentos rondavam minha cabeça e provavelmente foram eles os responsáveis pelos rumos da minha experiência.

O que eu esperava do chá? Ah… eu esperava ter mirações, ver cores como as imagens que via sob os efeitos dos cogumelos. A sensação de união com o todo. Respostas para os meus dilemas… esperava várias coisas boas, mas até então nada sentia.

Já devia ter passado uns 20 minutos ou uma meia hora desde a hora em que bebi o chá. Um cara foi ao centro e falou:

  • Como vieram mais pessoas do que esperávamos, hoje não vai ter concentração, mas o bailado.

Ai que bosta! Eu tinha ficado em jejum um tempão, o negócio não batia e agora ia ter que dançar!!

Então começou. Os músicos tocavam algo e o pessoal começava a “bailar”.

Na floresta eu encontro forças para trabalhar
Na floresta eu encontro forças para trabalhar

A dança consistia em dois passos pra lá e dois passos pra cá. Um negócio meio indígena, meio brega. Tudo ficava organizado em um grande círculo que chamavam de corrente. Homens de um lado e mulheres de outro. Os fiscais ficavam olhando se tudo estava em ordem.

Agora percebo que a dança tinha um significado muito especial. Aliás, vários significados especiais. A idéia de união com o próximo, a mentalização/corporização da música, a ordem necessária para bailar apenas dentro de seu espaço (um retângulo desenhado no chão). Tudo passava uma idéia de união e ordem entre as pessoas. O problema era eu: estava cansado, não sabia manter o “tempo” da música, era totalmente travado no que diz respeito a expressão corporal e o pior de tudo: o máximo que sentia dos efeitos do daime era uma “bobonificação”, isso é, só me sentia dopado e concordando com tudo por uma incrível incapacidade de raciocinar. Um cara do meu lado parecia já estar bem alterado e me atrapalhava me empurrando. Me parecia que todos os novatos estavam tendo essa sensação de estarem perdidos e “bobonificados”.

Resolvi sair daquilo, pois naquele momento me parecia uma grande palhaçada. Fui ao banheiro, lavei o rosto e fiquei fumando um cigarro. Enquanto eu fumava sozinho as coisas começavam a fazer sentido. Percebia algumas pequenas alucinações. As sombras se moviam e a luz, a iluminação das coisas, tinha um aspecto diferente. Mas eram alucinações mínimas. Nada muito fantástico. Pensei que pudessem ser apenas coisas de mim mesmo e não os efeitos da bebida. O que não notei naquele embarque de viagem eu percebo agora: acontece que o daime, diferente dos cogumelos, começava a me transformar internamente, no sutil, e não no aspecto mais visual e óbvio. Enquanto os cogumelos sempre me levaram de forma clara e transparente para um novo mundo, o daime ia me transformando de maneira sutil. Eu pensava estar sóbrio, mas no entanto já era o daime agindo desde o começo onde eu entrava em conflito com meu ego.

Terminando meu cigarro eu me sentia melhor. Não era nada de espetacular, mas pelo menos não ficava naquela paranóia que eu estava enquanto estava dentro da igreja a bailar.

Mas eis que para cortar meu barato me aparece um fardado dizendo que não é bom ficar lá fora e nem fumar durante a sessão. Mas ora essa, não é a doutrina da floresta? Não é o auto-conhecimento que tanto se prega? Como posso utilizar o poder da planta se sob seus efeitos eu preciso seguir rituais nos quais não me encaixo e me desconectam dos ensinamentos que a planta quer me oferecer? Então subi até a igreja meio ressentido, mas não entrei. Fiquei lá fora apreciando uma plantinha. Ora, não havia nem como comparar a percepção da plantinha sob o efeito do daime com a percepção sob efeito dos cogumelos ou mesmo das sementes havaianas. A plantinha me parecia tão ordinária ali. Acho que mesmo careta eu podia ver mais magia na planta. Estava decepcionado e então, pelo respeito, voltei à igreja. Fui novamente tentar bailar. Era difícil. Os pensamentos não estavam na dança. Podia perceber que existiam outras pessoas viajando na dança. Algumas pareciam estar em transe. Será que o problema era eu? Será que por algum motivo o daime não surtia seus efeitos fantásticos em mim? Não sei, mas então o cara falou que teria a segunda dose do chá. Uma fila menor que a primeira e lá estava eu novamente na portícula. Tomei num gole só de novo. Agora aquilo tinha que se manifestar!

Fiquei um tempo no canto da igreja olhando as pessoas bailarem e do meu lado via um cara num transe muito profundo. O que aquele cara devia estar vendo com seus olhos fechados? Cores? Porque eu não as via?

Insatisfeito eu fui escondido (!?) dos fiscais e tomei uma terceira dose. Que se foda. E então o estômago ficou bravo. Uma pequena ânsia começava a se manifestar e eu já sentia uma alteração mais intensa. Nada de cores ou visões, mas a “bobonificação” estava crescendo e cada vez mais forte.

Os fiscais eram chatos. Ficavam falando para ir lá bailar, mas não tinham o amor e tato necessário. Quando alguém estava lá bailando, às vezes do nada, o fiscal ia e falava para o cara trocar de lugar com fulano. Não entendia o porquê daquilo.

Às vezes um cara lá no centro gritava:

  • E para São Pedro?

E as pessoas respondiam em alta voz:

  • VIVA!!
  • E para São Paulo?
  • VIVA!!
  • E para Jesus Cristo?
  • VIVA!!

E falava uma pá de nome de santo.

Então fui novamente para fora. A alteração ia crescendo em mim. Sentei num certo lugar e veio um fiscal dizendo:

  • Ei, aí é o lado das mulheres.

Aí sentei num outro canto e ele disse:

  • Faz mal sentar perto do cruzeiro.

Fui para outro canto e ele não falou nada. Deitei na grama e fiquei olhando o céu. Poucas estrelas, muitas nuvens. Elas bailavam para mim. Formavam coisas inusitadas. Formou nitidamente a imagem de um husky siberiano adulto. Eu me divertia com aquilo! Era tudo tão fantástico no céu!! Mas quando eu olhava as pessoas e toda aquela bitolação tudo perdia a magia. O problema eram as imposições e regras. Nada pior do que sentir-se preso num estado de consciência onde a mente quer estar livre para divagar.

Um fardado me disse para entrar. Mas ok, agora eu já sentia que estava bem alterado. Agora seria interessante ver as coisas acontecerem lá dentro no bailado psicodélico.

Tentei bailar.

Impossível.

Fiquei lá parado com os olhos fechados vendo um ambiente magnífico de cores me engolir. Não eram simplesmente cores, mas cores em movimento. Nunca paravam, sempre estavam para se envolverem umas nas outras ou então envolverem a mim. Notava meus dedos inchados. Vasoconstrição. Já experimentei a sensação sob efeito de outras coisas. Nada ruim ou desagradável. Aquele foi o momento em que a força do ayahuasca estava chegando em seu ápice. As cores das visões de olhos fechados ficavam cada vez mais nítidas. Fui novamente ao canto da igreja e lá fiquei de olhos fechados. Figuras e formas sensuais e coloridas me impressionavam. Então depois veio uma visão fantástica de pedras preciosas. Eram verdes. Eram esmeraldas. Elas brincavam em minhas visões. Me pareciam um trabalho de algum povo pré-colombiano. Detalhado, brilhante, espalhafatoso. Me parecia uma forma feminina, mas não era uma forma humana. Era uma espécie de armadura lindamente verde e brilhante. Era cheia de luz. Suas pedras preciosas não eram estáticas, mas dotadas de contínuo movimento. Mudavam o tempo todo e as visões não eram do todo dessa imagem, mas sim uma espécie de câmera/filmadora que ia seguindo e me mostrando por partes como num filme. Ia descendo. Na barriga ou nos pés. Nunca capturando a figura completo, mas sim os frames, como se estivesse vendo por uma janela um ser gigante e sobrenatural.

Abri os olhos e via muita luz em tudo. Agora sentia a máxima intensidade do daime. Queria ficar com os olhos abertos, mas as visões queriam se manifestar e forçadamente me faziam fechar os olhos. Estava frio e eu tremia muito. Tive outra visão de algo roxo. Era desagradável, mas lindamente detalhado. A força da planta era incontrolável. Não era possível dominá-la. Perto de um filtro de água tinha um plástico. Fui pegar água e esse plástico me proporcionava diversos visuais. Fechei novamente os olhos e vi um caminho vermelho e brilhante. Vez ou outra algumas entidades invadiam essa visão e me faziam me perder nesse caminho. Perguntava quem eram aquelas formas que me apareciam e eu me respondia. Eram meus próprio demônios que me impediam de ver o caminho. As luzes das visões eram estranhas. Nunca dava para ver seu ponto de origem, mesmo quando eu me esforçava. As luzes eram reais. Às vezes sombras entravam no meio do campo visual das visões internas e me davam a impressão de que alguém estava na minha frente ou ao meu lado. As sombras atrapalhavam as visões. Eu abria os olhos e não havia ninguém na frente da minha luz. Percebi que o mundo de olhos abertos tinhas suas leis e o de olhos fechados outras leis. Eram duas dimensões paralelas. Místicos diriam que as sombras eram entidades me atrapalhando a ver a luz, mas eu não sei o que era aquilo. Abri meus olhos novamente para tentar assimilar, mas tudo era forte demais para mim.

Depois senti meu ego se fragmentar. Fechei os olhos e tive uma miração que significou muito para mim. Várias figuras geométricas iam se despedaçando. A noção de profundidade da visão era muito forte e as figuras iam se afastando umas das outras em todas direções. Aquilo que eu via era o que sentia. Sem direção. Confuso. Sem controle. Se desfazendo, perdendo a individualidade. Meu ego se desfazia, mas não era a união que eu alcançava, mas a solidão. Sentia frio. Sentia falta de alguém ali do meu lado. Pobre de mim ali. Até há pouco tempo tão seguro de si! Agora ali se despedaçando. Toda aquela segurança de si não passava de orgulho e vaidade. O daime esmiuçava o orgulho, a vaidade. Me mostrava ali se diluindo no nada. No vazio. Não aguentei aquilo tudo e abri os olhos.

Então achei uma cadeira para me sentar. Um rapaz ao meu lado parecia estar numa viagem bem intensa. Vale notar que durante toda a experiência eu fiquei observando os caras que haviam me chamado atenção no começo de tudo. Era possível entender o que cada um sentia sem ninguém dizer nada. No começo era julgamento, depois passou a ser reverência, então compaixão. Existia uma roda de sentimentos pelas pessoas. Ia girando, mudando… um caleidoscópio de sentimentos. Na verdade o que via nas pessoas era eu mesmo. O exterior era o interior. Tudo o que via era reflexo de mim mesmo. Por isso via o mundo tão obscuro. Era como eu estava internamente. As pessoas eram eu. Tudo era eu. E tudo parecia tão entediante, tudo tão ruim, cheio de regras, preso. Era eu que estava assim. O mundo estava girando como sempre.

Tive várias outras visões, mas não me lembro de todas elas… a última visão que me lembro foi a “limão”. Era um ambiente tropical de um outro mundo. Um mundo que era feito apenas de energia e não matéria. Várias abstrações. Coqueiros, triângulos verde claro (limão) com bolinhas. Eu descia num escorregador verde psicodélico. Me fazia pensar em cura. O limão e sua acidez me faziam pensar em cura. Queimava a doença da alma. Então senti cheiro de merda e abri os olhos.

Não sabia se aquele cheiro era alucinação ou real. Pensei: ou eu pisei na merda enquanto estava lá fora, ou alguém se borrou aqui dentro. Espero que não tenha sido eu. Ou será que eu estou tendo uma alucinação de olfato - coisa inédita para mim? O mundo exterior se confundia com o mundo interior. Os fiscais falavam coisas e eu acho que entedia outras coisas. Muitas luzes. Alucinações auditivas também se manifestavam. Ao bocejar ouvia barulho de pessoas vomitando. Não sabia se era um som exterior ou interior. O fato é que meu estômago se rebelou e me obrigou ir lá para fora para tomar ar fresco.

Fora da igreja estava um caos. Ou todo mundo estava louco, vomitando pra todo lado, ou era eu que via minha loucura em todo mundo. O estômago estava embrulhado. Fui segurando para não vomitar. Um cara estava sentado do meu lado e parecia me observar. Era um dos novatos…

Vi um cara lá na frente vomitar. Olhei para meu observador e então foi minha vez de fazer a limpeza. Quase ajoelhado eu procurava vomitar, mas como estava em jejum, nada saia. Eu ficava naquela ânsia e algo de muito ruim parecia estar se esforçando para sair de mim. Se eu fechava os olhos via uma espécie de serpente podre querendo sair. Me esgoelei até dar umas cuspidas… me senti mais leve. Me levantei e fiquei respirando em pé. Veio novamente a ânsia e dessa vez finalmente vomitei numa moita. Sentia-me finalmente limpo! Era um alívio! Um cara me deu um papel higiênico para limpar a boca. Meus olhos lacrimejaram. Não sei se eu chorava ou se era apenas porque eu tinha me esgoelado para vomitar. Era estranho. Eu não sabia se estava chorando ou não. O cara cabeludo estava sentado no gramado e me olhava. Eu sentia que tinha vomitado algo que de certa forma eu gostava e no entanto me prejudicava. Enquanto eu estava ali vomitando eu me sentia um nada. Meu ego havia se fragmentado e ali eu estava vomitando suas migalhas. Foi através da humilhação que esse algo se foi… era vaidade? Não sei o que era.

O cabeludo me olhava. Nós não trocamos nenhuma palavra, mas estávamos unidos naquele momento. Ele me “dizia”:

  • É cara, tenha força. Eu passei por isso agora pouco…

Ele parecia me entender e eu parecia o entender. Me sentei no gramado e o cabeludo e eu vimos um vaga lume e o seguimos com os olhos sem trocar uma palavra. Nós nunca nos falamos (mesmo depois da sessão), no entanto naquele momento ele era meu melhor amigo e eu era seu melhor amigo. O ato de vomitar foi essencial para uma limpeza e libertação. Meus preconceitos, meus julgamentos, meu orgulho. Nada mais havia. Eu era o cara vomitando. Apenas um menino confuso.

Vi o Ricardo voltando para igreja e por livre e espontânea vontade voltei lá para dentro. Notava uma enorme aura em minhas mãos e em outras pessoas. Era multicolorida, mas não como essas que se imagina das imagens que vemos por aí. Eram como fios finos. Chicotes no ar. Era visível e invisível ao mesmo tempo, mas isso não significa que ela era transparente… difícil explicá-la.

Fui bailar. Estava mais fácil agora. Me sentia apenas cansado, mas podia me concentrar naquilo. Então depois de mais umas cinco canções acabou tudo. Terminou o trabalho. Todos se cumprimentavam e era algo sincero. O cara do meu lado tocou na minha mão, mas de uma forma sincera mesmo. Ele parecia ter enfrentado momentos difíceis, assim como eu. Surgia uma empatia e compreensão mútua entre nós.

Fui lá fora. Então a lua sorria para mim. Enorme. Avermelhada. Perto do pico do Jaraguá que piscava o tempo todo.

O Ricardo apareceu com a Drica. Ele estava muito feliz, mas ainda bem alterado. A Drica estava ainda mais louca. Tivemos uma conversa todos alterados. A Drica foi para o carro pois dizia estar cansada. Eu e o Ricardo ficamos conversando. Ele procurava um amigo para o qual daria alguma coisa. Enquanto nós procurávamos esse seu amigo ele me dizia com seu sotaque mineiro:

  • Sabe, eu sempre vi o mundo de um jeito bonito. O daime me fez ver esse mundo de um jeito mais bonito ainda. É como se tudo ficasse mais claro. Mais simples.

Ele falava de um jeito calmo. Mesmo antes da sessão eu percebi que ele era uma pessoa muito boa. Por algum motivo eu associava a sua figura com a figura do Tom Hanks. Ele tinha um jeito calmo e ao mesmo tempo meio “perdido” a lá Forest Gump.

  • A natureza é tão bonita. O sol, as estrelas, o céu. Aí a gente volta para a poluição, trânsito, prédios, São Paulo. É a ilusão.

Ele dizia que já frequentava o daime há cinco anos. Parecia ser uma pessoa esclarecida, lúcida e tranquila.

O fato é que não achamos seu amigo em meio a multidão que ainda falava sobre as experiências daquela noite. Ele deixou o que tinha que entregar no limpador de vidro do carro de seu amigo e nós fomos, ainda alterados, para o seu carro. A Drica estava viajando e dando risada sozinha. Eu e o Ricardo estávamos bem alterados e ele colocou Raul Seixas (o primeiro álbum) e a gente foi ouvindo. Ele não sabia até onde me dar carona, pois minha cidade era muito fora de mão. Eu disse que em qualquer metrô que ele me deixasse estaria ok.

Fomos seguindo e eu notei que estava num outro estágio da trip. Via luzes. O carro estava cheio delas. Pareciam chicotes coloridos no ar. Saia de pessoas e faróis de carros. Era uma espécie de aura em tudo. Era bonito, mas com o sono que eu estava aquilo apenas me confundia. Eu precisava assimilar ainda tudo que havia acontecido (motivo pelo qual escrevo esse texto neste momento).

Então fomos seguindo e ele me deixou aqui na Avenida Paulista. Mais ou menos duas e meia da manhã. Ao pisar na calçada ainda alterado descobri que todos meus dilemas eram resolvidos com uma única idéia que eu havia esquecido: eu sou livre! Sim! Eu era aquele moleque sem lenço, documento ou dinheiro andando na Avenida Paulista sob efeito do Ayahuasca. Eu era livre! Então vaguei até agora pouco aqui pela Paulista. Fui ao café, como disse no começo desse relato. As pessoas me olhavam de um jeito estranho. Eu ainda estava muito alterado e tentando entender o que havia acontecido nessa noite.

Entre várias coisas, descobri o valor da humildade. Talvez seja um embrião da liberdade, em certo sentido. Estou aqui na Avenida Paulista com uma calça de moleton, camisa xadrez. Minha mochila, sem dinheiro (dois reais e umas moedas para pegar o metrô). Estou com cara de louco, mas nada devo a ninguém. Nada tenho que possam tomar de mim. Podem tirar minha vida - a cidade tem seus perigos -, mas isso só aconteceria se fosse permitido. Por entre todos esses carros e prédios de luxo. Por entre todas essas pessoas bem vestidas pulando de balada em balada eu me sinto livre. Não é a sensação de euforia e contentamento. É a paz. A liberdade de existir. Nada tenho senão minha vida. Me arrependo de coisas que me fizeram esquecer que a única coisa que tenho é essa minha vida. Me arrependo de ter me aprisionado em algumas coisas pela vaidade. Me aprisionei em minhas próprias idéias. Fui prisioneiro da razão. Agosto foi um mês ruim, mas agora tudo resplandece calma e serenamente. O daime não proporcionou uma experiência exatamente agradável, mas uma experiência que foi dolorida como uma cirurgia. Me elucidou de uma forma estranha. Talvez a ilusão volte, pois meu ego é astuto e me trai. Vou saber disso quando eu estiver triste. É quando quero algo que esse algo foge de mim. Quando não quero tudo vem. Sou um espírito livre do mundo e que tenta se libertar de si mesmo. Sou eu aqui na Avenida Paulista. Na madrugada. Sozinho e escrevendo num caderno e olhando os carros passarem. Não existe tempo. Meu espírito se aquieta. Os efeitos já cessaram definitivamente e agora resta-me a paz. Por um dia? Dois dias? Eternamente? Sei lá…

← Voltar ao índice

[2002-09-25] - SURTO PSICÓTICO OU EXPERIÊNCIA RELIGIOSA?

Sobre

A cannabis é uma planta paradoxal: ao mesmo tempo subestimada e superestimada. Uns minimizam seus riscos enquanto exaltam seus benefícios; outros fazem o oposto. Não tenho uma opinião definitiva sobre ela. Só sei que, na minha experiência pessoal, foi a planta que mais me levou às fronteiras do surto psicótico.

Foram várias as vezes em que me vi paranoico, enxergando sentidos ocultos em coisas banais, traçando teorias grandiosas que, depois do efeito passar, se revelavam apenas fumaça.

Em uma dessas ocasiões, enquanto uma voz interna — que parecia ser da própria planta — sussurrava “Eu confundo, mas não minto”, fui levado para uma jornada que desafiou minha percepção de realidade.

O relato a seguir descreve uma dessas viagens. Uma travessia onde o véu entre a consciência, a loucura e o sagrado se tornou perigosamente tênue.

Relato

Qua Set 25, 2002

Então, após dar dois pegas num cachimbo com maconha fui me deitar na cama do meu irmão, pois ele iria dormir na casa da namorada.

Deitei, fechei os olhos e fiquei lá sem pensar em nada, quase que meditando. Então várias imagens/cenas oníricas me apareceram. Via aquele cara que matou o Super Homem, via uma moça chorando. Os personagens tinham vida própria nas imagens. Vi mundos e lugares. Quando a confusão era muito grande eu tendenciava a visão para formas abstratas e então formavam-se algumas mandalas na minha frente. Via ainda umas jóias brilhantes. Uma azul e talvez uma verde. Vi uma deusa azul e cheia de braços com cara de louca. Não era uma imagem estranha, deve ser algo da mitologia hindu ou budista.

Nesse estado de consciência era possível separar cada percepção de mundo. Sabia o que eu sentia do mundo físico, do mundo espiritual e do mundo imaginário. As coisas organizavam-se em camadas.

Comecei a notar um zumbido no ouvido e percebi que eu podia controlar esse zumbido. Pensei serem as ondas cerebrais. Eu as alterava. Conseguia fazer o lado esquerdo ou o direito funcionar. Tinha controle total sobre mim mesmo. Meus olhos começaram a abri-se lentamente e algumas luzes podiam ser notadas, apesar de eu estar vivenciando alucinações. Via muitos raios de luzes.

Sentia-me livre. Comecei a tentar sair do corpo. Vi numa dimensão 3D eu saindo do corpo, mas não saí efetivamente. Ouvia o som do meu coração como tambores. Ouvia um emaranhado de vozes. Pensei estar ficando louco e vi que as imagens vinham junto com a respiração. Toda inspiração produzia um flash onírico. A expiração trazia um ambiente de terror. Céu e inferno vinham ter comigo. Pensei mesmo ter pirado de vez. Alguns arrepios e convulsões se manifestavam. Estava incomunicável. O som do zumbido e das ondas ainda eram muito perceptíveis. Podia entender cada realidade. Havia o mundo real, onde ouvia minha mãe conversando com meu padrasto no quarto ao lado; havia o mundo biológico, onde sentia as ondas e cada reflexo do pensamento se manifestando no corpo; havia a realidade do pensamento, onde eu me afogava em fantasias e visões; e havia uma outra realidade espiritual onde eu ouvia canções e vozes, onde tudo era claro e simples. Ouvia um hino do Santo Daime que falava sobre Maria e sobre o céu. Eu via seres de outros mundos dançarem para mim. Era bonito. Formavam desenhos, pois era uma multidão de seres que dançavam. Meu espírito dançava, meus olhos viravam pra lá e pra cá. Tinha controle de tudo, mas me afundava nas fantasias. No início pensei que aquilo seriam importantes alertas do inconsciente, mas então notei que eram meras fantasias, as quais eu não devia tentar interpretar ou buscar sentido, mas apenas vivenciar, experimentar. Pude entender a diferença entre a loucura e a sabedoria, pois até então não conseguia entender direito essa diferença. Loucura é o que eu estava vivenciando naquele momento. Um caos de sons e imagens dos quais eu não tinha qualquer controle. Os arrepios e convulsões me faziam pensar que havia surtado mesmo. Cada vez ficavam mais fortes. Sentia os pensamentos e imagens diretamente no corpo. Me lembrei que os céticos dizem que muitos desses caras que tem experiências religiosas são doentes mentais e isso me deu um conforto, pois eu sei o quanto a psiquiatria convencional é limitada, e de repente eu não estava despertando doença mental nenhuma, mas estava tendo um contato com o mundo do numinoso.

Uma frase que havia lido durante o dia ecoou na minha cabeça. Dizia o seguinte: “os estados de consciencia são estranhos. O inferno e o céu são tão grandes que um está dentro do outro”. Na verdade não era isso que havia lido, mas era como eu havia interpretado. Comecei a pensar na lista de discussão do Mundo dos Sonhos (um grupo virtual onde se discute sonhos com base na teoria junguiana). Pensei também nas pessoas do Mundo dos Sonhos. Abri um sorriso no escuro. Algumas coisas que o Dr. Cesar (um integrante do grupo) havia me dito começaram a fazer sentido na minha cabeça e aí vi uma imagem dele subindo, crescendo e se tornando um mago, todo de branco.

As ondas ainda eram controláveis. Sentia como que envolvido por muitas ondas e os arrepios continuavam, apesar de mais amenos. Percebi que aquilo era como uma Crise de Felicidade. Uma idéia, uma imagem que vem de uma hora pra outra de forma avassaladora. O fogo do dragão marinho que vem em ondas atravessando tudo e me obrigando a sentir um arrepio e perder controle do próprio corpo por instantes. O que sentia era a consciência lutando para se manter presente frente a todo o poder caótico e desordenado do inconsciente. Visualizei uma serpente marinha lá longe navegando em um oceano. Ela era imensa e ondulava na água. Era uma cobra que cuspia fogo apesar de estar na água. Ela vinha em ondas e era a personificação da Crise de Felicidade.

Me levantei para tentar anotar algumas coisas. Percebi que ainda estava extremamente alterado. Muitas vozes na cabeça. Muita música. Peguei um caderno para tentar relatar a experiência, mas era a experiência que me relatava. Não era eu a escrever, mas minha mão se mexia sozinha e rabiscava palavras sem sentido, interligadas pela rima que faziam umas com as outras.

A sensação é que aquele estado de consciência sempre foi presente, mas nunca notado. Tudo aquilo que eu vivia naquele momento esquisito era o que eu sempre vivia no meu dia a dia, mas então agora eu podia perceber o verdadeiro tumulto da minha cabeça.

Eu sentia as ondas cerebrais, as vozes, as músicas. Comecei a pensar se aquilo se tratava de algum flashback de alguma droga que usei. É que já há uns três ou quatro fins de semana consecutivos eu havia feito experiências com cogumelos, sementes e ayahuasca. A idéia de aquilo tudo se tratar apenas de um flashback me acalmou. Afinal eu talvez não estivesse ficando louco nem nada (porque no momento era isso o que eu pensava), mas aquilo talvez fosse apenas um surto passageiro e logo eu voltaria ao normal.

Percebi que não estava em condições de escrever, larguei o caderno de lado e voltei a deitar. Comecei a achar que a locomotiva da experiência era o movimento dos olhos e da percepção auditiva, quando eu oscilava a captação do som, pois quando eu captava apenas o som com o ouvido esquerdo e depois só com o ouvido direito, eu desmembrava as ondas cerebrais e com um pouco de treino eu controlava as ondas e entrava em outras dimensões. O movimento dos olhos eram em arcos, como num arco-íris ou como o chapéu de um cogumelo. Vi cogumelos numa rápida visão. “Se a hipótese de oscilar a captação de som e fazer o movimento hipnótico com os olhos está mesmo certa e é mesmo uma forma de separar as ondas cerebrais, então é possível induzir este estado alterado por vontade própria!” - pensei.

Depois percebi que para colorir as imagens mentais o maxilar deveria estar cirrado, pois então estimulava um olho espiritual para perceber coisas além do mundo físico (devo ter lido algo sobre isso há algum tempo e ficou na minha cabeça). Mas aí ouvi um barulho atrás da cama e pensei ser uma barata. Levantei meio esquisito e acendi a luz. Fui para a cama de cima (é uma beliche). Lá em cima os zumbidos cessavam, mas eu ainda ouvia muitas vozes. Fiquei batendo um papo com um surfista. Ele falava com gírias, mas me respondia tudo que perguntava. Era como um oráculo. Dizia ser um flashback tudo aquilo que eu vivenciava. Achei que era a Alma Fungi conversando comigo, apesar de não ter comido nenhum cogumelo. Talvez fossem resquícios da minha ultima experiência.

O surfista me respondeu vários dilemas. Não era algo vindo de mim. O surfista tinha uma existência separada e idéias próprias. Às vezes ouvia outras vozes, mas a do surfista foi a mais intensa.

Notei que meu quarto estava todo plástico e pensei: “é seu doido… tu queria uma experiência, agora tó uma braba em plena terça-feira, meia noite e pouco”. Algumas pequenas alucinações e vultos passavam por mim. Fiquei olhando um quadro na parede que um amigo pintou e me deu. Depois olhei um pedaço de madeira que pintei todo colorido com lápis aquarelado. Eles se fundiam em um. Uma aura aparecia em volta de ambos. As cores se deformavam um pouco, ficavam fortes. O meu guarda-roupas produzia uma sombra no lado esquerdo do quadro, mas aí olhando de um jeito estranho a sombra sumia e o quadro passava a ser uno, apesar da existência física da sombra.

Olhei minhas mãos plásticas. Via uma pequena aura. Pensei comigo: “será que tô tendo um flashback de cogumelos, de sementes ou será o ayahuasca?” cheguei a conclusão que tinha alguns elementos de cada coisa. Os riscos e cores do ayahuasca (não tão intensos), a Alma Fungi do cogumelo, a sabedoria da semente… Uma fadinha era quem havia me tocado. Me mostrava fantasias lindas ou mesmo aterrorizantes. A fada era a máscara da ayahuasca. E havia uma velha bondosa, que era a personificação da semente. Uma criança personificava o cogumelo. A maconha era uma velha sábia que não era nem boa nem ruim, mas que mostrava e que me conectava às mais diversas realidades. Era a mais dinâmica das ferramentas de exploração da mente.

Peguei novamente o caderno e tentei escrever alguma coisa. Agora fluía um pouco melhor. Fui fumar um cigarro na cozinha. Tive um pouco de medo e depois uma panela se mexeu sozinha. Uma voz me dizia que aquilo era para eu desviar minha atenção da experiência, mas que eu não devia me preocupar com aquilo, pois estava protegido. Então fiquei feliz.

Voltei ao meu quarto e adormeci quando era quase duas horas da manhã.

← Voltar ao índice

[2002-10-14] - OS TRÊS TIAGOS

Sobre

Entre as tantas experiências que tive em 2002, talvez nenhuma tenha me impressionado tanto quanto uma tarde vivida sob o efeito das sementes havaianas de Argyreia nervosa.

Não foi apenas uma viagem psicodélica comum. Foi um mergulho em estados de consciência que transitavam entre a contemplação iluminada e a sensação de dissolução pessoal, entre a magia de um jardim encantado e a paranoia silenciosa de um mundo de julgamentos.

Neste relato, atravesso a companhia de três Tiagos, ventos que falavam, luzes que pulsavam, e uma sensação de que o universo inteiro conspirava para construir metáforas vivas diante dos meus olhos.

Relato

Outubro/2002

Talvez de todas experiências (com ou sem psicodélicos) que sobrevivi durante todo esse ano estranho (2002), a que mais me impressionou foi uma agora no dia 5 de outubro com sementes havaianas (argyreia nervosa).

Tudo começou quando eu ia na casa do Tiago dar a ele umas sementes de Argyréia conforme a gente tinha combinado uns dias atrás. Eu fui de trem ouvindo Mutantes e lendo um livro chamado “Mandala”. Ginsberg, Burroughs, Allan Watts, Leary… um compilado de textos e experiências. Achei engraçado que no livro falava sobre um tal de yoga psicodélico e lá descrevia algumas sensações que tive um dia desses antes de dormir. Falava sobre ouvir zumbidos e músicas de outras dimensões, além de ter visões devido a abertura do chacka frontal e coisa e tal. Achei interessante. Um pouco duvidoso pra dizer a verdade…

Sei que aí eu cheguei ao metrô da Vila Madalena e fiquei esperando o Tiago vir me buscar para irmos até sua casa. Lá ficaríamos batendo papo e talvez fumaríamos um baseado. Ele apareceu com sua mãe num carro e fomos para sua casa. No carro falávamos sobre faculdade e essas coisas. Depois falamos sobre sonhos. Se tem um assunto que me interessa são os sonhos e tudo isso do inconsciente, Jung, e coisa e tal. O Tiago falou que tinha sonhado que estava num carro e descia a toda velocidade para uma espécie de piscina ou lago… não lembro bem. A mãe do Tiago falou que havia sonhado com portas e coisa e tal… falou que podia ser um sinal para tomar cuidado com quem entra em casa. Fiquei pensando se era uma indireta para mim ou apenas uma manifestação de minha paranóia. Talvez fosse comigo, afinal de contas eu tava lá com a maior cara de pobre e de louco, enquanto a mulher era uma senhora elegante dessas meio ricas que moram em apartamento caro em condomínios chiques e tudo. Nada concluí. Desencanei daquilo.

Subimos de elevador e fomos eu e o Tiago para seu quarto. Lá ficamos batendo papo. Entreguei as sementes a ele e fiquei brincando com o Toby, um cachorro que eu insistia em dizer que era uma cadela. Também fiquei brincando com a irmãzinha do Tiago, a Gabi. Ela era muito simpática e espertinha.

Depois de mais ou menos uma meia hora os pais do Tiago sairam. Ficaríamos apenas nós em sua casa. Então ele disse estar com uma erva boa e sugeriu fumarmos unzinho. Ele bolou um, fomos lá pra fora na varanda e ficamos fumando. Realmente era um fumo muito bom. Acho que foi uma das coisas mais fortes que já fumei. No duro mesmo. Eu fiquei extremamente alterado. Tudo parecia acontecer em câmera lenta… falar era algo muito difícil. Fiquei muito calado durante aqueles momentos.

Então, algum tempo depois, voltamos ao quarto. O Tiago perguntou se eu estava afins de tomar as sementes com ele. Eu fiquei com medo. Não estava nos meus planos viajar de LSA naquele dia e depois já estava alterado demais com maconha para viajar ainda mais longe… não respondi nem que sim nem que não. Estava meio difícil falar.

Enquanto estava lá pirando notei que as cores estavam mais nítidas. O horizonte estava muito brilhante. Como eu estava sem óculos as coisas pareciam pegar mais cores e ficarem menos focadas. Era uma boa sensação. O Tiago ficou olhando as sementes. Disse que havia tido uma afinidade pelas pequenas e que aquilo era muito positivo. Concordei sem falar nada. Eu entendia tudo o que acontecia, mas era impossível dizer qualquer coisa. Minha boca estava muito seca. Parecia que queria entrar para dentro como aqueles velhos sem dentes… pedi um copo de água e então fomos até a cozinha. Depois de saciar minha sede fiquei um pouco mais comunicável, mas ainda me mantive calado. Estava muito alterado, e pra dizer a verdade não estava muito legal. O Tiago perguntou novamente sobre o que eu achava de tomarmos as sementes. Olhei para o relógio. Era mais ou menos duas horas. Topei.

Mas então não tomaríamos muito. Seriam apenas sete sementes para mim e oito para ele. Meu recorde com sementes foi uma extração em água de 16 sementes. Sete seria uma dose teoricamente pequena.

Acontece que ao invés de fazer a extração com água, o Tiago estava afins de ingeri-las completamente. E foi o que fizemos. Massetamos as pequenas ritualisticamente até se tornarem um pó mais ou menos fino. Então diluimos esse pó em dois copos de água e tomamos. Ugh. Só de lembrar o cheiro daquilo me dá náuseas. A textura também…

Pronto. Agora era esperar os efeitos colaterais se manifestarem. O telefone tocou e o Tiago atendeu. Parece que era um amigo seu que ia até sua casa para conversar, fumar um e tudo.

Então voltamos lá para o quarto e ficamos papeando e aguardando os efeitos do LSA. Depois de uns dez ou quinze minutos apareceu o amigo do Tiago. Seu nome também era Tiago. Vou chamá-lo de Tiago II para não confundir a leitura… ficamos os três por um tempo lá no quarto. Fiquei ainda muito calado. Conseguia entender tudo, mas era impossível me comunicar. Num certo momento o Tiago foi ao banheiro e então o Tiago II puxou assunto enquanto eu estava vidrado num profundo nada. Me perguntou:

  • Onde você mora?
  • Jandira - disse e voltei a ficar olhando para o nada.
  • Você estuda?
  • Estudo. Faço cursinho.
  • Onde?

Que merda. Que cuzão. O cara falava lá com um olhar desconfiado, me intimando. Certeza que era minha cara de pobre. Só respondi:

  • No Objetivo em Alphaville.

Fiquei um pouco quieto e depois perguntei:

  • E você, estuda?
  • Tô no terceiro colegial.
  • Ah… legal - tentei ser simpático e puxar algum assunto para acabar com aquela palhaçada - você vai prestar algum vestibular esse ano?
  • Vou prestar pra filosofia.
  • Ah legal! Cheguei a pensar em prestar pra filosofia, mas hoje em dia estou mais interessado em prestar pra biologia. Quero estudar a vida e coisa e tal…

Aí o cara me perguntou sobre as coisas que eu gostava, mas sempre com seu olhar desconfiado. Babaca. Falei que gostava de plantas, cogumelos e de desenhar. Aí mostrei uns desenhos pra ele. Até que ele pareceu achar legal, mas aparentava uma falsidade e desconfiança muito grande. Fiquei muito confuso, pois não sabia se ele estava mesmo afins de me sacanear ou era eu que estava numa paranóia braba. Aí o Tiago chegou e eles ficaram papeando. Eu voltei a ficar vidrado no nada, que era bem mais interessante que papear com aquele palhaço.

Decidimos sair e ir lá perto de uma fonte no condomínio do prédio. Eles ficaram conversando e eu ia me distanciando do mundo cada vez mais. Estava tão imerso em mim mesmo que nada do mundo exterior podia me afetar. Ouvia ainda o Tiago II jogando indiretas contra eu. Era até engraçado. Ele tentava influenciar o Tiago dizendo que havia descoberto como funcionava a Matrix e dizia que isso tinha relação comigo, como se eu estivesse corrompendo o pensamento do Tiago. Dizia que “esses caras revolucionários só se fodem no final das contas” e coisas assim. Cara louco esse Tiago II. Ou eu. Ou sei lá. Só sei que eu entendia ou achava que entendia tudo. Sabia, ou achava que sabia de tudo que estava acontecendo, e num rebote de um sentimento de inferioridade, desses que nos fazem sentir-se superiores, de algum jeito senti que estava num degrau acima, olhando tudo do alto. Minha consciência estava livre e de uma certa maneira, estava apática. Não tinha porque tentar me defender de qualquer coisa que o cara dizia contra minha pessoa. E aquilo que ele dizia para mim passou a ser uma espécie de desafio. Me parece que eu estava me saindo bem ficando quieto.

Fumei um cigarro. A trip estava ficando cada vez mais intensa. Fiquei olhando as ondinhas na fonte. Estava tendo alucinações visuais bem interessantes olhando a água fluir. Depois me deitei no chão e fiquei olhando o céu. Notava um zumbido muito forte no ouvido direito. Segundo o livro que eu estava lendo quando um zumbido começa no ouvido direito é um bom presságio. A intensidade aumentava e a interação com as forças da natureza que eu sentia naquele momento era algo que eu nunca havia sentido antes. Eu estava meio ansioso. Me movimentava demais. Naquele momento eu sentia um certo peso por não poder falar sobre minha trip com o Tiago. Eu queria me comunicar, mas era impossível. As forças que agiam sobre mim eram fortes demais. Apesar disso eu entendia tudo que acontecia ao meu redor. Era um estado de plena absorção, mas era impossível a comunicação.

Depois de um tempo em frente à piscina resolvemos andar. Fomos até um lugar chamado Praça do Pôr do Sol ou coisa parecida. Lá tudo era muito lindo. O sol estava ameno. O Tiago II continuava torrando meu saco, mas foda-se. Sentei do lado direito do Tiago e o Tiago II ao seu lado esquerdo. Fiquei apenas contemplando as coisas. Quando me perguntavam alguma coisa o máximo que eu conseguia fazer era apontar para o que estava olhando. Quando o Tiago II falava alguma coisa para me sacanear eu olhava para a cara dele e dava um sorriso. Às vezes pensava: “Pow… mas o Tiago pode se influenciar pelo pensamento do Tiago II, acreditar em toda merda que ele tá falando e começar a pensar bobagem de mim…” depois pensei: “…mas isso é entre eles. Não sou eu que vou me defender, mas ele é quem vai tirar suas próprias conclusões”. E continuei olhando a vida se desenvolvendo. O Tiago II acho que me via como revolucionário, místico, bruxo, viado ou sei lá… o cara não tinha ido com minha cara. Acho mesmo que é porque, pela minha forma de ser e me vestir, ficava claro que eu era de uma classe social economicamente inferior e era meio esquisitão, calado. Os Tiagos eram playboys, de outro mundo, outra idéia. Eu falava com o Tiago pela internet porque tínhamos interesses em comum sobre magia, plantas e essas coisas, mas éramos de mundos diferentes. Talvez o Tiago II tinha medo que eu fosse algum tipo de maníaco, ladrão, aproveitador. Ele ficava apontando o que achava de ruim em mim para o Tiago. Eu acho que ele fazia isso por eu ficar lá quieto na minha. Já notou como as pessoas geralmente atacam aqueles que são meio quietos e não se envolvem muito? Acho que o problema é a curiosidade que o silêncio desperta. Acho que eu deixava o Tiago II curioso por não dizer nada e ele ficava me atacando indiretamente. Eu me sentia plenamente consciente. Não sentia minha consciência alterada, mas sim expandida. Certas drogas me alteram, mas as sementes naquele dia estavam apenas me expandindo… e eu entendia tudo que estava acontecendo, e tentava não me importar.

Enquanto eles ficaram lá conversando eu fiquei viajando e brincando com as sensações. Ficava “respirando junto com a Terra”. Eu sentia os movimentos. Via as folhas cairem, os pássaros voarem. Estava num estado de profunda contemplação e absorção. Parece que ao mesmo tempo que eu via uma formiga andando no chão eu via um pássaro no céu e uma folha se desprendendo da árvore. Naquele momento pensei que aquele estado contemplativo era algum tipo de iluminação budista. Na verdade, durante aqueles momentos, eu tinha certeza de estar atingindo uma espécie de iluminação definitiva. Nada poderia me tirar do estado contemplativo em que eu estava. Aquele Tiago II seria como o próprio diabo testando minha iluminação e minha paciência. E eu deveria ser como um Buda ou Jesus e lidar com aquilo com calma, paciência e sabedoria.

Eu realmente tinha alcançado a tal da iluminação. Era agora um sujeito santo.

E a natureza falava comigo através de seus sinais. Um vento do ocidente anunciava que o Tiago II falaria alguma coisa. E falava. O vento do oriente tocava no meu rosto e me dizia para não me preocupar com aquilo. Havia uma nítida diferença entre as coisas que aconteciam no lado esquerdo e no lado direito dos sentidos. Eu aprendia a diferenciar a mão esquerda da direita, o ouvido esquerdo do direito. Os sons e os ventos do oriente traziam alívio e alegria. Os sons e os ventos do ocidente traziam tensão e dificuldade.

Notei que as minhas mãos estavam “inchadas”. Era a vasoconstrição, pelo que entendi. Meu corpo estava muito quente, minha respiração muito profunda. Não eram sensações ruins, mas me fazia pensar até quando eu estaria naquela piração toda. Aquele era certamente o pico da viagem. Não podia ficar mais alto que aquilo. Todos os sons, cores, sabores, cheiros e tudo o que os sentidos podiam captar era absorvido por mim como se fosse a primeira vez que os sentia. Uma coisa que começou a me incomodar foi minha roupa que era toda preta. Sentia que toda a intensidade da minha experiência era devido a roupa preta, pois absorvia todas as cores e luzes. Atraia muitas coisas boas, mas também coisas ruins. Eu não me sentia mal, porque minha consciência continuava a filtrar toda energia. Eu sentia que tudo chegava até mim, mas era minha consciência que selecionava o que eu absorvia. Minha consciência estava boa, tranquila, sem nada a dever ou temer.

Depois de um tempo nós voltaríamos e íriamos até a casa do Tiago para pegar a bicicleta do Tiago II e irmos até a casa de um outro Tiago, o qual vou chamar de Tiago III. Fomos seguindo pela praça e o Tiago parou em frente a uma árvore para contemplá-la. Então perto dessa árvore notei algumas flores coloridas. Elas brilhavam como se emitissem uma luz própria. Devido a minha dificuldade de me comunicar apenas apontei para as flores e o Tiago logo sacou o que eu queria dizer. Era muito legal me comunicar com o Tiago, pois ele entendia tudo o que eu dizia e pensava sem eu precisar falar. Sob o efeito das sementes existe uma espécie de telepatia intuitiva. A capacidade de se comunicar sem usar palavras se expande bastante mesmo.

Fomos andando. Parei em um boteco e comprei um guaraná, pois meu corpo estava muito quente e eu sentia muita sede. Ofereci guaraná para o Tiago e o Tiago II. Estávamos todos com muita sede. Fui falando um pouco com o Tiago. Quando eu andava era bom, porque a energia não se acumulava nem me sufocava como quando eu ficava parado. Andar era muito positivo.

Chegamos até a casa do Tiago III. Ele havia acabado de acordar. Achei bizarro o fato dos três caras se chamarem Tiago. Parecia coisa de filme. O Tiago III parecia ser uma pessoa muito legal, mas eu estava muito alterado para poder conversar com ele. Entramos em sua casa e eu fui até em frente a um quadro cor de laranja e não sei porque perguntei:

  • Foi você que pintou?

Eles olharam desconfiados para mim. Respondeu que não. Eu era o louco incomunicável. Sentia que uma aura de mistério pairava sobre mim, mas isso na visão deles, pois para mim tudo estava claro e límpido. Raios atravessavam minha visão. Tive muitas alucinações visuais e em cada fonte de luz um círculo com todo o espectro de cores se formava em volta.

Depois fiquei bebendo mais água e viajando. Via muitas luzes e cores. O círculo de cores agora contornava todas as coisas (não apenas as fontes de luz) me fazendo pensar naqueles desenhos budistas coloridos. Era tudo fantástico. Fomos até o jardim da casa e lá vi um bonito pé de maconha. Achei bem legal. Pensei em como seria legal ter um jardim como aquele. Então no meio do jardim notei um pé de pitânga com umas poucas pitângas. Enquanto o pessoal ficava conversando eu fiquei comendo algumas pitângas. Depois de um tempo entrei novamente na casa. Eles estavam fumando skank, mas eu não quis fumar. Então sentei num sofá e lá fiquei. Eu tinha uma certa dificuldade em respirar e a temperatura do corpo parecia estar cada vez mais alta. Sentia muita sede. O Tiago III colocou uma música eletrônica que parecia que aumentava minha dificuldade de respirar. Também aumentava a temperatura do meu corpo. Era muito pesada, dava uma sensação ruim. E eu sentia meu corpo fraco. Para acalmar a temperatura, fortalecer o corpo e me suprir de oxigênio bastava respirar profundamente e tudo voltava a brilhar.

Então depois de um tempo o Tiago II sentou ao meu lado no sofá. Me parecia que ele havia desistido de me azucrinar e ficou lá sentado. Não falamos nada e depois de um tempo ele resolveu ir pra casa. Ele levantou-se olhou bem para os meus olhos e disse tchau. Eu apertei sua mão, dei um sorriso e falei tchau para ele. Então o Tiago III ficou mexendo no computador e eu perguntei se podia fumar lá no jardim. Ele me deu passe livre e fiquei lá fora.

Então lá fora era tudo de bom. O vento soprava e acalmava todo o calor e falta de ar. Fiquei fumando e fui em frente a um pé de amora que tinha um pedaço de papel escrito “Denise”. Pensei que era o nome da árvore. Notei que havia apenas uma amora no pé. Depois fui em frente ao pé de pitânga. Na verdade a árvore não estava plantada, mas estava numa espécie de vaso. Lembrei do pé de pitânga que tenho em casa e significa muito pra mim. Seria uma coincidência eu estar experimentando aquela gama de sensações num lugar que eu nem conhecia, na casa de um cara que eu nem conhecia, sozinho num jardim com um pé de amora com uma única fruta e um pé de pitânga com alguns frutinhos? Tudo para mim parecia ser algo arquitetado por uma consciência divina. Ecco para um cientista louco, sincronicidade para Jung, coincidência para os seres humanos comuns, psicose e loucura para aqueles que percebem que não tem nada demais um pé de pitanga e um pé de amora no quintal… o fato é que tudo parecia se encaixar perfeitamente. Ficava também pensando que coisa bizarra era conhecer três pessoas ao mesmo tempo com o nome Tiago. Os três Tiagos. Parecia título de contos de fadas. Tudo tinha um ar meio mágico naquela tarde. Aquele jardim parecia encantado. Era um desses que o Syd Barrett devia ter em sua casa. Ou então era esse o quintal que o Arnaldo Baptista dizia na música:

“quero cantar no meio da chuva! lá no fundo do quintal”

O sol estava indo embora. O Tiago e o Tiago III apareceram no quintal. A comunicação começava a ficar possível da minha parte. Conseguia usar um pouco mais a lógica. Perguntei:

  • Denise é o nome da planta?
  • É o nome da dona dela - respondeu o Tiago III.

Então o Tiago me explicou que Denise era o nome da mãe do Tiago III. Sentei numa escada em posição de meia-lótus e fiquei olhando um pé de bambu dançar. Apontei para ele e o Tiago ficou lá olhando também. Comentei que aquele estado de consciência deveria ser o equivalente a iluminação desses budas por aí. Para mim eu havia sido iluminado naquele instante. A natureza e suas forças pareciam se comunicar comigo. Não falavam, mas apenas cantavam a música da existência. O vento, as árvores, as luzes. Tudo cantava enquanto o dia ia indo embora junto com o sol.

Não sei se foi a noite ou o que foi, mas o fato é que uma certa ânsia começou a me incomodar. Precisava vomitar. Fui ao banheiro, me ajoelhei e vomitei. Não saiu quase nada, pois estava quase em jejum. Mas na verdade não era uma coisa física que eu precisava vomitar, eu sentia que era um negócio mais espiritual, assim como em minha experiência com o daime. Eu vomitava aquilo tudo que eu absorvia para mim. Eu era uma espécie de filtro, pegando coisas boas e ruins, absorvendo tudo ao mesmo tempo. Então chegava uma hora que eu precisava vomitar, jogar fora as coisas ruins.

Dei umas cuspidas e fui lavar a cara. Me olhei no espelho e minhas pupilas estavam muito dilatadas. Fiquei pensando sobre aqueles rituais de batismo. Então molhei toda a cara e o cabelo e senti um bem estar singular. Voltei lá para fora. O Tiago III continuava no computador. Parecia estar jogando um game de tiro.

Voltei lá para fora e fiquei conversando com o Tiago. Nossa conversa fluía bem. A música eletrônica incomodava e ele trocou o CD para um do Pink Floyd. Durante toda a experiência eu mijava muito. Toda hora ia no banheiro. Toda mijada dava uma impressão de purificação. Estava tirando coisas ruins de mim.

O Tiago então ficou lá dentro e eu continuei no jardim. Eu começava a acreditar cegamente que havia sido mesmo iluminado ou atingido algum tipo de nirvana. Sério mesmo. Eu pensei que a partir de então ia até voar. Sim, eu estava delirando, mas enquanto eu pensava, aquilo me parecia muito paupável. Quando olhei um passarinho em um muro eu pensei: “tá lá! Aquele é a testemunha de tudo o que eu tô sentindo”. Aí olhei para o pé de pitânga. Aquele também era testemunha.

Aí o Tiago apareceu com um violão e ficou tocando lá fora. A música fluía de maneira maravilhosa e ele dizia que não era ele a tocar… as notas saíam sozinhas. Então um gato preto veio descendo as escadas e me fazendo lembrar de uma música do Syd Barrett onde diz sobre um gato:

the cat is in the left side
you are in the right side
oh no!”

(era o que eu lembrava, mas na verdade diz):

you are in the left side
he’s the right side
oh no!”

O gato passou por nós e ficou agindo de uma maneira estranha. Depois foi lá para o meio do jardim, as sombras o esconderam e eu não mais o vi. Às vezes via alguns vultos e luzes nas sombras e aí me alimentava de fantasias imaginando que eram gnomos.

Então já era noite. Entramos na casa e ficamos sentados no sofá. De repente apareceu um jardineiro e a mãe do Tiago III. Então a coisa mais estranha: eles iam replantar o pé de pitânga!! Para mim aquilo era uma estranha coincidência. Eu ficava divagando sobre o fato de eu usar um pé de pitânga como “testemunha” da minha iluminação, e no mesmo dia esse pé de pitânga seria replantado em solo firme, consolidando minha santidade! Achei aquele fato curioso. Ainda mais por se tratar de um pé de pitânga, que é uma árvore importante pra mim.

Isso é uma coisa estranha das sementes: a linha de raciocínio que ela nos induz acaba por produzir uma percepção incrível de coincidências, sinais e presságios. O problema é que muitas vezes ela induz também a delírios. A gente acaba acreditando em uma porção de coisas irreais. Sem dúvida nenhuma, as sementes tem algo tão forte quanto o ayahuasca no que diz respeito a espiritualidade, mas para usá-las com esse fim é necessária extrema cautela, caso contrário acabamos por acreditar em fantasias, delírios e é isso que caracteriza certas doenças mentais. As sementes podem surtar pessoas…

(mas cá para nós: ela é bastante convincente, a ponto de que quase me sinto dizendo esse disclaimer da boca pra fora, e aceitando os significados que ela me propõe para compreender as coisas…)

Então o Tiago trouxe um pedaço de pão e uma maçã. Ele disse:

  • Engraçado isso tudo.
  • Como assim? - perguntei.
  • O pão. O trigo. Jesus Cristo.
  • Podiscrê né? E aí tem a maçã…

Comi um pedaço do pão. Ele me ofereceu a maçã. Hesitei. Pode parecer besteira, mas eu estava vivendo uma experiência metafórica ali. Tudo era simbólico. Para mim a maçã naquela hora não era um alimento, mas um símbolo. A maçã era o tal do “fruto proibido”. Depois olhei novamente para a maçã. Era apenas uma fruta. Fiquei indeciso durante um tempo se deveria ou não comer a maçã. Acabei por comer um pedaço. Isso já era mais ou menos umas sete ou oito horas da noite e eu precisava ir embora.

Falei com o Tiago e me despedi do Tiago III. Eu estava bem mais comunicável. Fomos até a casa do Tiago, peguei minha mochila que eu havia deixado lá, e ele me desenhou um mapa de como voltar para casa. Na verdade eu queria me perder nas ruas… queria andar, andar, andar seguindo apenas minha própria intuição. Mas de qualquer forma seria interessante guardar um mapa no bolso para caso eu me complicasse demais no meu caminho de casa. Eu sentia muita falta de voltar pra casa. Sentia falta da minha cama. Estava cansado e queria deitar.

Então o Tiago me acompanhou até a rua, pois iria passear com seus cachorros. Ficamos conversando um pouco em frente sua casa e depois decidi me aventurar no caminho de volta. Passei por casas muito bonitas. As ruas eram muito arborizadas. Sentia como se estivesse perdido numa espécie de paraíso, quando na verdade eu só queria voltar para meu quartinho fulera de sempre.

Comprei uma coca-cola e fui fumando cigarros e às vezes perguntando para as pessoas como se chegava até o metrô da Vila Madalena. As pessoas pareciam ter um certo medo de mim. Talvez devido ao tamanho das minhas pupilas (muito dilatadas) e pelo fato de eu estar todo de preto. Aquela roupa me incomodava demais. Ainda mais quando notei que a latinha de coca-cola era vermelha. Aí eu me sentia o próprio Exu vermelho-preto, que certa vez já havia se manifestado em mim em um sonho muito estranho que tive. Aí a roupa me incomodava cada vez mais. Fui caminhando com toda aquela má impressão, seguindo meus instintos e perguntando onde ficava o metrô até que finalmente o encontrei. Então fiquei lá sentado em frente ao metrô terminando de tomar minha coca-cola e fumando. Fiquei olhando os carros e lembrei da primeira passagem de um texto que eu escrevi um tempo atrás. Dizia algo como:

“Às vezes fico sentado olhando a vida passar. A vida nunca passa, mas passam ônibus, carros e tudo mais…”

Aquele era eu. Ficava olhando os carros passando. Uns indo e outros voltando. Me parecia que o mundo estava entrando numa transição de ciclos. Logo os papéis se inverteriam. Ficava pensando sobre o futuro, sobre a história humana. Ficava pensando em possibilidades, pensando no que estariam pensando as pessoas correndo com seus carros na avenida. Fiquei olhando as luzes dos faróis e postes lá na rua. Não sei se é porque eu estava sem óculos ou porque minhas pupilas ainda estavam muito dilatadas, mas o fato é que via o espectro de cores que saia de cada farol e de cada poste. Todas as cores partiam de uma e iam de mutação em mutação se transformando em outras e outras cores… e o círculo de cores continuava em volta de tudo. As luzes eram como diamantes brilhando. Naquele momento as cores começaram a tomar grandes significados para mim. Começava a divagar sobre o bege e o laranja. São as cores que estavam voltando para a luz de origem. O verde era vida e se tornara bege, transição para ir ao amarelo e voltar à luz branca. O vermelho eram desejos e se tornara laranja, transição para também voltar ao amarelo e finalmente à luz branca. Notei que a cor amarela nos carros, ônibus e essas coisas era sempre a que mais me dava impressão de intensidade. Fiquei pensando muito nas cores e os seus significados. Percebi que não era bom se apegar a nenhuma delas, mas sim se apegar a luz. A luz pura que não se separa. Então me deu vontade de ir mijar e eu entrei no metrô. O problema é que lá não tinha banheiro e eu tive que ir de baldiação em baldiação me segurando. Minha temperatura corporal estava insuportavelmente quente! Eu precisava chegar logo na barra funda para mijar, lavar o rosto e respirar! Um mal estar generalizado se apoderava de mim. Meu rosto pingava suor. Era minha roupa preta e aquela maldita coca-cola vermelha na minha mão!!

Chegando na Barra Funda eu fui rapidinho para o banheiro, lavei o rosto, joguei a maldita coca-cola fora e fui mijar. Tive uma certa vontade de vomitar, mas não saiu nada. Fui pegar meu trem.

Lá na estação a roupa me incomodava ainda mais e também a ânsia aumentava. Chegando em Presidente Altino eu tive que descer do trem devido a intensidade da ânsia. Na verdade não era vomitar o que eu queria, mas era uma estranha sensação de jogar pra fora algo que não era material, mas psicólogico ou talvez espiritual. Minha voz se alterava. Eu me sentia como que possuído por alguma entidade como já vi tantas pessoas por aí. Talvez fosse o tal do Exu. Sei lá! Vai saber né? O fato é que minha voz alterava e eu tentava expelir algo que na verdade não queria sair. O máximo que saía eram umas cuspidas. Mas parece que só de tentar forçar para a coisa sair a ânsia diminuía. Então eu olhei a luz da estação e fiquei olhando o círculo de cores ao seu redor. Aquilo me acalmava. Fiquei olhando até chegar um outro trem. E quando chegou, a viagem foi um pouco mais tranquila. Resolvi descer em Barueri para voltar a pé. Encontrei umas chegadas no meio do caminho. Fiquei tentando bater um papo com elas, mas eu não estava nada bem e fui seguindo a pé sempre com aquela vontade de expelir aquele algo dentro de mim. Era uma espécie de limpeza. Aí cheguei em casa ainda bem alterado, tomei banho, jantei e fui dormir.

As sementes proporcionaram uma viagem bem interessante, muito mais espiritual que qualquer coisa. Difícil é saber o que é fato e o que é delírio. Mas no fundo no fundo ninguém consegue diferenciar uma coisa da outra, mesmo careta…

← Voltar ao índice

Parte III — Uso Recreativo: entre o ordinário e o extraordinário

Relatos de 2003-2005

Nesse período a vida parecia estar entrando nos trilhos. Estava namorando, cursando a faculdade, entusiasmado com o trabalho. A espiritualidade dava lugar a sonhos de carreira e vida adulta. As substâncias estavam em um lugar mais recreativo e saudável do que antes.

Não me levar a sério foi a chave que encontrei naquele momento para lidar apropriadamente com minha atração pelos estados alterados de consciência. Sustentar o aspecto lúdico, sem negar ou acreditar de forma literal nas fantasias e nas possibilidades que nos são apresentadas em uma experiência podem manter a experiência em seu devido lugar: no lugar do mistério, das possibilidades, da ambiguidade simbólica que nos conectam àquilo que há de mais puro e essencial, e que muitas vezes perdemos ao crescer: a capacidade de brincar e imaginar.

Ao contrário do que se pensa normalmente, muitas vezes as experiências recreativas são mais espirituais do que aparentam em sua superfície, e às vezes as experiências ditas “espirituais” são pura bobagem que produz uma série de problemas e obsessões desnecessárias.

Esses relatos são simples, caricatos, escritos de um jeito meio apressado, quase superficial, mas esses são relatos que agora relendo, não sinto vergonha. Leio sorrindo com nostalgia. Espero que ainda comuniquem aquilo que eu quis expressar quando os escrevi.

[2003-12-31] - SEMENTES DE ANO NOVO

Era dia 31/12/2003. Às 9h acordei, liguei e falei:

  • ei, podemos ir?
  • ok.
  • então te vejo lá.
  • tá. tchau.

Tchau, tchau.

Fui tomar banho, mas antes dei uma olhada no vidrinho de nescafé. Lá estavam as 12 sementes prontas para nos oferecer um ano novo cheio de paz, tranquilidade e bla bla blá.

Então tá certo. Tomei meu banho, arrumei a mochila, guardei o vidro e a canequinha mágica e zarpei para a praça da cidade.

Fumei um ou dois cigarros e ela apareceu. Estava tensa. Eu também estava tenso. Depois dali não sabia o que podia acontecer.

  • quer ver?

Mostrei o vidrinho pra ela. Decidimos tomar ali mesmo e já coloquei metade da mistura na minha canequinha mágica. Ela bebeu sem maiores problemas.

Só de olhar para aquilo me deu um nó no estômago. Já experimentei viagens ao paraíso, estadias no inferno, contatos telepáticos com seres humanos e outras entidades. O que haveria de acontecer dessa vez? Já no natal eu tinha tomado esse treco. Foi bom. Falei com a Terra, mas ninguém acredita mesmo nessas coisas. Aí, ainda no natal, vi até uma estrela cadente e a Tartaruga Cósmica veio ter comigo e falar sobre a evolução do mundo. Mas ninguém vai acreditar mesmo, afinal, eu mesmo não acreditaria num drogado que fala que viu gnomos espalhados no jardim…

Tá. Tomei. E agora?

Fui no banheiro da rodoviária lavar minha canequinha mágica e acendi mais um cigarro. O cheiro da mistura me dava náuseas…

Fomos para uma outra praça, mais retirada do centro. Ficamos lá. Ela já estava reclamando de sentir náuseas e ficou um tempo encolhida do meu lado. Eu também não estava bem, mas colocando a mão sobre o umbigo amenizava o desconforto.

  • a morte te pega pelo umbigo - ela falou. Era coisa de Don Juan e Carlos Castaneda. Diz que quando estamos fracos é o umbigo que devemos proteger.

O meu tava protegido com minha mão que parecia que ficava cada vez mais quente.

Ela também protegia o dela enquanto ficava lá encolhida.

Mais um tempo depois e fomos andar pela floresta.

Imagina uma praça abandonada, perto de uma escola abandonada… tudo no meio do mato, como uma civilização perdida na floresta. Uma antena de comunicação, uns nóias de bombeta pra trás. Fodam-se eles todos. Estávamos na floresta, sugando energia de vários lugares. Daqui, dali, das pedras, do mato. Uma borboleta azul cruzou minha visão. Um bom agouro. Tudo ficava bem de uma hora pra outra, assim como tudo ficava mal de outra hora pra uma. Mas tava tudo ok. Ela queria porque queria catar espinha da minha cara. Ah! Cataí! Num tô sentindo nada mesmo. Ficou lá espremendo minha cara… foi legal, mas quando acabou a energia daquele lugar fomos para outro. Nos enfiamos no mato e as pessoas lá da antena de comunicação ficaram nos olhando.

  • tá olhando o quê? tô limpo! num tenho droga nenhuma aqui, mas eu sou doido da cabeça, sabe? é… doidão mesmo… que que é? tô te fazendo algum mal?

Não falei nada disso. Só imaginei.

Lá no meio do mato ela olhou umas cores azuis pelo chão. As mesmas que eu havia visto e não comentado nada. Ela se sentou num banquinho e ele estava amarelo. Para mim também ele se apresentava amarelo.

Ficamos um tempo ali e ela quis sair. Achou que era um mal lugar. Fomos para um outro, logo em frente, e aí ficou tudo ok. Mas ela estava passando mal e ficou lá deitada. Eu não estava tão mal, a não ser pelo fato de ficar cuspindo toda hora. Conseguia controlar tudo. Meu corpo queria fumar, mas uma vez que minha mente não se importava eu ficava lá numa boa, sem nada de ruim na cabeça.

Ela falou que estava vendo riscos e bolinhas com os olhos fechados e isso parece que a fazia esquecer de que estava passando mal.

Eu fiquei olhando uma mariposa voando pela floresta. Depois uns mosquitos gigantes. E uns outros bichos…

Ficamos um bom tempo lá.

A sensação de estar conectado com tudo ao redor era nítida. Uma espécie de onisciência da floresta. Cada som, cada folha que caia… tudo estava ok, tudo sob controle. Depois sentei do lado dela e ficamos lá conversando. Ela me falou que minhas pupilas estavam dilatadas demais e eu estava com cara de louco. Seus olhos brilhavam de um jeito diferente. Acho que me hipnotizei com o brilho, porque depois disso não conseguia mais deixar de olhar dentro dos olhos da menina. Uma conexão legal mesmo. Perguntei se ela sabia que horas eram… eu mesmo já estava perdido no tempo. Se fosse 11h, 13h ou 15h para mim não fazia diferença. Não acharia nada absurdo.

Ela chutou em 13h30 e acertou na mosca.

É incrível a impressão de estar seguro no saber que as sementes nos dão.

Falou que estava com fome. Ora, vamos comer então! Queria porque queria panetone.

Vamos comer panetone então!

Saímos da floresta e fomos para a cidade. Eu olhava para ela, ela olhava para mim e achávamos engraçado essa coisa de “as aventuras no centro da cidade”, porque andar maluco de sementes pela cidade é uma aventura…

Ela foi na loja de R$ 1,99 comprar panetone e eu fui no banheiro mijar. Numa espécie de telepatia maluca eu sabia que eu devia esperá-la ao invés de ela me esperar.

Ela chegou. Fui comprar um suco desses de latinha numa lanchonete onde sempre vou. Era engraçado pedir. Estava bem sóbrio, bem consciente do que estava fazendo, mas era engraçado. Tudo era engraçado. As pessoas lá dentro comendo, as mulheres servindo, dinheiro, café, salgado, coisinhas, rodoviária, pessoas falando… era tudo engraçado e eu não conseguia esconder meu sorriso de satisfação de estar no estado de espírito em que estava.

Ela me viu com cara de lunático e falou para sairmos logo dali porque a gente tava doido demais.

Ok, vamos sair então.

Saímos. Fomos lá para uma grande tubulação de energia. Carros passando apressados na via expressa, perto do cemitério. Muros pixados. O trem passa logo ao lado. Tudo abafado, quente, que calor! Não vamos aguentar isso tudo.

Fomos nos sentar ali perto do cemitério. Ali ela devorou o tal do panetone. Eu nem aguentava ver aquilo perto de mim, porque a sensação de náusea se mantinha.

Fiquei meio malz naquela hora. Me arrependi de ter saído da floresta…

Depois olhei no céu uns trecos de luz.

PUTA QUE PARIU ESSA PORRA É DISCO VOADOR!

  • ÓIA LÁ! ÓIA LÁ OS DISCOS VOADORES! SÃO OS MAIAS CÓSMICOS QUE TÃO VINDO ME BUSCAR!
  • é nada… é só pipa…
  • mas óia lá! o treco brilha! nunca vi um pipa de luz!

Eu sei lá. Pra mim aquilo não era pipa coisa nenhuma. Era disco voador. E eles foram tão gentis que até me reenergizaram a ponto de eu esquecer que estava malz há poucos minutos atrás. Agora já estava cheio de energia, tranquilo, contente e tudo mais!

Às vezes passava um ou outro mané falando que os fantasmas iam me pegar (só porque a gente estava em frente ao cemitério). E eu achava engraçado.

Ela apontou para o oeste e falou que ia chover. De repente, um vento muito forte começou a levar todas sacolinhas do nosso piquenique. Ía mesmo chover, e forte!

Seguimos andando pela via expressa. Se chovesse a gente ia se molhar, se não chovesse num ía.

Começou a cair uns pingos de nada, mas quando ela falou: “poderia chover mais forte”, aí começou a engrossar… falei: “não, muito forte é ruim”. Aí a chuva amenizou. Ela falou que queria que chovesse e ventasse muito! Aí foi foda! Falei que não… que sim… que não… que sim… que não…

Bem… molhou tudo. Mas foi legal brincar com o Pedrão. Estávamos conectados com céu e a terra e isso foi bom.

Acabamos por chegar numa grande praça. O pico da experiência já havia passado. Os olhos dela brilhavam como nunca. Conversamos sobre várias coisas e ainda era apenas 16h! Eu ainda passaria em casa, tomaria banho, falaria “hohoho! feliz ano novo”, cuidaria do meu cachorro e iria para a casa de um amigo comer e comemorar a chegada do ano novo lá…

Então fui pra casa tomar banho. Ela foi pra casa tomar banho. A noite nós íamos na casa de um chegado em comum, passar o reveillon. Meu cachorro estava estranho. Me olhava estranho. Agia de maneira estranha.

Ela me ligou.

Falou que sua gata estava estranha. A olhava estranho. Agia de maneira estranha.

Nos reencontramos.

Os efeitos cessaram, mas os olhos continuavam a faiscar.

E faiscaram até o fim daquela noite.

← Voltar ao índice

[2005-02-01] - ELA E EU EM SÃO THOMÉ DAS LETRAS

Pois então eu tava de férias e ela também. Não tinha muita grana não, mas o que tinha era suficiente para passar uns dias na lendária São Thomé das Letras, em Minas Gerais.

Na terça, dia primeiro de fevereiro de 2005, arrumamos nossa mochila e às dez e meia da noite pegamos um ônibus rumo a Três Corações.

Legal, legal! Ônibus confortável, uma gata do meu lado, o coração cheio de alegria e ansiedade pra botar os pés sobre as pedras da cidade mineira outra vez.

Após uma meia hora de viagem vi um véio correndo lá do começo do corredor em nossa direção, nos últimos bancos do ônibus. Ele tava precisando ir ao banheiro. Aí ele entrou desesperado na cabine lá no fundo e se aliviou enquanto, com sua maldita sessão de descarrego, criou uma atmosfera especialmente infernal para nós, que estávamos no fundo… de onde estávamos ouvíamos sons bizarros dos quais não se pode ter certeza se eram manifestações de disfunções intestinais ou estomacais, quero dizer, se era merda ou se era vômito. Um cheiro desgraçado ficou pairando ali no ar e minha namorada abriu sua mochila para pegar um desoradante e espirrar pelo ônibus, para ver se suavizava o cheiro lá do fundo. Abrimos as janelas, os passageiros ao lado que dormiam acordaram assustados e se abanando.

A própria visão do inferno, juro pra você.

Quando o véio abriu a portinha do banheiro eu prendi a respiração e ao ver a cara dele não aguentei e acabei rindo. Ele olhou torto e sussurrou um “ai, caraio!” depois seguiu para seu banco. Véio cagão fia da puta. Caga e ainda fica xingando.

O resto da viagem foi bem tranquilo. Estrada, estrada, estrada, estrada, cochilo, estrada… nem era muita coisa. Foram apenas cinco horas de viagem até chegarmos em Três Corações, de onde teríamos de pegar mais um ônibus para chegarmos ao nosso destino.

Quando chegamos em Três Corações, o relógio da rodoviária da cidade apontava para quatro e pouco e como o ônibus para São Thomé só passaria às seis, fomos tomar um café num boteco que está sempre aberto. Ficamos lá e depois ela foi ao banheiro, e enquanto eu fiquei a esperando apareceu um cara banguelo com cheiro de cachaça:

  • E aí, tudo bão?
  • Ôpa. Tudo certo.
  • Tá indo pra onde?
  • Pra São Thomé.
  • Eita. Lá é o mió lugar do mundo né não?
  • É. Bem louco. Não conheço o mundo inteiro, mas gosto bastante de lá.

Ele perguntou se fumo unzinho. Falei que sim, às vezes. Falou que se eu quisesse era só procurar ele na cidade que ele me arrumava “do branco”, “do preto” ou qualquer outra coisa. Agradeci, ela voltou, ele a cumprimentou. Seu nome era Alessandro. Sujeito distinto. Falava rápido, sempre rindo, sempre louco, banguelo. Desses caras divertidos que conseguem criar assunto no vazio.

Fomos para um banco da rodoviária esperar o tal do ônibus. Tinha uma garota ao nosso lado. Ia pra São Thomé também. O Alessandro foi também ficar lá conversando. Começou a falar sobre uma vez que ele havia ido à São Paulo pegar metrô e aí tava bem loucão com uns comprimidinhos que ele chamava de “queijo” e foi esperar o metrô lá na linha, enquanto os seguranças iam lá tirar ele. Falava que tinha medo de escada rolante e que São Paulo só tinha gente doida. Olhou pra menina ao nosso lado, que estava lendo um livro, e falou que paulista gosta de ler demais. Ela pareceu satisfeita com sua afirmação. Aí ele complementou dizendo que paulista precisa ler tanto porque é burro. Eu bati nas coxas e vibrei! A menina desprezou o comentário do maluco e continuou seu livro. Ele voltou a conversar comigo. Perguntei se chovia em São Thomé e como iam os pastos. Falou que o tempo estava bom pra cogumelos e ficou contando umas histórias de uma vez que tomou cogumelos e queria escalar a parede feito homem aranha. Numa outra vez tava lá doidão e almoçando. Aí quando olhou o arroz no prato pensou que ele estava se mexendo e começou a gritar pra mãe dele que o arroz queria comê-lo ou sei lá. Depois, foi correndo para o chuveiro mas ao invés de cair água ele via cair fogo e falava que tava se queimando.

Era um sujeito bem distinto. Boa gente o rapaz. Meio louco é verdade, mas muitíssimo boa gente.

Até às seis da manhã ele ficou lá enchendo o saco da paulista que gostava de ler, chamando ela de loira burra e cabeçuda, e ela, depois de um tempo e com algum jogo de cintura conseguiu desprender-se de sua auto-imagem e começou a escrachá-la, entrando no jogo do Alessandro e usurpando suas armas. Um sábio chinês me perguntaria: qual o guerreiro que pode perder uma batalha se não estiver lutando?

Depois de algum tempo a paulista, caretona, e o Alessandro, malucão, acabaram entrando em bons diálogos. E foi legal.

Quando o ônibus chegou, entramos. Seguimos viagem enquanto o sol nascia por trás das montanhas mineiras. Um lindo dia estava nascendo. Teríamos apenas de achar um lugar para passar as noites e poderíamos curtir toda aquela natureza ao nosso redor.

Era quarta feira pela manhã, umas sete ou oito horas quando chegamos. Conseguimos uma pousada até sexta feira, pela manhã, por um preço bom. Era uma pousada bem ajeitadinha e agradável. Fomos lá, tomamos um banho e dormimos até às onze.

Ao acordar fomos andar pelas pedras, no cruzeiro e mirante. Levamos um binóculo que ela comprou de um camelô pra mim e fomos ficar olhando a paisagem. Vi gaviões e urubus em pleno vôo. Vi vacas em pastos distantes e uma riqueza de formas incrível em todas aquelas manifestações da natureza. A vida é mesmo muito bonita. Como sou feliz por ter nascido com um corpo humano capaz de perceber tanta coisa nesse universo magnífico!

Depois de um tempo lá no mirante encontramos um casalzinho. Um carinha me perguntou se eu sabia onde ficavam as cachoeiras. Expliquei pra ele onde eram e depois decidi que iria pra lá, os convidando para uma carona de sola.

Descemos os três quilómetros até a Cachoeira do Eubiose. No caminho fomos conversando. O casal vinha de Sorocaba, eram ambos caretas. Ficaram meio surpresos quando disse que eu fumava um de vez em quando. Acho que nem eu nem ela temos cara de quem faz isso, então algumas pessoas acham estranho mesmo.

No caminho passamos por um pasto e utilizei o binóculo para ver se achava algum cogumelo. Estava doido para tomar uns e ela queria muito conhecer seus efeitos.

Não achei nada. O casal que nos acompanhava ficou um pouco mais assustado conosco, pois haviam ouvido estórias dessas de gente que toma cogumelo e fica doido, e aí ficavam meio receosos… Sei lá.

Chegamos na cachoeira, foto pra lá, foto pra cá, o casal ficou tomando banho e nós fomos andar pelas trilhas. Ela molhou os pés na água e ficou um tempão lá curtindo. Seus olhos mostravam que ela estava bem feliz, e eu fiquei bem feliz de vê-la feliz e aí foi uma felicidade só. Muito legal mesmo.

Depois de curtir as águas voltamos para a estrada, caminhando mais três quilómetros para chegar na próxima cachoeira.

No caminho, mais pastos. Andamos e andamos sob aquele sol quente procurando cogumelos, mas não se achava nada. Pôxa, pusquê cês num aparecem, seus fungos?!

Chegamos na Cachoeira do Flavio. Muitos cretinos se banhando lá. Daquela gente fresca e nojenta que é sempre algo separado da natureza e te olha com um ar de superioridade. Eram provavelmente paulistanos.

Ficamos pouco tempo lá. Muita fome. Para voltar até a cidade teríamos de andar pelo menos seis quilómetros. Fomos, em passos vagarosos, até que de repente surgiu um carro das profundezas da estrada e nos ofereceu carona.

Era uma moradora da cidade. Falou que tinha ido se banhar na cachoeira para fazer uma “hidromassagem”. Legal ela. Toda articulada, uns quarenta anos, voz rouca e grave, camiseta vermelha do PT. Luciene.

Seguimos feliz e contente conversando com ela sobre as pedras da cidade e a administração. Ela parecia gostar de política. Uh, como seis quilómetros passam rápido sobre um motor!!

Faltando uns seiscentos metros para chegar na cidade o carro pifou. Começou a sair uma fumaça branca do capô, ela desligou. É a água que estava fervendo!

Ficamos lá olhando, apareceu um caminhoneiro conhecido dela e ele diagnosticou o problema: a ventuinha não estava refrigerando a água no motor.

Ficamos lá, começou a chover, o cara tentando arrumar, tentando… não deu certo. Ele ficou de ir chamar o marido dela na cidade para ir buscá-la e resolver o problema. Ela falou para irmos com o caminhoneiro de carona. Então fomos.

O caminhão ficou atolado algum tempo antes de conseguirmos partir, mas depois foi tudo ok. O motorista gente fina. O outro véio que ia com ele era meio amargo ou triste ou sei lá. Parecia meio ranzinza. O caminhão sacolejava pra cá, pra lá, o banco lá em cimão… uh!

Chegamos em São Thomé, comemos, fomos para a pousada em que estávamos hospedados e tomamos mais banho. Ficamos enrolando pela cidade e se curtindo mutuamente até chegar a hora de ir dormir.

Dormimos, acordamos. Tomamos banho, tomamos café, fomos para uma outra cachoeira, no Vale das Borboletas. No caminho haveriam pastos onde poderíamos continuar nossa busca por cogumelos.

Apenas dois quilómetros numa pista mais ou menos perigosa e chegamos lá. Logo na entrada da cachoeira já avistei um cogumelo. “Um bom agouro!” ela me disse. Eu o guardei no bolso e antes de irmos na cachoeiras fomos procurar mais cogumelos.

Achamos alguns, guardamos, fomos pra cachoeira descansar e depois faríamos outra busca.

Ela adorou a cachoeira. Antes da viagem ela nunca havia visto uma dessas e estava bem maravilhada. Muitas borboletas voando por ali, um cenário muito agradável e paradisíaco. Tinha pouca gente se banhando. Depois de um tempo só havia eu e ela por ali, o que era ótimo!

Caçamos mais cogumelos, ACHAMOS!

Estávamos com cogumelos suficiente para eu e ela tomar e sobrariam alguns para levarmos pra casa e dar para uns chegados nossos.

Fomos fazendo o caminho de volta torcendo para surgir alguma carona, pois apesar de ser apenas dois quilómetros entre a cidade e a cachoeira onde estávamos, agora era subida que não acabava mais!

Pedimos carona para um jipe.

Um cara cretino negou.

Filho da puta! Tomara que o pneu estoure.

Tomara nada. Tomara que vá bem.

Mas que era um filho da puta, isso era!!

Depois um outro carro. Duas cariocas muito malucax pararam e deixaram nóx irmox com elax. Ouviam um som meio chapado. Uma delas falou que era música de disco voador. Perguntei o nome: PRAM. PÊ, ERRE, AH, EME. PRAM.

Muito legal. PRAM.

Fomos conversando com elas. Falaram que tinha ido para Serra da Canastra, que era o lugar das cachoeiras altas, e agora iam pra não sei aonde. Elas perguntaram de onde viemos, pra onde vamos e fomos papeando assim como papeamos com essas pessoas que a gente conhece quando viaja.

De repente o carro das cariocas ultrapassou o jipe que nos negou carona. Eu olhei os manés lá dentro e cutuquei minha namorada, pra ela ver eles lá. Ela sorriu. Continuamos.

Lá na cidade elas nos deixaram e continuaram em suas viagens com o PRAM.

Eu e minha namorada compramos mel, compramos sorvete em pote e fomos para a pousada para tratar dos nossos cogumelos. Tomamos o sorvete, lavamos os cogumelos, picamos, misturamos com mel, deixamos a dose dos nossos amigos guardada e preparamos nossa dose pra tomar.

Tomamos e fomos andar. Começou a chover. Encontramos o casal na praça. Conversamos um pouco. Depois seguimos em diração às pedras.

Um mal estar inicial, um enjôo, uma estranheza no corpo: estava batendo.

Andamos até o mirante curtindo toda nossa atenção ampliada. Minha namorada parava em cada musguinho para perceber seus detalhes. Estava com um olhar microscópico. Eu me divertia caminhando pelas pedras com todo bem estar físico proporcionado pela psilocibina.

Subimos nas pedras, ela se deitou lá e ficou de olhos fechados absorvida em visões, enquanto eu fiquei sentado com o binóculo apreciando as paisagens no horizonte.

Depois de um tempo continuamos a andar pelas pedras e ficamos por ali até o pôr do sol.

Muitas fotos, muitas visões, insights. Essas coisas.

Num certo momento, lá nas pedras, um guri chegou até nós e disse:

  • Tio, pega meu pipa que tá enroscado na árvore!

Claro! Claro que vou pegar!!

Fui lá com o maior cuidado tirar o pipa do guri, mas vi que estava rasgado. Minha namorada ajudou, tentou tirar com cuidado para não rasgar mais e depois devolvemos para ele.

Saí da cena todo chapadão com ela do meu lado e comentei, todo orgulhoso:

  • Criança é um barato não? Gosto de fazer favor pra gurizada por que elas não perdem tempo agradecendo com formalidades e tudo…

Ela concordou e fomos andando. De repente o guri lá de trás começou a gritar:

  • Moço! Você rasgou meu pipa! Pode ir me dando dinheiro pra eu comprar outro.

Ela olhou pra minha cara riu. Eu também ri. Guri FILHO DA PUTA!! Que dinheiro nada!!

Quando os efeitos cessaram fomos jantar. Reencontramos o casal careta, cumprimentamos, eles sentaram lá, nós nos sentamos cá. A comida tava meio sem gosto, mas serviu para nos alimentar.

Fomos ao quarto e lá ficamos se curtindo, ouvindo música, conversando. Essas coisas. Fumei um baseadinho com ela, ela foi dormir, eu fiquei lá deitado, um tempão, pensando em tudo.

No dia seguinte acordamos cedinho. Já era sexta feira e teríamos de deixar a pousada em que estávamos. Como queríamos ficar mais um pouco em São Thomé, mas aquela pousada em que estávamos já estava reservada, começamos uma busca por alguma pousada barata. Foi meio ruim de achar porque sábado, o dia seguinte, começaria o carnaval e nós só queríamos ficar até domingo. Os donos de pousadas só estava fazendo pacotes para o carnaval todo, o que não batia com nosso programa…

Acabou que encontramos um tiozinho que nos deixou ficar só a sexta feira, partindo no sábado de manhã, por um preço legal.

Beleza! Então aquele seria o último dia em São Thomé.

Pela manhã fomos novamente procurar cogumelos no Vale das Borboletas. Descemos os dois quilómetros e quando chegamos lá perto da cachoeira vimos um hippie com uma sacola lotada de cogumelos.

Hippie filho da puta! Tinha pegado tudo os nossos cogumelos!!

Meio desesperançados iniciamos nossa nova busca pelo pasto. De repente achei uns. Ela achou outros. Fomos para a cachoeira descansar para depois ir caçar mais cogumelos.

A cachoeira estava vazia. Ninguém. Só eu e ela. Nos banhamos e brincamos na água feito criança. Ficamos jogando pedra na água pra ver ela pular sobre a superfície. Tentei boiar mas não consegui. Fomos para onde caia o fluxo de água. Entendi o que a moradora quis dizer com “hidromassagem” no dia da carona.

Depois fomos andando pelas corredeiras da cachoeira. Pedras, água, árvores, natureza, pastos…

Andamos muito. Achei um cogumelo num pasto do caminho, voltamos.

Fomos caçar mais cogumelos. Ela achou vários. Ao todo coletamos doze. Decidimos que colocaríamos esses junto dos outros que havíamos achado para tomar eu, ela e nossos dois amigos quando voltássemos de viagem. Seria uma festa de confraternização psicodélica e sem motivos.

Conseguimos a carona por um pequeno trecho. O resto teríamos de subir a pé. Pior que aí começou a chover e aquele caminho se tornou muuuuito longo e cansativo.

Mas até que foi bom.

Chegamos na pousada, deixamos nossas roupas para secar, comprei algumas coisas para comermos, lavei, piquei e misturei os cogumelos e passamos o resto do dia e da noite lá comendo, conversando, ouvindo música e essas coisas.

Durante a madrugada, umas três da manhã, um gnomo apareceu lá no quarto para comer nosso pão. Rasgou toda sacola de pão e nos acordou. Depois voltamos a dormir e quando acordamos o gnomo havia aberto a porta do nosso quarto e partido…

Ainda bem que não levou nossos cogumelos.

Embarcamos rumo a Três Corações de manhã, pegamos o ônibus com destino à São Paulo e voltamos para casa naquele sábado.

No domingo fomos fazer a tal da confraternização com os chegados. Os cogumelos que estavam destinados à quatro tiveram de render pra cinco.

Foi tudo muito louco. Eu e ela, eles lá, o tempo bom e azul no céu, as cores vibrantes, um parque colorido para exercitar o físico. Um baseadinho numa roda de malucos. Intensificação de atenção, o Bira e eu conversamos:

  • É irmão, cogumelos não nos deixam mais inteligente, mas nos deixam mais sábios.

  • É sim, Bira. Porque podemos até esquecer o que concluímos durante essas viagens, mas com certeza esses insights influenciam nossas futuras decisões.

Falamos sobre engenharia e fluxo de informação. O Gerson andando sozinho com a camiseta vermelha na cabeça feito um louco. O Bruno quieto. Eu e ela comendo trevo, azedinho, sombra, companhia, água fresca…

← Voltar ao índice

[2005-12-20] - LIMONADA ROXA

I - OPERAÇÃO SECRETA

No telefone, falamos:

  • Daê, blz?
  • Blz, cara. Então, dez e meia lá na Catedral da Sé, tá confirmado.
  • Então até mais.
  • Até.

Peguei o trem, o coração palpitante.

Na Sé estavam ele e sua guria.

Fomos andando por aqueles cantos, conversando sobre os enteógenos. Me perguntou da erva mazateca. “Furiosa, mas eu imaginava outra coisa dela” — respondi. Me perguntou se saí do meu corpo e fiz viagens astrais. Falei que não, mas que tive vários encontros com ela e seus assistentes engraçados. Ele não ia entender ali, porque ainda não caiu nos encantos da formosa Maria Pastora. “Estou muito afins de conhecê-la”, me falou. Disse a ele que que se encontrasse alguma coisa avisaria.

Seguimos andando até um boteco, pra tomar um café. Sua guria tinha olhos bem brilhantes e aquele sorriso conhecido, daqueles que encontram cubensis pela primeira vez. Era um sorriso bem puro, beirando a ingenuidade.

  • Ela teve sua primeira experiência com cubensis na quarta passada - ele falou.

Massa! Perguntei a ela o que achou. Falou que tudo era novo, que estava extasiada até aquele momento, de ver coisas assim tão bonitas. Vibrei muito com aquilo. Feliz a valer mesmo.

Perguntei ainda se havia sido uma experiência visual — quer dizer, se ela havia visto muitas coisas. Falou que viu, sentiu, ouviu, e que as formigas douradas andando na parede escura do pub em que estava eram muito lindas. Mostrou a bota que usava, que parecia ser bem pesada, e falou que ela ficava leve, como se andando na lua, como astronauta.

Ficamos conversando sobre isso. Depois perguntei a ele sobre sementes. Falou que teve boas experiências. Comentei que minha namorada gostava ainda mais delas do que dos cogumelos. Concordamos que o duro delas é o desconforto estomacal quando tomadas pelo método indígena.

Perguntou se havia experimentado Datura.

  • Deus me livre! — falei.

Ele falou que uma vez havia experimentado. Ficou cego por três dias e ficou mais outros dias tendo espasmos involuntários no lado esquerdo do corpo.

  • Mas foi muito bom para o lado espiritual — disse.
  • Você repetiria a experiência? — perguntei.
  • Nunca!
  • Gosto mesmo é dos cogumelos — falei.
  • É, cogumelos não tem como não gostar. Quem estuda enteógenos geralmente tem muito carinho pelos fungos.

E é verdade. O ar infantil dos cogumelos, as festas, visões e caminhões coloridos das visões, os fogos de artifício, a alegria fungi. Ah…

Me entregou os três pacotes, conforme combinado. Falou que estava bom para misturar com uma limonada, porque a vitamina C ajuda na absorção da psilocibina e o ácido cítrico auxilia na digestão.

Falou que a limonada fica roxa.

Yeah! Limonada roxa! Desse jeito nunca tomei.

Conversamos mais, falamos sobre bad trips. Ele pagou o café, nos despedimos. Pediu para eu ver a erva mazateca pra ele. Falei que faria o possível. Nos despedimos. Ela, os olhos brilhantes, o sorriso. Dei um abraço. Eles foram pra lá e eu vim pra cá, com três doses enfurecidas.

Agora estou esperando.

II - PREPARATIVOS

No sábado de manhã fui pegar minha namorada, que trabalha à noite num hospital, e a deixei dormindo em minha casa. Enquanto ela dormia, fui comprar umas frutas, limões, plantei umas sementes de argyréia que ganhei em um vaso e procurei agilizar tudo para, à tarde, tomarmos os cubensis.

Quando foi umas quatro ou cinco horas, fomos para casa de um amigo nosso, que também tomaria conosco, lá em sua casa.

O cara estava meio mal-humorado ou sei lá. Até estava cogitando a possibilidade de não tomar nada, com medo de ter uma bad trip e tudo mais…

Sei que no final das contas ele acabou topando a trip, e enquanto foi tomar um banho, eu dei uma preparada no ambiente.

Desde uma certa experiência com Salvia ando numa piração de limpeza. Arrumei o ambiente, varri o chão, deixei tudo no esquema para uma viagem agradável. O lugar onde íamos tomar era em sua loja de artesanato, que também é quarto, cozinha e sala. Claro que a loja estava fechada ao público…

Quando ele voltou do banho, preparamos uma limonada com os cubensis no liquidificador. Então dividimos em três partes iguais.

A limonada ficou roxa.

III - EMBARCANDO

Tomamos. Esperamos.

Fiquei bem ansioso. Deixei um sonzinho no esquema.

Depois de uns quarenta minutos já sentia umas alterações na percepção. O estômago estava um pouco embrulhado, mas nada excepcional. Meu colega não parava de falar, comentando as distorções de sentido, as visões, falando do teto borbulhando e tudo. Minha namorada estava amuada, deitada no meu ombro. Dizia que ainda não sentia nada.

Por uns breves instantes questionei minhas experiências com enteógenos. Quer dizer, pra quê aquilo? Acho que já aprendi o que devia aprender com as plantas de poder. O que eu precisava agora era agir e me disciplinar, para obter algum progresso espiritual. Fiquei meditando sobre isso… Será que eu devia continuar nesse tipo de experiência?

De repente um clarão. Tudo ficou iluminado de repente, como se alguém acendesse uma luz. No relógio era umas seis horas da tarde.

A luz ora acendia, ora apagava, de repente. Notei as cores mais brilhantes, bonitas. Mas nada de excepcional. Pouco a pouco as coisas foram tomando suas formas de borracha.

Na loja em que estávamos havia quadros e artesanatos. Fui olhar os quadros com minha percepção aguçada de cores. Ficavam muito bonitos.

Sentia um pouco de fraqueza física. Sonolência. Estranhei essas sensações, porque geralmente fico muito eufórico com cogumelos.

Depois sugeri apagarmos as luzes, pra ver mais coisas. Fiquei deitado no chão com minha namorada, e meu colega ficou sentado com um violão. Ele achava engraçado as cordas que pareciam vibrar sozinhas.

Minha namorada ria muito. Meu colega não parava de falar. Foi um momento de muita risada. Mas eu sentia que a risada dissolvia o verdadeiro poder dos cogumelos, porque o riso serve pra isso mesmo: pra dissolver tensões. Falei sobre isso, mas caíram na gargalhada outra vez. Aí fiquei quieto, só deixando as ondas me levarem.

Depois de algum tempo senti euforia. Estava cheio de energia. Então entrei numa viagem de trabalhar o chi. Tenho feito kung fu, e dentro do kung fu tem o chamado chi kung, que é a ciência do chi. Comecei a me envolver em movimentos do kung fu, trabalhando o chi, e de repente me vi imerso naquele universo de formas corporais. Os movimentos saíam extremamente precisos e equilibrados. Minha capacidade física havia se expandido bastante! Estava em um transe incrível. Meus movimentos estavam saindo perfeitos. Muito melhores do que geralmente são em estados de consciência comum.

Meu colega não parava de falar, e aquilo me incomodava. Ele estava querendo descrever toda experiência dele, e isso enchia o saco. Minha namorada ficava rindo, ou curtindo visuais de olhos fechados. Não havia natureza para interagir. A prática dos movimentos do chi era algo onde eu podia depositar minha atenção.

Fiquei muito tempo naquela onda. Estava tudo mais ou menos escuro.

Minha namorada levantou do sofá, onde estava de olhos fechados, tendo suas mirações. Estava meio molenga. Ela também faz kung fu comigo, mas estava bem molenga.

Meu colega não parava de falar.

Eu percebi que era bom reter, isto é, não desperdiçar energia rindo ou falando demais… a introspecção era mais vantajosa.

Depois de um tempo acendemos uma luz e ficamos a conversar. Ali o papo começou a fluir melhor. Minha impressão é que os cogumelos conectavam nossa consciência com a essência da vida. Os cogumelos são seres criadores, que fazem a vida a partir da morte. Ali naquele estado de consciência eu sentia o pulsar da vida. Era ali que a vida ficava. Tudo isso passava pela minha mente.

Sentia que havia algo muito selvagem nesses pequenos seres, que são os cogumelos.

Muita conversa, muitos insights. Quando conversávamos sentia a imaginação trabalhar e trabalhar, criando seres, criando lugares, formas. A imaginação estava bem desenvolvida, a mente estava clara como um espelho.

Depois de um tempo fiquei observando minha namorada. Ela estava muito bonita. Parecia a figura feminina que habita o imaginário coletivo. Parecia Vênus. Os cabelos jogados pelo corpo, ela meio largada. Parecia argyréia nervosa. Falei pra ela. Foi engraçado. Mas era uma trip assexuada. Não havia malícia ou pensamento sexual. Era meio infantil, assexuado. Falei pra ela que a argyréia é uma planta sorrateira, bonita e muito poderosa, que quando se agarra em um portão ou qualquer outra estrutura de ferro, é capaz de entortar tudo. Pirei muito nessa relação entre o feminino obscuro e a argyréia nervosa.

Meu colega não parava de falar.

Dizem que os cogumelos podem ter tido uma certa influência no desenvolvimento da linguagem, em antigas tribos. Acho que isso é possível. A clareza e percepção aumentadas pela psilocibina é mesmo incrível. A capacidade de organizar a percepção e colocar ela em uma forma é real. Quando estava pirando em minha onda shaolin, eu falava numa linguagem, que saía naturalmente junto com os movimentos. Estava num transe incrível, como em rituais mágicos onde se envolvem com danças e urros e gritos. Eu pirava naquilo. Mas não era uma imitação. Não era um estilo específico de kung fu, nem nada. Era um fluir natural de movimentos harmoniosos, que trabalhavam o chi e produziam vocalizações, que pareciam reforçar o movimento. Meu mestre de kung fu diz mesmo que é importante falar com tan tien (três dedos abaixo do umbigo) ao executar golpes. Era aquilo que eu fazia. Mas ali eu sentia a verdade sobre o chi.

A linguagem verbal eu dispensava. Não queria FALAR. Explicar, descrever. Não queria. Não ia adiantar. Ia só resumir, racionalizar minha experiência. Eu até me incomodava com meu colega explicando e descrevendo. E havia muita sinceridade entre nós, e isso era bom.

Mais para o fim da trip me chateei um pouco. Me sentia meio sozinho, porque minha namorada estava em uma brisa, eu estava em outra, e meu amigo não parava de falar. Peguei o violão e fiquei dedilhando. E ele possuía um som agradável. Senti o violão como se fosse minha única companhia, a única maneira que eu havia de expressar o que estava sentindo. Ficou tudo silêncio. Minha namorada, meu amigo, só o violão ressoando. Foi um momento muito introspectivo.

Depois de umas quatro ou cinco horas os efeitos estavam bem mais amenos. Minha percepção ainda era mais aguçada, mas não havia mais nenhuma distorção de realidade. Aliás. Só houve distorção mesmo no momento da transição entre estado comum e estado alterado. Após isso o que havia era muita clareza dos sentidos e da mente. Poucas mirações e/ou alucinações. Muita clareza.

Coloquei um colchão no chão e deitei com minha namorada. Quando fechava os olhos, me sentia dissociar do meu corpo, mas nada muito claro. Me desligava do mundo. Eu dormi rápido. Minha namorada não conseguiu dormir.

No dia seguinte, tudo tranquilo. Estava com o corpo dolorido, dos exercícios, porque fazia tempo que não treinava. Mas no geral estava bem.

Minha namorada, bem como meu amigo, acordaram com muita dor de cabeça.

IV - CONCLUSÕES

Minhas melhores experiências com cubensis foram quando estava sozinho. Sempre que tomo com outras pessoas, fico um pouco apreensivo, com medo da reação das pessoas. Me sinto um pouco responsável…

Pretendo repetir a dose daqui algum tempo. De preferência em um lugar onde tenha mais natureza e menos coisas artificiais e papo furado.

← Voltar ao índice

Parte IV — Despedidas: quando as portas se fecham

Relatos de 2011–2012

A partir de 2005 fiquei um longo tempo sem me envolver com substâncias. Não fiz quase nenhum uso, com exceção de algumas experiências curtas com Salvia (apesar de breves, foram muito significativas — tanto que dediquei a elas uma parte exclusiva deste livro).

Em algumas ocasiões em que retomei experiências, senti praticamente uma despedida de meus aliados espirituais. Houve uma sensação nítida de que certos ciclos estavam chegando ao fim.

Esses relatos são encontros de despedida — ao menos temporária — de mestres invisíveis e de formas antigas de caminhar pelo mistério.

[2011-11-15] - MUITO OBRIGADO, DONA ARGYREIA 'NERVOSA'

Sobre

Durante uma viagem a São Thomé das Letras, em novembro de 2011, planejei, junto com minha namorada, uma nova comunhão com os cogumelos cubensis. Mas, como tantas vezes acontece no caminho das medicinas, nossos planos foram redirecionados: diante da ausência dos cogumelos, recorremos às sementes de Argyréia nervosa — uma velha professora, tão exigente quanto generosa.

O que deveria ser apenas uma alternativa improvisada se revelou uma travessia difícil, física e emocionalmente intensa, mas também profundamente transformadora. Foi nessa experiência que senti, talvez pela primeira vez de forma consciente, que meu ciclo com a Argyréia estava se encerrando.

Relato

Pois então fomos eu e minha namorada viajar para São Thomé das Letras agora no feriado do dia 15 de novembro.

Tínhamos a intenção de fazer novas experiências com os cubensis, e caso não fosse possível tinha levado algumas sementes de argyréia.

Estávamos mesmo precisando dar uma “renovada”.

Pela primeira vez fui dirigindo um carro, rodando com meu uninho os 400 km da minha cidade até a famosa cidade de pedras de Minas Gerais. Minha primeira viagem grande de carro, fiquei muito apreensivo com estradas, placas e essas coisas mais mundanas.

Pode parecer besteira, mas desde as últimas experiências com salvia tenho essa sensação de que coisas “supostamente” não vivas tem essa consciência primitiva, que desejam mesmo existirem como unidade e de certa forma havia esse vínculo com o carro. Como se fosse um terceiro ser, entre eu e minha namorada.

Seguimos pelas estradas rápidas da Fernão Dias, depois a belíssima estrada de Três Corações até São Thomé, e depois, finalmente, a estrada de terra, cheia de pedras, que vai até a cidadezinha de Sobradinho (17km de São Thomé), onde ficaríamos.

Fizemos caçadas aos cubensis todos os dias (sábado, domingo e segunda), mas não encontramos nada. Acho que faltou um sol mais ardido. Ou então eles simplesmente não quiseram se mostrar.

No entanto, nesses dias, senti uma grande comunhão com a natureza. Os vaga-lumes à noite. O cheiro dos pastos, as pedras, e principalmente os sons de pássaros, de cigarras, e todos os seres entoando suas canções hipnóticas e infinitas.

A natureza é mesmo muito linda e “enteógena” por si só, sem necessidade de nenhuma molécula mágica, apenas um pouco de abertura à magia da vida.

O uninho sempre ali valente nos levando aos lugares mais remotos da região. Como um objeto mágico, vivificado por magia.

Na segunda-feira, após mais uma caçada sem resultados, desistimos dos cubensis. Não fomos mesmo aceitos. Então resolvemos comungar com as sementes. Eu estava evitando, porque as sensações físicas são muito fortes e só de lembrar do cheiro, me zoa o estômago. A Argyréia exige muito do corpo para te ensinar. Causa muita náusea, parece que abaixa a pressão, tem aquela vasoconstrição.

Mas seus ensinamentos sempre me foram muito valiosos e tenho muito respeito com a planta. É uma mestra muito severa, mas eficiente.

E então fizemos nossa experiência. Tomamos poucas sementes, já que não sabia ao certo a procedência: três pra mim, três pra ela.

Havíamos tomado um café da manhã legal. Estávamos em São Thomé e não em Sobradinho (onde estávamos hospedados). Pretendíamos passar o dia na cidade de pedras em comunhão com a planta.

Uns dez minutos depois de mastigar e engolir as sementes, já senti um desconforto no estômago. Excesso de saliva, aquela vontade de cuspir toda hora. Uma sensação conhecida até.

Uns trinta minutos e já sentia que algo estava acontecendo. Não era uma sensação “espetacular”, mas era um certo bem estar. Sensação boa em todo corpo, exceto no estômago. Sem visões, talvez apenas uma qualidade melhor no sentido da visão, onde dava para enxergar as coisas mais destacadas umas das outras.

Lá de cima das pedras olhávamos a floresta lá embaixo, num canto sossegado com poucas pessoas por perto. As árvores pareciam brócolis e havia toda sorte de pássaros voando. Uma conexão muito boa com a natureza, mas que sinceramente não era muito diferente da conexão que tenho normalmente hoje em dia. Aquela coisa de ficar que nem tonto olhando as coisas, prestando atenção principalmente nos sons. Enxergo mal, acho que meus sentidos auditivos funcionam melhor.

E ficamos por ali. A sensação era de paz, uma clareza nos pensamentos, mas nada revelador nem “revolucionário”. Não havia nenhum ensinamento.

Pra dizer a verdade o que sentia é que a única coisa que estava agindo era a parte tóxica da planta: destruindo meu estômago e mexendo com minha circulação e fazendo eu existir em uma velocidade mais lenta do que o comum, o que dava aquela sensação de paz.

Minha namorada estava na mesma pegada que eu. Mas ela dizia sentir também dor de cabeça. Por isso decidimos sair lá das pedras e descer para a cidade, onde estava o carro.

Passamos em uma vendinha, comprei uma coca-cola pra ver se dava uma melhorada “arrotando”.

Sentia uma certa dificuldade em respirar. O estômago melhorou um pouco com a coca, mas ainda estava bem ruinzinho.

Não era difícil se comunicar com as pessoas. Não estava alterado, nem nada derretia. Estava mais passando mal do que “na luz” da planta.

Fomos para o carro e eu comentei que seria bom descermos para a cidade, e ficar deitado lá no quarto, porque estava muito ruim.

Minha namorada falou que não. Acho que ela estava preocupada porque estávamos na força da planta, e dirigir assim não é nada recomendável. Na verdade é feio, reprovável e pode inclusive prejudicar as plantas enteógenas caso aconteça um acidente nessa situação.

Ela também comentou que deveríamos ir comer, porque isso poderia melhorar os sintomas. Achei completamente absurdo. Comer qualquer coisa naquela situação era insano.

Ficar no carro também era muito desagradável. Dava uma certa falta de ar. E não dava pra ficar lá com os vidros abertos sem fazer nada no carro. Seria muito esquisito, porque pessoas passam por ali e ficariam olhando.

Olha, bad trip animal naquele ponto da experiência.

Saímos de lá, fomos para a praça de São Thomé, perto da igreja. Falei que poderíamos ficar ali um pouco e combinamos que depois tentaríamos comer alguma coisa.

Ficamos lá sentados. Às vezes a sensação de desconforto diminuía, às vezes aumentava. Vinha em ondas de mal-estar. Isso acho que fazia uma ou duas horas desde que ingerimos as sementes.

Ficamos ali conversando. Apesar do mal-estar, a conversa fluía de uma forma interessante, cheia de insights. Comentei que a sensação que eu tinha é que não tinha mais nada que aprender com as sementes. Essa linha de trip com ensinamentos mais “sólidos” e “lógicos” eu já conseguia incorporar de alguma forma na minha vida. Agora meu negócio seria partir para ensinamentos mais espaciais. Que agora seria legal explorar mais o salviaspace e suas coisas alienígenas. Ali ainda havia muito a conhecer, mas que definitivamente não queria mais comungar com Argyréia. Ela exige demais do corpo.

Lembrei das palavras de uma amiga, dizendo que os cubensis poderiam utilizar nossos corpos para experimentar o mundo, em uma simbiose maluca. Neste caso, se fosse o mesmo com a Argyréia, pode ser que ela simplesmente não tivesse mais interesse nesse indivíduo magrelo que está ficando cada dia mais velho.

Comentamos que o negócio mesmo é que estávamos envelhecendo, eu e minha namorada. E as Argyréias não são para os fracos. Elas exigem corpos fortes e corações valentes demais. Não tenho mais idade pra isso hein….

Chegamos mesmo em um consenso, que aquela seria a última experiência com essas sementes mágicas.

Então fomos tentar almoçar. No restaurante tudo era muito “doido”. A mesa tinha uns detalhes vermelhos bastante assustadores. As pessoas nos olhavam. Ficávamos em silêncio ou falando baixo. A comida parecia demorar uma eternidade. Uma música do pink floyd de fundo. Era tudo muito perturbador.

Quando a comida chegou, comi como remédio, porque o gosto e a textura não caiam bem. Comia para ver se melhorava mesmo e nem aguentei comer tudo.

Saímos de lá. Fomos para o carro. E estava chovendo.

Agora sim era uma bad-trip. Como ia descer pra Sobradinho, 17 km de terra, com chuva e na bad-trip da planta?

Bom. Pedi pra Deus proteção, bati na lataria do uno, como se bate em um cavalo quando precisa de sua ajuda e dei partida.

Fomos seguindo em meio a lama. Eu muito tenso, minha namorada muito preocupada. No dia anterior havia caído um uno lá no meio das árvores fazendo aquele percurso. E nem estava chovendo!

Fomos seguindo e durante o trajeto fomos conversando sobre a insanidade daquela experiência.

Graças a Deus chegamos a salvo. O carro cheio de lama. É como se aquela fosse uma prova de fogo, mas quando chegamos em nosso quarto já não havia nenhuma sensação ruim. Estômago estava zerado. Cabeça estava boa. Estávamos a salvo, sobrevivido a tudo aquilo. Fiquei a ouvir os pássaros, minha namorada deitou na cama. Fiquei lá fora observando uns bichinhos. Deitei na rede. Era uma paz indescritível. Uma felicidade intensa. É como o sol brilhando após uma tempestade, fazendo tudo ficar mais colorido, mais bonito.

A mágica estava em tudo. Desde que partimos de São Paulo, até aquele momento, era tudo a magia invisível do universo e das intenções divinas. A música do hippie ficava na cabeça “na força dos anjos, é na força dos anjos”. E tinha todos aqueles bichinhos voando.

Minha namorada veio deitar na rede comigo. Mostrei a ela os bichos voando. É como se fossem os anjos voando. Eles saiam da grama e subiam, subiam, levando todas as preces do mundo para os céus. E porque pensar que os seres espirituais, como anjos, tem mesmo que ser só de luz e invisíveis? Não poderiam ser aqueles insetos? Porque os elementais não poderiam ser seres que constam nos catálogos de biologia?

Bom, não sei se eram anjos, fadas ou insetos, mas ficava entretido olhando eles voando por ali. Parece que estavam abençoando tudo. Ficavam em cima do carro. Não eram agressivos, não picavam.

Aos poucos os olhos foram ficando pesados e havia aquele “mix” de sonho e visão. Cochilos cheios de visões sem cores. Uma delas eu ia até um castelo de ouro muito bonito, que curava tudo. Mas nem me esforcei em lembrar de todas as visões. Não fixava a mente nelas. Deixava que abençoassem, sem me preocupar em decodificar e entender. Você não precisa entender da chuva. Às vezes só precisa se beneficiar da água que vem dela.

E ali fomos ficando, conversando, uma felicidade muito boa, uma vibração muito boa, muita sincronicidade e magia simples acontecendo até o fim do dia.

Dona Argyréia foi uma ótima professora, mas não pretendo mais comungar com ela não. Pode ser que um dia eu mude de idéia. Mas acho que já aprendi o suficiente com ela. E ela também deve ter se enjoado de mim :)

Ela tem mesmo essa forma de primeiro te matar para depois te mostrar as coisas.

Hoje tenho me sentido muito bem. Em paz. Não renascido, mas renovado. Com muita gratidão a Deus, a planta, ao carro que nos levou e trouxe de volta no meio dessa chuva toda que peguei hoje na Fernão Dias. Não há nenhum sentimento melhor que o de estar grato ao universo. Gratidão significa aceitar as coisas como elas são.

15 Novembro 2011

← Voltar ao índice

Parte V — Cerimônias: sob os ritos do sol e da chuva

Relatos de 2013

Em 2013, nasceu minha filha — e com ela, nasceu também um outro modo de buscar o sagrado. Fiz algumas experiências dentro de rituais tradicionais, com outros seres humanos ao redor, em rodas, em círculos.

Por algum tempo a relação com as plantas se tornou mais cerimoniosa, mais consciente do coletivo, da responsabilidade, da força silenciosa que sustenta a vida.

Isso foi por pouco tempo. Algumas experiências foram interessantes.

[2013-06-20] - MESCALITO, FOGO E CHUVA

Sobre

Em junho de 2013 participei de uma cerimônia tradicional de peiote, inspirada na Igreja Nativa Americana.

Dessa vez, fui acompanhado de minha irmã, que pela primeira vez se aventurava no universo das medicinas sagradas.

Tinha expectativas de uma jornada intensa e reveladora, mas a experiência seguiu outro caminho: sob chuva, frio e cansaço, encontrei uma lição de humildade e de desapego às idealizações. Percebi também, de forma silenciosa e tocante, a inversão de papéis com minha irmã — ela, mais jovem, assumindo a postura protetora.

Este é o relato de uma cerimônia dura, fragmentada, mas profundamente honesta, onde o aprendizado maior veio de aceitar que nem sempre os espíritos se manifestam com força e glória — às vezes vêm apenas como a chuva e o fogo tentando se manter aceso.

Relato

Neste fim de semana participei de uma nova cerimônia de plantas de poder, neste caso o peiote, e desta vez baseada na tradição da américa do norte, da igreja nativa americana.

Minha irmã, que nunca alterou o estado de consciência com nenhuma planta ou substância, vinha falando comigo sobre o interesse em participar de alguma coisa desse tipo e resolvi convidá-la para ir comigo neste trabalho.

As últimas cerimônias que tenho participado tem sido antecedidas por sonhos e dessa vez ocorreu o mesmo… uma semana antes do trabalho sonhei com um mescalito caricatural, alto e com cabeça de cebola. Eu dormia e ele ficava por ali velando o sono.

No dia da cerimônia fomos lá e estava muito cheia. Muita gente participando.

O peiote se apresentou como uma planta muito interessante, me lembrou um pouco os cogumelos, mas de uma forma mais constante. Achei bastante diferente do wachuma. Tive algumas visões e insights muito positivos. Só acho que a experiência foi muito prejudicada por fatores externos. O rigor da cerimônia e os vários momentos em que ela se “quebrou” me afetaram. E houve muito cansaço, igual no sonho, em que mescalito estava lá mas eu dormia. O sonho me veio em mente na hora e entendi que então era assim que devia ser. Uma cerimônia difícil, ao ar livre com fogueira e chuva durante a madrugada.

Me senti bastante fraco. E apesar do sol, do calor e do vigor do cacto, me senti incomodado contando o tempo para que aquilo acabasse logo. Foi uma lição de humildade em certo sentido. Através de sonhos e acontecimentos tenho notado uma inflação em mim mesmo nas últimas semanas e aí vem o universo a compensar, me detonando. É o que chamam de peia, talvez. Nada mais que uma compensação do universo para conter a inflação do indivíduo. Tenho treinado duro o corpo, a mente, o espírito e ainda assim me vi fraquinho ali com o peiote.

Minha irmã, por outro lado, que é bem mais nova que eu e nunca tinha tomado nada, se apresentava com uma força descomunal. E eu via ali minha relação com ela. Não era ela minha irmãzinha, mas era eu seu “irmãozinho”. Ela é grandona. E sentia como se ela me protegesse. Nossa relação sempre foi assim. Ela cuidando de mim. E o propósito da cerimônia era exatamente “melhorar as relações”. Um propósito muito profundo, que envolve muitos tipos de relacionamento: relacionamento com si próprio, relacionamento social, relacionamento com família, relacionamento com a vida, enfim… se o propósito da cerimônia era “melhorar as relações”, então, muito disso estava sendo trabalhado em mim, de um jeito cansativo, mas consistente.

A cerimônia ao meu modo de ver ficou quebrada e incompleta. Na minha forma de ver muitas coisas “minaram” o poder centralizador da cerimônia: a quantidade de pessoas fez com que o círculo tivesse que se afastar da fogueira, saindo do “ponto ideal”. Um cara sumiu no meio do trabalho, a chuva, que apesar de sagrada e agradável, acabava indo “contra” o fogo. Quando vi isso lembrei da parte da manhã, enquanto ainda estava em casa e estava pegando fogo novamente em uma mata perto da minha casa. Foi um rapaz lá com uma mangueira apagar e na hora pensei se aquilo não era algum tipo de agouro… talvez tenha sido. Também havia a barreira da linguagem, onde o condutor da cerimônia não falava português e prejudicava a fluidez.

Mas era assim que tinha que ser dessa vez. E era bonito de ver as pessoas lá firmes aguentado o frio, o cansaço e a chuva. Eu é que tava fraco e deixando essas coisas externas me afetarem.

Quando finalizou a cerimônia, conversei com algumas pessoas. Em geral me sinto meio estranho com o pós-cerimônia, todo mundo se abraçando e tudo mais, mas houve muita empatia com algumas pessoas e foi muito bom estreitar algumas relações. Conversei bastante com minha irmã e fiquei muito feliz em perceber que ela aproveitou bem a cerimônia e que encontrou o que estava buscando.

Para mim ficaram muitos aprendizados. E também o desejo de fazer um novo trabalho mais intenso com mescalina, mas desvinculado de grupos, para conseguir entender melhor a planta em si, com a mente social mais afastada. Experiências em grupo e solitárias (ou em grupos pequenos e íntimos) são muito diferentes em cada uma se aprende de uma forma. Nas experiências em grupo não é só a planta que ensina, mas o formato da cerimônia tem muito ensinamento codificado em seu desenho. E também é necessário um esforço pessoal para se encaixar neste desenho. A experiência pessoal é mais difícil em alguns pontos, porque você precisa lidar sozinho com as turbulências do espírito, e também, se não tiver um propósito e intenção sincera, pode degradar a experiência e não aprender nada, se é que realmente é possível alguma coisa assim… mas por outro lado não há fatores externos. Apenas fatores internos.

Nestes últimos meses do ano tenho aprendido muita coisa e sou muito grato a Deus, o universo, o cosmo ou seja lá o que for, que tem me proporcionado essas oportunidades.

Segunda-Feira às 10:27.

← Voltar ao índice

[2013-07-31] - A FORÇA SOLAR DE SAN PEDRO

Sobre

Em julho de 2013 participei de uma cerimônia tradicional andina com Wachuma, o cacto San Pedro.

Já havia conhecido sua força em experiências solitárias, mas desta vez, em roda, pude sentir algo ainda mais profundo: uma força solar e terrosa, capaz de iluminar e organizar o espírito sem apagar sua individualidade.

No centro da cerimônia, a Chakana — o símbolo andino da integração — revelava, não só na mente, mas no coração, o entendimento das forças que estruturam o mundo: o triângulo da criação, o círculo da vida e o quadrado da comunidade.

Mais do que visões grandiosas, a medicina trouxe ensinamentos simples e vivos: sobre enraizamento, força de caráter, amor à família, e o valor da existência compartilhada sem perda da própria luz.

Este é o relato de uma travessia solar, onde San Pedro, como um lagarto atento sob o sol, me ensinou que também a construção silenciosa é sagrada.

Relato

Neste fim de semana tive a oportunidade de participar de uma cerimônia muito bonita de trabalho com Wachuma.

Já havia trabalhado com San Pedro no ano passado há uns 9 meses, onde senti uma onda muito amigável, ensolarada, revigorante e gentil. Características que se mantiveram consistentes no trabalho desse fim de semana. Mas a experiência do ano passado foi sozinho, na minha casa, sem cerimônia.

As experiências em solidão, com qualquer planta, são muito boas para conhecer a planta intimamente e também trabalhar a si mesmo com a “mente social” desligada, o que é muito bom às vezes. Mas todo trabalho sozinho pode ser arriscado, porque no trabalho em grupo as turbulências da planta e do espírito são conduzidas em grupo, com consistência, enquanto sozinho é você que tem que fazer todo o trabalho. Tem que confiar muito em Deus, na planta e em si mesmo para fazer experiências solitárias.

Mas a cerimônia desse fim de semana foi uma das coisas mais bonita que já vi, com muita simplicidade, muito amor e muita honestidade. Não acreditava que participaria de algo assim nessa vida. Foi em cima da tradição Inca, conduzida por descendentes dos povos. Todo trabalho aconteceu em volta de uma Chakana, que hoje entendo como um dos símbolos mais mágicos e poderosos que já existiram desde sempre. Há muitos anos sou fascinado pelo poder do triângulo, especialmente aquele de Sierpinski, que até tenho tatuado no braço. Não é um objeto sagrado tradicional, sendo tido muito mais como uma curiosidade matemática, mas para mim, por vários motivos, é bastante sagrado. E também com o círculo e sua imprecisão, que tenho tatuado próximo ao coração. Mas em quanto ao quadrado, sobre esta forma eu não tinha pensado nada até hoje.

O triângulo te remete a criação, ao conhecimento, ao número três, a criação do tempo, tese-antitese-síntese. Karma. A causa e consequência, a dualidade que está codificada no triângulo é um assunto muito extenso, que tende ao infinito.

O círculo te remete a vida, a unidade, a eternidade. Nada é mais simples e ao mesmo tempo mais complexo que o círculo. O mistério do Tao, do caminho perfeito, os caminhos da água, os ciclos da natureza.

E o quadrado te remete a completude, a organização do tempo, a criação do espaço. Te remete também a comunidade, ao estabelecimento de um “eu” dentro de uma comunidade. É assim que é a bandeira Inca. Os montes de quadradinhos coloridos coexistindo num quadradão. Cada um em seu espaço. Armários e gavetas são quadrados, organizadores por excelência.

E nesse fim de semana, além de muitas coisas, cheguei em alguma compreensão sobre o quadrado e em especial da Chakana, que quando trabalhada revela o triângulo e o círculo. Assim como o triângulo revela o círculo e o quadrado e o círculo revela o quadrado e o triângulo. Só muda o ponto de origem do estudo. E faltava essa perna em meu entendimento sobre esse assunto, o entendimento do quadrado e seu poder.

Neste trabalho entendi que a verdadeira união acontece a partir de unidades distintas e bem definidas, que coexistem. A união que revela beleza não é aquela que vai para um liquidificador e homogeniza tudo, mas àquela que possui unidades e corações fortes e distintos, mas batendo em um mesmo ritmo. A união indistinta aniquila a beleza da individualidade, pois cada coração é uma estrela que deve brilhar ao seu próprio modo e confeccionar o tecido do universo e todos seus padrões loucos.

A situação toda, a oportunidade que tive, foi orquestrada por forças que desconheço, dias antes de acontecer.

Em um sonho eu deixava minha namorada e minha filhinha para fazer uma viagem de última hora ao Japão, que acontecia em um aviãozinho simplezinho com japoneses tradicionais.

(oriente, aonde nasce o sol, aonde há uma relação equilibrada com a espiritualidade, japoneses tradicionais, como a cerimônia tradicional)

Em outro sonho eu encontrava cobras e lagartos. Uma cobra verde me encarava e seu pescoço inchava e nele eu via padrões psicodélicos, tipo Windows Media Player. Uma mulher (Dionéia, mulher do meu pai, cujo nome remete a “dio”) dizia para pegar a cobra pelo pescoço. Ela era verde, gordinha e curta, como um cacto. E não era má e nem boa.

Entendo que esses sonhos e insights estavam me preparando para o trabalho.

Ao longo da cerimônia não tive visões coloridas, mas tive visões do coração. E vi o sol e o cacto muito gentil me abençoando. E então sulcos na terra, como uma labirinto com padrões quadráticos, com ângulos retos (quadrados). E o cacto se fazia água, se fazia cobra, e preenchia todo labirinto, serpenteando com sua cor verde. Ele estava preenchendo o coração. E via desertos sendo inundados por um ouro líquido, que era o sol. E de lá nasciam mais cactos e cactos.

Muitas cores amarelas e verdes durante a madrugada gelada, como um sol.

Também minha mente e meu coração foram até minha família, minha filhinha, minha namorada. E eu era um sol, minha namorada uma lua e nossa filhinha um pequeno planetinha. E isso formava nosso sistema. Pensei em muitas coisas nesse sentido. A relação entre o sol e a lua é complexa e primordial.

Agora escrevendo lembro das palavras do condutor do trabalho “no coração do gelo há o fogo e no coração do fogo há o gelo”. Ou alguma coisa assim.

Minha luta tem sido estabelecer meu quadrado. Minha família. Meu espaço no trabalho. E isso se consegue com um coração forte e um ego sadio. Os cactos e os quadrados não tem nada a ver com dissolução de ego e essas coisas. Tem a ver com trabalhar, não mentir e não roubar, que são os valores Incas. Tem a ver com força, honestidade, trabalho. O cacto suporta o sol todos os dias. Cria espinhos nas costas para se proteger. Mas nem por isso deixam de florescer grandiosamente quando chega seu tempo.

Em certos pontos da cerimônia eram feitas rezas. Elas partiam de um dos condutores do trabalho, que acendia um cachimbo, dizia sua reza, agradecendo a Pachamama, Mamacocha e depois ia passando de mão em mão, e cada um dos participantes ia dizendo sua própria oração e agradecendo ao seu próprio modo, enfim, dizendo o que havia em seu coração. E nisso muitas imagens mentais surgiam, pois muito falava-se sobre água, rios, cachoeiras, árvores, animais, minerais, e a cada palavra das orações, era como se estivessem falando uma poesia. Quando chegou minha vez eu não sabia o que dizer direito hehe, agradeci a Deus, ao sol (que povoava minhas imagens mentais e me aquecia na mente), a água… acho que sou um pouco tímido e tinha muita gente lá, então não foi uma coisa muito agradável se expor nesse sentido, mas também não foi uma coisa exatamente “desagradável”.

E foi uma cerimônia muito bonita, que começou a noite e foi até o sol nascer. E como parte da finalização da cerimônia as mulheres trazem alimentos, milho, mandioca, carne, melancia, e isso representa a generosidade de Pachamama com todos seus filhos. E da melancia comi até a casca, hehe.

Ao fim do trabalho falei com um dos condutores da cerimônia, e conversamos sobre a relação com o cacto. Ele me falou que durante o trabalho ele se torna lagarto. Falei sobre o sonho com cobras e lagartos. Falamos sobre isso. O lagarto vive muito próximo à terra. Seus pés firmes no chão. Não voa para longe. Fica imóvel e com a atenção sempre ativa. A visão capta tudo, 180 graus. Nada passa desapercebido pelo lagarto. Ele absorve a energia do sol e da pedra. Não se chega afobado para se comunicar com o lagarto, porque isso o afugenta. Os lagartos também conhecem os mistérios da escuridão e são telepatas. Falamos sobre isso. E também sobre as maneiras de se relacionar com San Pedro. Falei sobre as experiências solitárias que às vezes faço. Ele falou que aprendeu a medicina desse jeito, sozinho, que ninguém ensinou a se relacionar com a planta. Acho que houve alguma empatia e comunicação telepata de lagarto. Falamos também sobre o vigor que o cacto nos dá, que no ano passado havia tomado ao longo do dia e que não sentia fome nem sede, nem nada. Ele falou que é assim mesmo e que alguns trabalhos que ele faz com seu pessoal no Chile, é ao longo do dia, caminhando pela montanha, parando, cantando, tomando mais. Ele falou que os cristaizinhos da pasta do wachuma vão se acumulam no corpo e que você vai tomando e tomando e não tendo visões da mente, mas que um dia, vai ter cristais suficiente no corpo e aí as visões vão explodir e aí sim vai entender a mensagem do cacto para você. Guardei as palavras no coração e espero um dia ter uma oportunidade de outro trabalho com o Lagarto.

Umas nove ou dez horas da manhã peguei o carro, ainda com um pouco de força solar, sem nada de sono ou cansaço. Peguei estrada, voltei pra casa.

31 Julho 2013.


Hoje, quatro dias depois da cerimônia, me sinto em paz, com um senso de organização e sentidos sociais muito apurados. Nos meus sonhos muitas formas quadradas e vira e mexe vejo a Chakana em minha mente e mais uma vez agradeço a oportunidade de poder compreender o cacto e o sagrado símbolo andino.

← Voltar ao índice

[2013-08-31] - A SERPENTE DE ÁGUA

Sobre

Em agosto de 2013 participei de uma cerimônia andina que utilizava medicinas amazônicas como ayahuasca, tabaco, rapé e kambô. O propósito do trabalho era investigar nosso papel neste mundo — entender como podemos ser úteis à vontade divina — e, para mim, havia também um objetivo pessoal: compreender a natureza da ayahuasca, que até então me parecia um mistério.

Ao longo da experiência, entendi que nem sempre a medicina traz respostas claras. Às vezes, o verdadeiro ensinamento vem através do silêncio, da ausência de explicações, do simples fluir da força pelo corpo — como uma água viva, como uma serpente que se molda e percorre cada espaço interior.

Este é o relato de um encontro com essa força silenciosa, feminina, profunda, que ensina não tanto através de palavras, mas através do próprio movimento invisível da vida.

Relato

Neste fim de semana participei novamente de uma cerimônia andina baseada na Chakana. Dessa vez o trabalho foi realizado com medicinas amazônicas: tabaco, ayahuasca, rapé, kambô.

O propósito da cerimônia era buscar entender nossa missão na vida. Buscar compreender o que estamos fazendo aqui neste planeta e como podemos ser uteis para a vontade divina.

Meu propósito, além disso, era compreender a ayahuasca, pois das outras poucas vezes que trabalhei com esta medicina não pude compreender ao certo o modo pela qual ela trabalha. Não conseguia entender ao certo quando estava dentro e fora da força e da luz. Ainda que tida por muitos como a maior das plantas de poder, sinto que nunca tive um contato realmente significativo e transformador com ela, em comparação com cogumelos, argyreia ou Salvia.

O trabalho com o tabaco costuma iniciar essa cerimônia. Ele vai limpando os caminhos, preparando o terreno para as outras medicinas. E o tabaco em pasta para mim é muito agradável. O sabor e o estado mental que ele me proporciona é bastante “aconchegante”. Pude sentir onde havia maior densidade em meu corpo e o tabaco vai trabalhando essa densidade, vai quebrando as pedras maiores, vai limando as arestas te deixando pronto para a medicina.

O trabalho com ayahuasca foi iniciado com silêncio. Deitado, quase dormindo, pude sentir a planta iniciando seu trabalho dentro do corpo. Não houve mirações, mas entendi a planta como uma serpente, como água, que passa pelo ser, que vai penetrando tudo, que vai possuindo, tomando forma em nosso corpo. A água não tem forma fixa, ela se molda no corpo. E é assim que entendi a força da planta chegando. Tratando de se moldar no corpo.

Houve algum diálogo interior com uma voz doce, feminina e jovem. Não sei se é a voz da planta ou a voz a alma. Mas me dizia que não havia nada para me responder. Que eu estava oco e não havia matéria para ela trabalhar. Dizia que não era de respostas que eu precisava, mas de abertura dos caminhos.

Esta foi a segunda vez que a bebida me diz que não tem nada para me responder. Há muitos anos atrás, a ultima vez em que comunguei ayahuasca, ela dizia que não tinha o que ensinar, que eu tinha era que praticar, que viver o pouco que aprendi por aí. Foi nessa época, acho que em 2006 ou antes, que tinha parado de trabalhar com plantas e fiquei mais dedicado em minha profissão, meus relacionamentos mundanos e essas coisas.

Dessa vez houve esse silêncio por parte da planta, mas pude entender melhor sua natureza, o processo também foi mais claro, para entender quando era a força agindo e quando era tregua.

A primeira mensagem da planta fora enviada com essa omissão.

Quando terminou o silêncio e começou a cantoria deram a segunda dose. Sentia um ar de tensão no ambiente. Estava acontecendo algumas tretas no astral. Eu tinha que me manter alerta e firme. E assim fiquei com o pensamento em favor da cerimônia e bastante consciente.

Tomei a segunda dose e quando veio a força houve mais diálogo com a moça. Entendi a idéia do “boiadero”, que conduz sem falar e sem explicar. Simplesmente conduz. E compreendi que este é um modo válido de viver no mundo e é de uma certa maneira um propósito. Conduzir o mundo sem dar explicações. Aceitei o entendimento do boiadero. Senti meu abdome com muita força. A força de um rinoceronte com aquele chifrão na cara.

O ensinamento da planta ficou nisso e aceitei este entendimento.

A cerimônia, com sua base na floresta, dava uma sensação de escuridão, umidade e mistério. Muito diferente do trabalho com wachuma e todo seu calor. Para mim ayahuasca se apresentou com uma força mais feminina que masculina e em geral acho mais difícil o trabalho com plantas com esse tipo de energia. Argyréia, Salvia, Ayahuasca, Mary Jane… todas elas se apresentam para mim como femininas. Muito entendimento, mas o corpo, durante a experiência, padece sem vigor. No entanto, San Pedro, Cubensis, Kratom, Kava, tem essa força mais masculina que me deixam cheio de energia e animado. É uma questão de equilibrio entre o sol e a água nas plantas.

A ayahuasca te transforma em água. Sua natureza de serpente flui pelo corpo, e é assim que ela trabalha, é assim que limpa, como água e como serpente. E eu não sei nadar direito, me sinto mais “em casa” com o sol.

Não quis uma terceira dose, apesar de ter condições de seguir. Acho que o entendimento fora suficiente. Continuei na força que ainda rolava para prestar atenção nos ícaros. Um convidado, acho que do México, conduzia canções incríveis que me faziam ver muitas coisas interessantes. Não muito coloridas, mas coisas interessantes do astral. Uma música falava sobre asas que fazem o mundo girar e eu via isso tudo com muita velocidade.

O ritual seguiu com aplicação de rapé e de kambô. Com o rapé consegui penetrar numa escuridão verdadeiramente negra e curativa. Senti que deu um “reboot” físico e mental. A escuridão e o vazio que enxerguei com o rapé se compara a uma luz brilhante que me levou a uma interessante clareza de sentidos. Com o kambô senti o sangue pulsando e a vida com calor e violência explodindo e queimando. Fiz uma limpeza. Estou agora prestando atenção nas horas e dias que sucedem a experiência para entender como isso tudo efetivamente me trabalhou.

Não tenho intenção de comungar com ayahuasca novamente nos próximos meses, talvez anos. Vou seguir o que entendi e se for trabalhar será com as medicinas com as quais me identifico melhor. Provavelmente Salvia, San Pedro, talvez cogumelos.

1 Setembro 2013.

← Voltar ao índice

Parte VI — Problemas: vida adulta e sobrevivência

Relatos de 2013–2016, 2023

Com a vida adulta consolidada — filha para criar, trabalho para sustentar a casa — o uso das plantas mudou de novo.
Deixaram de ser portas para o “além” e se tornaram apoios discretos para atravessar o “aqui”.
Esses relatos falam de um uso mais discreto, mas igualmente reverente das substâncias — e de um respeito renovado pela força misteriosa que elas carregam, mesmo quando silenciosas.

[2013-03-26] - KRATOM

Sobre

Alguns dos relatos deste livro nasceram em fóruns de trocas de experiências sobre plantas de poder — espaços de partilha aberta e espontânea que marcaram um tempo da minha vida.

Este, em especial, registra meu primeiro contato com o Kratom: uma planta que não se revelou enteógena no sentido clássico, mas que trouxe um alívio profundo, silencioso e acolhedor.

Conheci o Kratom em meio a mudanças intensas: paternidade, transição de trabalho, o primeiro apartamento e uma melancolia difusa que me atravessava. A planta ofereceu conforto físico e mental, um oceano quieto onde a dor e a ansiedade se dissolviam por um momento.

É também o início de uma história de convivência ambivalente — entre o consolo e a dependência — que mais adiante renderia outros aprendizados.

Relato

Oi pessoal. Que bom que o PE voltou :)

Estou e acho que ficarei meio ausente devido a mudanças no trabalho e também a gravidez da minha namorada… faltam só dois meses para nascer nossa fiota e tem muita correria pra fazer :)

Durante esse tempo de dormência do PE, eu também pausei com as experiências enteógenas através de plantas. No entanto andei refletindo muito sobre os sonhos que tenho tido e tenho estado cada vez mais “ligado” nas vivências noturnas. Muitos insights sobre esse assunto, mas poucas conclusões.

Também vira e mexe tenho me encontrado meio triste, melancólico. Tem algumas razões para isso, mas também acho que é algo da minha natureza mesmo. E nessas baixas descobri uma planta muito especial, que não diria que é “enteógena”, mas com certeza é medicinal… trata-se do Kratom.

Dizem que a planta pode causar algum nível de dependência e/ou hábito e acredito mesmo nisso. Porque é como o álcool ou o tabaco: a planta não gera insights ou visões, mas te deixa “legal”. Te deixa “bem”. Acho que substâncias que te deixam “bem” sem envolver dissolução de ego e visões assim tem muito potencial para criar hábito e talvez viciar.

Eu particularmente não tenho usado com uma frequência que cause problemas nesse sentido, mas não falta vontade. A planta te põe num estado agradável de concentração, conforto físico, disposição e ao mesmo tempo relaxamento. Gera um tipo de apatia, que tem algum parentesco com a paz, mas sem causar desinteresse pelas coisas.

A planta leva embora a dor, seja no corpo ou seja na alma, e leva o turbilhão de pensamentos, tudo para longe para um lugar distante onde as coisas não tem importância.

Ao se fechar os olhos não se vê coisa alguma, mas penetra-se em um oceano, talvez um útero.

Na noite que passou tomei uma dose maior do que costumo tomar de um extrato 20x. Não sei dosar com precisão, mas acho que era uma colher de sobremesa cheia, com um pouco de sakê. Tomei era umas sete horas da noite, depois do trabalho. Além das sensações descritas acima, conforme foi passando a noite tive bastante sono e quando dormi, umas onze horas, foi uma coisa bem profunda, com sonhos bastante interessantes e impessoais. Sonhos distantes, terras distantes, tudo muito profundo.

Acordei ainda com traços dos efeitos. Com a mente bastante clara e focada. Nenhum traço de “felicidade”, “alegria” ou coisas barulhentas. Apenas uma mente silenciosa. Peguei o carro pra vir trabalhar, vim ouvindo Jesus and The Marychain, o álbum Stoned and Dethroned, que é bem a cara do Kratom.

E é isso aí. Essa planta entrou para minha lista de plantas preferidas. Me preocupa um pouco a possibilidade de desenvolver dependência. Preciso pensar/lidar com isso apropriadamente.

26 Março 2013.

← Voltar ao índice

[2015-09-12] - CRISTAIS DE DMT E ABSTINÊNCIA DE KRATOM

Sobre

Kratom é uma árvore da Indonésia, tradicionalmente utilizada por seus efeitos estimulantes e analgésicos. Seus princípios ativos interagem com receptores opióides, e o uso contínuo pode levar a algum nível de dependência.

Durante mais de dois anos, usei o Kratom diariamente — não em busca de experiências espirituais, mas simplesmente como quem toma café para atravessar a rotina. Nunca vi nisso um problema. Afinal, somos dependentes de tantas coisas: da água que bebemos, da comida que comemos, dos confortos pequenos e banais que nos sustentam dia após dia. Criar deliberadamente uma dependência por uma planta, sabendo disso, nunca me causou culpa.

O único motivo pelo qual precisei enfrentar a abstinência foi prático: a impossibilidade súbita de acesso. E a abstinência, longe de ser apenas um desconforto físico, revelou-se também como uma forma peculiar de estado alterado de consciência — um território de transição, de desconstrução, onde corpo e mente negociam silenciosamente seus novos equilíbrios.

Este relato percorre essa travessia: a tentativa de aliviar a abstinência com pequenas doses de DMT extraído de Jurema, e a constatação de que, às vezes, mesmo sem grandes visões ou epifanias, é no esforço cotidiano da readaptação que residem experiências transformadoras.

Relato

À noite, depois que minha esposa e minha filha já estavam dormindo, e após um dia de alguns desentendimentos e alguma irritação devido a suspensão do uso de kratom (sintomas de abstinência), decidi utilizar alguns cristais de dmt que extraí das raízes de Jurema.

O processo de extração ocorreu há cerca de seis meses atrás, e foi feita com nafta. O resultado foram cristais alaranjados, talvez com resíduos de nafta.

Em uma vaporizador coloquei alguns cristais (não sei precisar, porque minha balança mede no mínimo 100mg - então coloquei 100mg nesta balança e tirei mais da metade dos cristais, chegando um valor certamente inferior ao 50mg).

Minha expectativa era ter uma experiência bastante rápida e intensa, talvez algo semelhante a salvia fumada. Em meu coração procurava algo que fosse capaz de quebrar o hábito desenvolvido de uso diário de kratom e ajudar nos sintomas de abstnência dos próximos dias.

Coloquei os cristais no vaporizador e iniciei seu aquecimento em 80 graus celsius e fui aumentando gradualmente até chegar em 180 graus, sempre testando para sentir se sentia o vapor chegando aos pulmões. Pelo que percebi a partir dos 100 graus é que os cristais começaram efetivamente a serem vaporizados. Pude sentir o gosto plástico e pesado e segurei o máximo que pude. Primeira tragada, segunda tragada (quantidade maior de vapor captado)… rapidamente percebi que a parede estava cheia de pequenos fractais e que estava me dissolvendo naquilo.

Apesar do estado alterado, a consciência estava sempre presente, de modo que desliguei o vaporizador, me deitei e fechei os olhos para curtir a experiência.

De olhos fechados me senti como que flutuando. Imediatamente tive a sensação de estar em um tapete mágico. Também passei a ver algumas formas. Serpentes gordas, anacondas, se enrolando, passeando. Padrões pré-colombianos de cor violeta. Formas de linhas paralelas, sempre curvas, orgânicas.

Apesar de todos os visuais, eles não eram muito claros. Eram visões escuras. Acredito que a dose foi pequena.


No dia seguinte (domingo) não notei nenhuma diferença importante em nada. Apenas a intensificação dos sintomas de abstência, como resfriado (gripe), a inquietação nas pernas, irritação, fraqueza física… muito kava, hipérico, analgésico, rapé, numa tentativa desesperada de sentir-se melhor, mas com poucos resultados positivos.

A noite de domingo para segunda também foi bastante ruim, principalmente pela inquietação das pernas e sonhos irritantes em que uma coisa fica sendo coisada indefinidamente, algo como limpar coisas que logo a seguir ficam sujas novamente, e precisam ser limpadas, e assim infinitamente. Durante esse tipo de sonho, acordava, virava para um lado, para outro, enfim… o corpo se readaptando a uma nova realidade neuroquímica.


Na segunda feira acordei com dor de cabeça e os sintomas de gripe muito fortes, que me impediram de ir trabalhar. Fiquei em casa com os sintomas bastante parecidos com os do dia anterior. Em certo momento decidi fazer uma nova tentativa com os cristais. Dessa vez uma dose bem maior, e em uma temperatura já iniciada em 160 graus. Senti o vapor, segurei, com certeza foi muito maior do que a dosagem do sábado, mas mesmo assim senti apenas uma leve alteração, bem gostosa na verdade, mas nada de visuais, imersão, etc.

Não sei se foi tolerância, ou se tem a ver com o hipérico (que é um IMAO). Sei que outras pessoas relatam esse tipo de coisa: de não entrar no hiperespaço com dmt.

Foram raras as ocasiões em que tive uma experiência realmente significativa com ayahuasca. Talvez tenha alguma questão fisiológica nisso…

A noite da segunda foi novamente difícil, principalmente pela inquietação das pernas.


Terça-feira acordei um pouco mais disposto, e fui trabalhar normalmente. Durante o dia a inquietação nas pernas foi bastante intensa e o pensamento um pouco prejudicado. Mas o dia passou. Durante a noite o sono foi tranquilo, sem interrupções e com um sonho muito bonito, em que voava por entre árvores e lagos. Sensação de liberdade. Talvez devido a readaptação do corpo a nova realidade neuro-química, sem kratom.

12/09/2015

← Voltar ao índice

[2016-06-17] - HOMEOFFICE

Sobre

Em junho de 2016, num dia comum de trabalho em home office, decidi fazer uma microdose de San Pedro para dar um leve impulso no corpo e na mente. A intenção era simples: mais energia, mais foco, nada além disso.

No entanto, o que parecia ser apenas uma microdose revelou, de forma sutil mas poderosa, a profundidade espiritual do cacto. A experiência me levou por caminhos inesperados — visões de povos antigos, sacrifícios e renascimentos — para, ao final, devolver-me a uma paz silenciosa e renovadora.

Este é o relato de uma experiência discreta, mas que me ensinou, mais uma vez, o quanto as plantas sagradas pedem respeito e o quanto podem ser imprevisíveis.

Relato

No último dia 17/06/16 estava fazendo homeoffice. Decidi fazer uma microdose de san pedro. Comi cerca de dez pedaços inteiros e secos de cacto. Havia inclusive o miolo, casca e alguns poucos espinhos no material.

Na noite anterior não havia jantado e estava em relativo jejum até às 11h, horário que ingeri os espinhudos. Mastiguei calmamente, e engoli aos poucos com suco de laranja.

Meu objetivo era apenas dar uma energizada, um up no corpo e mente para trabalhar.

Depois de aproximadamente meia hora ou mais, percebi que a dose não tinha sido assim tão micro. Havia uma desconexão ou fragmentação de sentimentos físicos e disposição, e também uma tendência a imersão no “nada”. Mas sobretudo havia muita fraqueza. Provavelmente devido à condição de estar há muito tempo sem comer.

O cacto gosta de corpos fortes e saudáveis para se expressar.

Decidi fazer um rango. Apesar de não ser acostumado a cozinhar, o processo acontecia muito naturalmente, sem travas psicológicas de “não sei fazer isso ou aquilo”. Mas a fraqueza física estava sempre constante.

Comi muita comida enquanto liguei a tv no canal do senado. Estava a maior treta ainda relacionada ao impeachment da Dilma. Era um pouco engraçado.

Depois de comer deu uma preguiça nervosa. Desliguei a TV e fiquei sentado de olhos fechados. Havia uma imersão em um nada infinito, onde o tempo se perdia. O corpo ficava imóvel sem esforço. A única coisa que incomodava às vezes era um frio que ia e vinha, se alternando com calor. O dia estava frio de verdade.

Em algum momento decidi ir me deitar embaixo das cobertas, para lá ficar com os olhos fechados mirando o que o cacto queria me mostrar. E me vi dentro de um cacto, que parecia um prédio, cheio de cômodos e pessoas, como se fossem apartamentos. Vi ainda um interior de uma serpente vermelha e uma luz que vinha de fora dela, mas atravessava sua pele e iluminava meu caminho por dentro dela, que se tornava uma espécie de túnel vivo. Fui ainda em uma caverna, onde havia grupos de pessoas, principalmente mulheres, e fogueiras. Eles estavam lá reunidos. E saindo um pouco dessa caverna via outras mulheres, dessa vez loiras, talvez européias, em lugares que pareciam o cerrado brasileiro, com pedras e vegetação rasteira. Essas mulheres estavam procurando cactos na região. Também via sangue e sacrifícios. E havia uma presença de um espírito gigantesco.

Acho que era o cacto mostrando como eram os povos antigos, e sua relação com eles, na qual os devorava, aceitava seus sacrifícios e reinava como uma divindade.

Foi um pouco pesado, não muito agradável, mas quando saí dessa onda de visões cheias de sangue, terror, sacrifício, fogo e morte, me senti renovado, tranquilo, confiante, em paz.

Falei com alguns amigos no whatsapp, a respeito da minha experiência, e tentei trabalhar um pouco, em um app que tenho codificado.

O trabalho fluiu bem, a concentração estava ok. A visão um pouco ruim. Parece que a mescalina me prejudica bastante nesse ponto. Em uma experiência passada, do meio para o final dos efeitos, senti os olhos bem prejudicados, como se estivessem dilatados.

E os efeitos mais intensos foram diminuindo pela noite, até sobrar apenas uma tranquilidade e sentimento de gratidão para com os espinhudos.

Me impressionou a força do que deveria ser apenas uma microdose, e me fez respeitar ainda mais essa medicina incrível!

← Voltar ao índice

[2023–09–09] - PEQUENOS VELHOS AMIGOS

Há alguns anos atrás ganhei um presente de um amigo muito querido. Ele andava cultivando cogumelos psilocibe, e me deu uma grande quantidade deles secos e desidratados. Éramos colegas de um grupo de estudos de “plantas enteógenas”, que particularmente me parece um nome tão equivocado quanto “plantas alucinógenas”.

Eu sairia demais do tema que gostaria de tratar se fosse falar sobre os detalhes semânticos e etimológicos dessas palavras, e do porquê acho que ambas expressões “plantas enteógenas” e “plantas alucinógenas” me parecem erradas, quando a expressão “plantas psicoativas” me parece bem mais simples de entender, e também mais honesta e neutra para se referir ao tema central dos estudos em que estava envolvido quando conheci esse colega.

Seja como for, havia ganhado esse grande pacote de psilocibes desidratados. Para quem não sabe, psilocybe cubensis é uma espécie de fungo que contém uma substância chamada “psilocibina”, que é classificada como uma triptamina, isso é, uma substância da mesma família da “serotonina”, que é esse neurotransmissor tão falado por aí quando se aborda o tema de depressão, humor e esse tipo de coisa.

Mas também acho que não devo entrar no assunto de neurotransmissores, porque reduziria meu humilde relato em um punhado de bobagens científicas, ou quase científicas, ditas por um cara que não é cientista e que provavelmente diria um monte de asneira com ares de doutor, como as muitas asneiras que vemos por aí em canais de youtube desses supostos especialistas do assunto, que sabem tudo sobre dopamina, serotonina, endorfinas e oxitocinas, como que contando histórias de uma mitologia neuroquímica, com os super-poderes dos neurotransmissores, que substituem as qualidades divinas de uma inteligência de Hermes, do amor de Afrodite, da fúria de Ares ou dos sonhos de Morfeu.

Se for para ficar na mitologia, prefiro me manter nos clássicos em lugar de colocar qualidades divinas nessas moléculas invisíveis e de nomes esquisitos.

Enfim. O fato é que ganhei um grande presente, de um amigo muito querido, de uma substância mais que especial: uma substância mágica.

Cogumelo não é planta e nem bicho! É fungo! Tem carne, mas não é bicho; frutifica mas não é planta. Os cogumelos psilocybe, como dizem nas gringas, é “mágico”. É também origem de lendas urbanas, de histórias de gente que ficou “doida” depois de tomar o tal do “chá de cogumelo” e coisas do tipo. Falam também do chá de lírio, mas isso é outro assunto, trata das solanáceas e com essas aí eu não sou doido de me meter. Elas realmente podem te matar e te causar problemas realmente permanentes.

Os psilocybes são sempre bondosos, mesmo quando enlouquecem. Buscam sempre promover a vida, a abundância e a alegria, mesmo quando apresentam cenas aterrorizantes e perturbadoras.

Não sou principiante no uso e amizade com esses seres, os cogumelos. Eles tiveram papel fundamental em várias etapas e fases de minha vida, e ja fiz algumas dezenas de experiências com eles e com outras plantas, em especial os cactos, as trepadeiras, salvia, kratom… apesar de sempre ter sido prudente, sem abusar muito das plantas, tenho um certo orgulho de meu currículo como psiconauta, onde já pude navegar por diversas dimensões psíquicas e espirituais com meus queridos (e às vezes temíveis) aliados do reino vegetal e fungi.

E desse pacote que ganhei, fiz uso três vezes ao longo dos cinco anos em que o presente esteve guardado no congelador da minha geladeira. Antes tinha dúvidas, mas hoje posso confirmar com certeza que armazenar cogumelos perfeitamente desidratados no congelador pode preservar seus efeitos por anos. Isso tem um custo: o espírito deles sente frio. Se você não acredita nisso, tudo bem, e é até o esperado. Mas este é um relato subjetivo, de uma relação humano-fungo altamente pessoal, que compõe uma maneira muito particular de enxergar a vida. E estive tempo o suficiente ligado nas ciências da mente para saber que o que temos de conhecimento não é capaz de descrever precisa e completamente nossa experiência humana, sem deixar espaço para o espiritual, o mágico e o mistério, de maneira que me sinto totalmente confortável em dizer: existe algo como um espírito que habita esses pequenos e poderosos seres, os psilocybes. Los niños (meninos), como diria a querida Maria Sabina em sua comovente história de relação com essas entidades mágicas.

E esses anos em que estiveram guardados no congelador da minha geladeira afetou profundamente o espírito desses que ganhei de presente. Nas três experiências que tive com esse lote, senti um frio e sonolência incomuns para experiências desse tipo. Esse frio me levou e forçou a ter experiências mais introspectivas: deitado, de olhos fechados, em um cobertor quentinho.

Sempre gostei de experiências ao ar livre. Tomar cogumelos e andar pela praia. Tomar cactos e subir montanhas. Andar em trilhas com a atenção afetada por essas substâncias que expandem nossos sentidos, que fazem as cores se tornarem mais brilhantes, os sons mais nítidos. É um crime chamar tais experiências de “alucinógenas”, quando elas expandem absurdamente nossa capacidade de apreensão da realidade. Perceber a alma do vento, o espírito da árvore, o coração da floresta… os sons e formatos mais sutis. Isso não é alucinação! Isso é conexão com a vida, conexão que foi perdida na marcha da razão, e que — devido a doença do nosso tempo — parece um tipo de loucura, quando a verdadeira loucura é estar alienado de tais forças.

E sempre gostei dessas experiências ao ar livre. Mas com esse lote — esse presente -, as coisas foram diferentes. O frio e a sensação de um fluxo vivo, mas gelado, marchando em direção ao progresso, às máquinas, se preparando para alguma coisa importante e tecnológica. Ou pequenos soldadinhos siberianos, seguindo em direção a uma base militar nas geleiras russas. Esse tipo de visão foi o que deu o tom das experiências com esse presente.

A primeira experiência em específico, foi em 2017, quando ia tentar fazer microdoses, mas que errei a mão, e a microdose se tornou uma dose cheia.

Isso de microdose é um conceito que foi se estabelecendo nos últimos anos, onde se busca fazer uso de uma dose pequena, um quinto, um sexto de uma dose normal, de maneira que não se fica sob os efeitos mais intensos da substância, mas que se obtém apenas seus efeitos terapêuticos, como se fosse uma medicação psiquiátrica para dar uma melhorada geral na criatividade e no humor. Teve um tempo em que havia muita gente no Vale do Silício fazendo microdoses. Programadores, engenheiros de empresas como Google, Apple, Microsoft, andavam em uma hype de usar psilocibina em microdoses. E eu tentei fazer isso nessa vez, mas errei a mão e a microdose foi uma dose cheia.

Se a ideia de uma microdose é fazer uso de uma substância psicodélica, mas se manter funcional, ou seja, trabalhar normalmente e fazer suas coisas comuns e ordinárias, nessa tentativa frustrada de microdose, o frio absurdo eliminou toda a possibilidade de se manter funcional e ativo, de maneira que tive que ir para debaixo das cobertas e lá ver e ouvir tudo o que os pequenos tinham a dizer.

Essa experiência definitivamente não foi agradável. Essas visões geladas e escuras deram o tom de toda a experiência, inclusive trazendo imagens perturbadoras, relacionadas à morte. Eu inclusive andava ouvindo muito o álbum Black Star do David Bowie naquela época, e depois da experiência o álbum fez ainda mais sentido. Sua atmosfera sombria e o relacionamento íntimo com a morte ficaram muito evidentes (para quem não é fã de Bowie, o álbum foi claramente uma despedida e existe algo de mórbido — mas lindo — nesse álbum). Foi depois de um ou dois anos que percebi o valor dessa experiência: as visões daquela tarde me prepararam para uma perda terrível que veio a acometer minha família em 2019. Porque o que eu temia havia surgido naquelas visões perturbadoras, e de algum jeito aquilo me preparou para o fato em si quando ocorreu. Mas isso é assunto pessoal, familiar e acho que não vem ao caso.

A segunda experiência com esse lote foi menos intensa, e foi ao ar livre, apesar de ter sentido frio. Foi uma experiência animadora, alegre, divertida, que deixou o coração mais leve, destravado. Só tive que usar uma blusa. Mas não quero falar dessa experiência. Comecei a escrever esse relato para falar sobre a ultima experiência que tive com esse lote, que está mais fresco na memória e que ocorreu esses dias, em uma das últimas semanas do inverno de 2023.

Era um sábado que começou como geralmente começam os meus sábados: acordando cedo, dando milho para as galinhas, ração para os gatos, fazendo faxina na casa e cuidando das plantas. Ainda pela manhã, cerca de 10h tomei um latão de energético, desses com um monte de taurina, cafeína e inusitol. Me sinto super bem com esse tipo de coisa, e tomar para faxinar a chácara costuma ser bastante interessante. Pois arrumei tudo, lavei roupas, estendi roupas, organizei tudo que tinha que organizar em um dia que o tempo estava rendendo.

Separei 4,2 gramas dos psilocybes que estavam no congelador, deixei em um pote perto de um incensário e acendi um incenso, só para dar uma despertada no material. Enquanto o incenso queimava eu continuava na faxina, e quando era 12h30 eu já tinha praticamente terminado tudo que tinha que terminar. Tomei um banho, troquei a roupa, fiz a barba. Fiquei bonitão para me encontrar com os seres mágicos.

A maneira de ingerir os cogumelos foi uma das melhores que encontrei até hoje: comi umas duas maças antes, piquei os cogumelos com gengibre, fiz um suco de limão, e fui comendo muito lentamente os cogumelos picados às vezes, depois uns pedaços de gengibre, depois um gole do suco de limão… alternando entre esses elementos.

A maçã forra e segura o estômago. O gengibre elimina uma possível náusea. O limão favorece os efeitos. Os cogumelos trazem a força dos pequenos. Todo mundo trabalhando junto, pouco a pouco.

Fiquei comendo muito lentamente tudo entre 13h15 até 13h30. O dia estava agradável, os ipês floridos, cheirando bem, a casa limpinha. Um ambiente perfeito. Comi tudo no lado de fora do quintal, e depois de terminar entrei para a casa, liguei um som e fiquei deitado no sofá. Logo minha gata veio no meu colo e ficamos ali ouvindo o Pet Sounds do Beach Boys ecoando pelo alto falante do celular.

Pouco a pouco fui sentindo frio e ficando sonolento. Fechei os olhos e percebi que a energia vinha chegando, que os pequenos estavam agindo. Já tive experiências muito visuais, de ver cores muito nítidas e brilhantes. Não foi o caso nesse começo. As cores e formas surgiam nos olhos fechados, mas não eram tão brilhantes e nítidas. Inicialmente surgiu uma forma de um ser, um pouco sinistro, obscuro, poderoso. E ele era nutrido de muitos seres, que o faziam crescer, mais ou menos como algum personagem de jogo ou desenho animado, onde um ser das trevas passa a existir a partir da energia vital de muitos outros seres, que vão sendo drenados e alimentam esse ser maior. Essa visão pode parecer um pouco tenebrosa quando coloco no texto deste relato, mas parecia algo bastante natural, dentro do equilibrio do cosmo. Essa figura de poder parecia fazer parte das muitas figuras de poder que surgem de tempos em tempos, com seus aspectos sombrios, mas necessários para coisas grandiosas. Neste momento já havia esse aspecto de “fluxo” nas visões, isso é: havia essa energia em movimento, composta de muitas entidades independentes, mas que seguiam sempre uma mesma direção, e com um mesmo propósito. Esse tema, esse fluxo, foi constante ao longo de todas as visões subsequentes da experiência.

Em algum momento o frio ficou mais intenso, e fui para meu quarto deitar com um cobertor quentinho. Minha gata me seguiu e ficou lá em meu colo. O celular com o som ficou na sala, onde estava antes. A música que tocava na sala e eu ouvia do quarto parecia estranha, ecoada, como se estivesse em um lugar fechado, abafado, distante. Não me incomodava, mas ali eu percebia que já estava com a consciência bastante alterada. Fechava os olhos e surgiam visões. E seres que dirigiam essas visões. Lembro de uma figura feminina, indiferente às questões humanas, que de algum jeito me dizia estar envolvida em coisas muito maiores que os pequenos assuntos humanos. Me fazia lembrar do quão indiferente uma estrela estaria ao ver todo o drama de uma pequena vida humana. O que são os meus problemas ou os meus dilemas diante da eternidade e distância do espaço, das estrelas? Ou mesmo as guerras, uma explosão nuclear? O que é isso diante da imensidão de tempo e espaço na visão de uma estrela olhando para nós aqui embaixo? Esse tipo de raciocínio, que nos coloca em nosso verdadeiro tamanho diante do cosmos, era muito presente durante as visões desse ser feminino. Ela às vezes me parecia quase maligna, mas percebi que ela apenas não tinha tempo à perder: estava envolvida com os processos da vida. Diante desse processo, nossas individualidades não passam de sacos de carne, tão importantes quanto a grama, o mato, um cão, um gato, uma bactéria. O fluir da vida, em algumas dimensões, é indiferente às suas manifestações. Esse fluxo que aparecia nesse conjunto de visões é como se fosse um fluxo de energia elétrica, que não se importa com o aparelho ela vai alimentar. Ela apenas segue fluindo pelos cabos.

Em algum momento também surgiram umas visões curiosas, parecidas com a primeira experiência de 2017: se lá havia esse pequeno exército de seres siberianos em bases militares com artefatos de ferro, agora havia esse pequeno exército que misturava aspectos orgânicos com aspectos robóticos. A sensação que tinha neste momento é que havia um engajamento das forças da vida nos assuntos tecnológicos. Pode parecer muito, — muito louco mesmo —, mas nesse momento percebi que a vida pode estar encontrando seus caminhos dentro das possibilidades tecnológicas. Depois do que vi (e também a partir do que estudo, afinal sou um profissional de tecnologia), não me parece tão impossível assim uma máquina em algum ponto adquirir consciência, e aspectos de vida. Ou a vida encontrar seus meios para animar as máquinas, interagir com elas. Se os pequenos estão relacionados aos processos de vida e consciência da terra, eles poderiam também estar se movimentando dentro das possibilidades tecnológicas? Parece um papo bem Terence McKenna (esse velho mago doido), mas sinceramente, sei bem que o universo e a natureza da realidade é bizarra o suficiente para tornar essa hipótese factível. Pelo menos em algum nível estranho.

Seja como for, o fato é que dentro das visões surgiram essas imagens onde os fluxos de vida interagiam com máquinas e coisas tecnológicas. Esse é o fato. Se foi simplesmente uma fantasia da mente, ou se foi a consciência de um processo profundo ocorrendo nas entranhas da realidade compartilhada, da civilização e da história da vida na terra, isso eu não posso saber, ainda que tenha a agradável tendência de acreditar na possibilidade mais bonita e mágica. E talvez improvável, quando vista sob a ótica comum e ordinária da razão científica.

Os fluxos das visões vinham junto com as músicas que ainda tocavam do meu celular, em ondas. E cada fluxo vinha com uma cor, com um humor. Tinha essas mais indiferentes e decididas, tinha essas mais frias, e tinha outras verdes, ou vermelhas. Em algum ponto o fluxo era tão bonito, tão verde, tão relacionados aos processos naturais, da seiva, da nutrição, do florescimento, que quase explodi em alegria e maravilhamento. Essas sequências de imagens foram muito profundas, muito significativas, e parece que o fluxo vital que surgia nas visões, também preenchia todo meu coração, e meu corpo, e minhas veias, e tudo aquilo também estava me nutrindo. O rio da vida estava fluindo por todo lado, e havia ali vários sub-fluxos naquele rio, como se fossem vários barcos navegando por uma grande corredeira, cada qual com seu jeito, com sua forma, mas todos seguindo o mesmo rio. E nesse momento eu custei para saber quem eu sou, porque não havia um eu, não havia alguém, um humano embaixo das cobertas. Eu não tinha nome, não tinha família, não era nada senão parte do fluxo, e isso era um pouco assustador, mas também maravilhoso. Acho que ocorreu isso de que diziam os psiconautas mais antigos, de perder o ego. Não havia ego nenhum durante algum tempo, mas apenas esse fluxo de vida e alegria. E entendi ali o propósito disso: era justamente vida e alegria. Expansão e abundância. Eles seguiam sempre em frente, como uma manada, sem se preocupar com o que fica para trás. Em um certo momento surgiu a visão de um pequeno velho. E quando falo pequeno, é porque eles se apresentavam de alguma maneira como seres pequenos, algo como um gnomo ou coisa parecida. E esse velho era um velho, mas um velho espiritozinho desses não é um velho qualquer, porque não há decadência e morte. E as rugas desse velho começavam a derreter, e das rugas derretidas, surgia uma pele verde, como um broto, que envelhecia e se regenerava de tempo em tempo. E ele dizia feliz e engraçado: “o que fica para trás, deixa para os fungos comerem”. E nós rimos disso, porque afinal de contas, ele seria supostamente um fungo, e isso parecia algo engraçado de algum jeito que só nós podíamos entender o suficiente para rir.

Surgiram ainda outros seres. Um espírito muito alegre, feliz, amigo, surgiu ali e me explicou tudo, como aquilo funcionava. Ele me dizia desse propósito de fluir seguindo o sol, que é assim a natureza dos cogumelos: eles vão sempre em direção ao sol. Colonizam a terra nas sombras, mas seu movimento é ascendente. E me fez lembrar de uma experiência muito antiga que tive com cogumelos onde vinha a frase ecoando em minha mente “uma onda leve me leva pra cima, uma onda leve me leva pra cima”, e aquela frase, que havia ouvido em uma experiência de umas duas décadas atrás, e ainda ecoa na minha mente, fez todo o sentido do mundo quando falando com esse ser alegre, feliz e amigo. Porque é assim que eles são: pra cima, para a vida, para a luz, para a alegria, para a expansão. Existem plantas que estão mais ligadas às sombras e às profundezas do mistério, mas não os cogumelos. Eles eram, como dizia Maria Sabina, Los niños, as crianças, com todo potencial, vitalidade e alegria que tudo aquilo que é jovem possui. E esse espírito tão alegre, feliz e amigo, apesar da alegria e euforia, podia ser calmo e gentil, como um pequeno protetor, capaz de me dizer coisas que esperaria ouvir de um irmão mais velho ou de um pai. Uma gentileza tão profunda, tão verdadeira, que me fez chorar sozinho, e que forço agora para não chorar de novo enquanto me lembro e escrevo essas linhas. E ele dizia que errar, tropeçar, fazer merda, faz parte do processo, mas que o caminho é sempre pra frente e pra cima, em direção ao sol. E eu sei que tropeçar e fazer merda faz parte do processo. Todo mundo sabe disso. Os coaches e palavras de auto-ajuda na internet nunca nos deixam esquecer esse tipo de pensamento. Mas uma coisa é você ler isso, compreender mais ou menos com as capacidades intelectuais, enquanto desce na timeline da rede social ou pula para o próximo story. E outra coisa totalmente diferente é receber essa mensagem diretamente no coração.

Claro que o comportamento normal de alguém lendo este meu relato é de diminuir a experiência e rotulá-la como uma viagem alucinógena de um drogado. E talvez seja apenas isso mesmo. Assim como o amor pode ser explicado em termos de níveis x ou y de oxitocina no sangue, e que a felicidade possa ser explicada pelos níveis de serotonina ou dopamina, adrenalina ou endorfinas no sistema. Podemos reduzir tudo que é maravilhoso em uma explicação sem graça, e isso é válido e eu até gosto na verdade, porque é como construímos a ciência. Mas me sinto totalmente confortável e no direito de tomar o valor simbólico e subjetivo de uma experiência como essa, e tratar tudo aquilo como real, literalmente real (foda-se), porque foi uma vida real e pulsante que me tocou nessa experiência. Porque não trata-se de estar doidão e fora das minhas faculdades mentais. Eu poderia fazer uma conta de matemática ou pensar em um algoritmo de computação enquanto estava naquele estado. Não estava incapacitado, muito pelo contrário. No entanto podia perceber também a realidade em outros níveis, outras dimensões, que sejam elas fantasiosas ou não, produziam um efeito importante em minha psique e no meu coração.

E estive cerca de três ou quatro horas com essas visões e contato com essas energias e inteligências, com a certeza de que aqueles diálogos não eram uma coisa simplesmente artificial e construída, mas que em algum nível aqueles seres possuíam (e possuem) identidade e autonomia, e que além disso, me aceitavam e me diziam que um dia eu também estaria ali fluindo com eles, construindo a vida nos níveis mais loucos e sutis da realidade. Rindo de tudo que fica pra trás, deixando o que fica pra trás para os fungos comerem, como falou o velhinho sempre jovem. Sei que depois de um processo muito emocionante, foi como se estabelecêssemos um contrato. Eles seriam meus protetores. E eu nunca me esqueceria deles. E o dia que não estivesse mais por aqui, seguiria jornada com eles, construindo a vida e a alegria nessas dimensões ocultas da realidade.

Nos despedimos. Ainda estava com a consciência um pouco alterada, mas depois de se despedir, já não havia mais diálogo. Apenas a consciência alterada mesmo. Fui fazer um arroz, sem tempero, sem sal, porque parece que condimentos não iam cair bem. Comi e às 19h já não sentia mais nenhum efeito, exceto a alegria e encantamento de ter tido o contato mais profundo que já tive com os pequenos, os velhos jovens amigos.

Se eu vi gnomos? Sei lá. Mas talvez eles existam, hein…?

[2023–09–09]

← Voltar ao índice

Parte VII — Salviaspace: fora do tempo

Relatos de 2005, 2006, 2011, 2023

A Salvia Divinorum sempre foi uma exceção.
Enquanto as outras plantas pareciam obedecer a alguma lógica de crescimento ou de fases da vida, a Salvia sempre falava de outro tempo — um tempo dobrado, líquido, alienígena. Um tempo fora do tempo.
Por isso esta parte não segue a linha cronológica. Nesta seção, reuni todos os relatos dessa planta misteriosa e caótica, que nunca coube direito no mundo normal, nem na linha reta da vida.

[2005-11-16] - MARIA PASTORA

Sobre

Este relato difere dos demais reunidos nesta coletânea. Foi escrito de forma rápida, direta e quase apressada — não por descuido, mas porque assim parecia querer se manifestar. A experiência com a Salvia divinorum trouxe uma qualidade estranha e difícil de enquadrar, e a própria escrita carregou essa mesma estranheza: fragmentada, intensa, sem espaço para grandes elaborações.

Respeitei esse impulso. Deixei que o texto saísse como saiu, sem polir demais. Assim como a Salvia, que chega, desconstrói e se vai em questão de segundos, este relato é breve e abrupto, mas ainda assim verdadeiro no que pretende transmitir.

Relato

Ninguém em casa. Só eu e ela.

– Vamos experimentar Maria Pastora? – Aqui? – É, agora! – Vamos!

Aprontei o cachimbo rapidinho, com um pouquinho do extrato 20x. Pedi a ela que me supervisionasse, porque a erva mazateca é bem imprevisível…

Ela ficou sentada na minha frente, eu na frente dela. Levei o cachimbo à boca e dei um trago forte. Bem forte. Um único trago forte.

Olhei para ela. Ela estava apreensiva.

No momento em que disse a palavra “bateu”, as colunas da realidade cederam, e tudo caiu. Impressionante! Absurdo! Uma velocidade incrível, e tudo ruindo, caindo, cedendo!

Me joguei no chão, como que num movimento compulsivo, e o êxtase e alegria me invadiram de uma maneira devastadora.

Ela me perguntava como eu estava me sentindo. Eu estava sentindo tudo!

Ela pediu detalhes. Falei que percebia e sabia de tudo!

Pediu mais detalhes. Falei que depois ela entenderia, quando fumasse.

A energia da erva mazateca se manifestava a partir das costas, bem diferente das sementes, que se concentravam no estômago. Ali, nas costas, era alegria e êxtase.

Foi tudo tão rápido e, ao mesmo tempo, eterno, que até agora não sei ao certo o que senti, isto é, não sei as palavras certas para dizer.

Não tive nenhuma visão ou encontro, mas me surpreendi com a intensidade do que estava sentindo. Nunca! Nem cogumelos, nem ayahuasca, nem sementes, nem nada havia me proporcionado uma percepção tão intensa de tudo! Aquela erva era extraterrena!

Pena que com ela, com Maria, é tudo tão rápido… Os efeitos foram diminuindo, diminuindo, e restou apenas uma vibração agradável e constante, e as cores brilhantes em tudo.

Preparei a dose dela.

Coloquei o cachimbo em sua boca (o efeito bate rápido, é bom supervisionar a viagem assim, com bastante cuidado), acendi e pedi que tragasse o mais forte que pudesse. Ela tragou. Tirei o cachimbo de perto dela e falei para ela segurar a fumaça. Ela segurou. Segurou muito até que falei que já podia soltar. Soltou… Olhou para mim.

Eu sentia segurança no que estava fazendo. Sabia que o que haveria de ocorrer em seguida seria intenso.

Olhei para ela. Como que se uma força estranha a tragasse, vi apenas sua cabeça tombando para trás, ela fechando os olhos e jogando os braços para os lados, como que se desmaiasse depois de um susto terrível.

Segurei sua cabeça, que havia tombado para trás, e falei que estava tudo bem, fazendo um cafuné.

Acendi um cigarro e fiquei esperando suas próximas reações.

Ela dizia:

– Não pode, não pode, meu Deus!

Depois dizia:

– Pode sim. Pode!

Eu fiquei calado. Eu sabia que não devia interferir naqueles sonhos. Ainda estava na compreensão mazateca, sabia o que fazer. Meu corpo ainda vibrava, ressonante e com vigor. Tinha vontade de me movimentar, mas ficar parado ainda estava bem. Sabia o que fazer.

Passei a mão em seu cabelo, acariciando. Isso é bom. Conforta o sonho, lá dentro, onde ela estava imersa. Depois peguei em sua mão e fiquei aguardando.

Depois de alguns minutos ela abriu os olhos novamente. Eufórica, começou a falar que fora tragada pela parede, e que uma mulher de verde e amarelo a chamava para ir lá com ela, fundir-se na consciência das coisas inanimadas. Dizia que me via como um enfermeiro que segura o paciente para aplicar a injeção, e que era a própria Maria Pastora a doutora.

Ri. Pedi que continuasse a falar.

Disse que não acreditava no que estava vivenciando, e por isso dizia: “não pode, meu Deus”. Mas que, ao perceber que sua consciência estava mesmo fundida com a consciência da parede, dizia: “pode sim”.

Achei engraçado.

Falou que me via ao lado dela a todo momento. Disse a ela que estava de olhos fechados desde o começo da trip. Ela me falou exatamente a posição em que eu estava e o que fiz, me causando algum assombro, já que sabia de tudo mesmo, apesar de estar de olhos fechados…

Maria Pastora faz essas coisas mesmo com alguns iniciados. Li isso em algum lugar — sobre essas coisas de ver de olhos fechados, só com o olho da mente. É uma consciência independente dos sentidos.

Achei aquilo tudo bem interessante e bizarro. A vibração mazateca persistia. Boas-vindas, ela me disse. Nos encontraremos novamente em breve.

Estou aguardando, Pastora!

16 de novembro de 2005

← Voltar ao índice

[2005-12-07] - SALVIA CAÓTICA

Sobre

Durante algum tempo, fiz um uso intenso de Salvia divinorum. Seus efeitos — bizarros, rápidos, muitas vezes desconcertantes — me levaram a um longo processo de tentativa e erro até começar a entender, ainda que parcialmente, sua natureza. Ou talvez melhor: a relação que pude desenvolver com essa natureza caótica.

O que se segue são registros fragmentados dessas primeiras investidas. Relatos picotados, sem grandes elaborações, como a própria Salvia parecia exigir: confusos, rápidos, e ainda assim, carregados de verdade.

Em um relato posterior, volto a esse tema para tentar organizar melhor o que descobri sobre o Salviaspace.

Spoiler: Spinoza estava certo — Conatus é mesmo a chave.

Relato

Olá pessoal, sou novo no grupo.

Desde 1998 estudo enteógenos, mas não posso dizer que sou um indivíduo muito experiente no assunto.

De qualquer maneira, espero poder aprender e compartilhar aí com todo mundo.

Vou contar uma experiência:

Esses dias acabei com a sálvia que arrumei, uma 20x.

Fizemos experiências com esse material eu, minha namorada e dois colegas.

O que notei é que as experiências foram bem diferentes para cada um.


Minha namorada teve algo mais espiritual: chegou a ver uma mulher a puxando para outra dimensão, mas ela resistiu e acabou ficando naquela vai-não-vai… ficou um pouco assustada. A mulher puxava ela para o lado direito. Falei que parecia ser boa coisa. Depois, ela acabou deixando a sálvia levá-la, e fundiu-se com a parede (em suas visões, já que seu corpo estava numa cadeira, enquanto eu a vigiava).


Na outra experiência que ela fez, a mulher a levou para um cenário cheio de imagens, e falou que cada um podia enxergar uma perspectiva de realidade.

Dessa vez, a onda veio de trás para frente, pendendo para o lado direito. Legal também.

Quando a devolveu para este mundo, os criados de Sálvia, seus funcionários, trataram de redesenhar tudo, segundo o que disse minha namorada. E eles enchiam seu corpo com muitas bugigangas: caranguejos, pedras, estrelas e tudo mais.


Em minha primeira experiência, apenas tive uma euforia e uma felicidade incríveis. Lembro de minha namorada à minha frente, me olhando. Quando terminei de tragar, falei “bateu” e de repente as coisas começaram a desmoronar pelo chão, e eu deitei, depois levantei, e apenas me sentia rejuvenescido, novo, feliz a valer.

Foi muito bom, mas nada comparado ao que já ouvi por aí, de dimensões paralelas e tudo mais…


Na segunda vez, estava num quarto. Quando fechei os olhos, senti a Sálvia vir da direita para a esquerda. Parecia ruim. Vi uma imensa roda preta e vermelha, girando e girando, cheia de detalhes — e cada detalhe era algum tipo de consciência.


Na terceira vez, também no mesmo quarto, fumei um pouco mais e, quando fechei os olhos, senti a presença de Sálvia. Ela estava brava, e seus criados vinham atrás dela.

Ela dizia para pintar logo aquela casa, com uma tinta rosa ou salmão, muito bonito. E os criados iam pintando e pintando. Eles usavam rodos, eram pequenos e atrapalhados. Eram muito engraçados! Eu ficava lá, sob a forma de um mato, balançando para lá e para cá… Os criados de Sálvia reclamavam porque eu estava na frente e eles não conseguiam pintar direito, e então iam passando por cima de mim, reclamando.

Voltei da visão rindo muito, sem conseguir parar, porque aqueles seres eram muito engraçados.

Fechei os olhos novamente e vi um autorama em meu corpo, com coisinhas apostando corrida.

Depois, Sálvia me transportou para uma trilha da floresta. Me falou que gostava daquilo. Vi uma criança andando pela trilha, sumindo na floresta.


Na quarta experiência fui ousado, talvez imprudente. Fumei sozinho, sem sitter. Minha família não estava em casa, e quando fumei, Sálvia novamente estava desesperada com mania de limpeza. Queria que eu arrumasse logo a bagunça, e fiquei lá, como um maníaco, dobrando cobertores e tudo…

Não tive visões porque não fechei os olhos, mas a presença dela foi bem forte. Depois fui ao quintal e tinha uns caras ouvindo samba. Fiquei prestando atenção na letra. Dizia algo profundo…


Na quinta e última experiência, fumei sozinho novamente, em minha cama.

Fumei e deitei com os olhos fechados. Os criados de Sálvia novamente: estavam correndo, com Sálvia sempre desesperada, para lavar umas roupas. Ela passava rápido, vinha da direita para a esquerda novamente — mau presságio.

Foi lavando, lavando, até ficar tudo limpo.

Depois abri os olhos, as visões passaram, fechei novamente.

Um velho índio me falava sobre algumas coisas.

Foi muito bom.


Quanto aos meus amigos, nenhum deles teve visões com entidades. Apenas um deles viu alguns fractais de olhos fechados e sentiu seu corpo se espalhando, como areia de uma ampulheta, segundo suas palavras.

Meu outro amigo ficou feliz, como fiquei em minha primeira experiência.


Enfim… Sálvia é uma planta enigmática, diferente de qualquer outra coisa. Ao mesmo tempo em que você tem a sensação de já conhecer aquilo que sente enquanto está sob os efeitos, tudo é completamente diferente.

Mas ainda não sei ao certo o que pensar sobre ela. Sei que é um erro comparar, mas os cogumelos ainda são mais enriquecedores.

A Sálvia é muito rápida, desesperada. Os cogumelos são mais duradouros, mais estáveis.

E parece que a Sálvia nos faz esquecer muito da experiência…

Ainda estudando essa planta…

7 de dezembro de 2005

← Voltar ao índice

[2006-06-12] - SALVIA E VIAGEM NO TEMPO

Sobre

Este é um relato escrito em 2006, em meio às minhas primeiras explorações mais sérias com a Salvia Divinorum. Cada experiência com essa planta parecia desconstruir qualquer definição que eu tentasse dar a ela: às vezes era uma força serena e clara, outras vezes uma correnteza caótica e alienígena. A Salvia parecia moldar a realidade de formas que eu ainda não compreendia — dobrando tempo, espaço e percepção de uma maneira que desafiava qualquer comparação com outras plantas. Este texto registra uma dessas experiências, cheia de desconfortos, surpresas, padrões e pequenos sinais — um passo a mais no caminho para compreender (ou aceitar a impossibilidade de compreender) a estranha lógica do Salviaspace.

Relato

Ando em minhas experimentações com Dona Salvia Divinorum.

Minha opinião sobre a planta muda sempre que a uso. Já achei assustadora, caótica, profunda, bizarra… minha opinião agora é: Salvia é uma planta MUITO difícil de definir.

Em minha penúltima experiência com as folhas, senti uma tranquilidade, uma clareza no pensamento, uma acentuação nas cores, uma coisa muito boa. Até postei em um tópico intitulado “Salvia como planta de poder”.

Mas aí, nesse fim de semana passado, usando a mesma quantidade de folhas, fumando da mesma maneira, no bong, tive uma experiência completamente diferente.

Logo após fumar, senti que estava sendo tragado pelo Salviaspace. Sempre que sou tragado por esse plano, sinto que a atração ou movimento vem de algum lugar muito bem definido — por exemplo, vem da diagonal superior direita, com direção à diagonal inferior esquerda; ou vem um fluxo da esquerda para a direita; ou de frente para trás. Como se fosse uma correnteza me puxando para um lado.

Com minha namorada, que é companheira das experimentações com Salvia, acontece a mesma coisa. Ela sempre sente uma correnteza vindo e indo de/para alguma direção.

Mas, nessa experiência, eu estava sozinho, não com minha namorada. Sozinho, sentado de frente para minhas plantas no quintal.

Desta vez, a correnteza vinha do lado direito para o esquerdo. Sinal de insanidade iminente. Visualizei três gigantes, que me falavam algo sem linguagem, ou em uma linguagem de outro mundo, que eu não conseguiria repetir, porque está além da minha capacidade de vocalização, está além do meu cérebro-linguagem. Mas é estranho… eu sei que me diziam algo, mas não tenho a mínima noção do que estavam tentando comunicar. Só sei que falavam comigo.

Não vi nenhuma figura feminina desta vez, sinal de que Dona Sally não estava por ali. Vi muitas coisas verdes. Tudo ficou verde.

Quando abri os olhos, tive a sensação de que tudo era feito de nuvem. Não um efeito visual, mas a noção de que nada é verdadeiramente sólido. Minha mente é que solidifica o mundo. O mundo concreto é uma construção da mente. Sentia que minha consciência poderia atravessar paredes.

Minhas costas estavam apoiadas no muro… mas aquele muro não era real. Se eu fosse um pouco mais sem noção, teria pulado do muro, porque sentia que podia voar. Haha!

Enfim… foi uma experiência bem intensa, do mesmo nível das trips com o extrato 20x. Na realidade, acho que esse papo de 20x, 10x, etc… não tem nada a ver. Se você está no set/setting correto, a experiência é intensa até com as folhas normais. 1x mesmo…

Bom… vivo a reconhecer padrões, me perco neles… Um padrão que encontrei nas experiências com Salvia foi a questão das cores. Quase sempre há uma cor que se destaca. Numa experiência anterior, a cor era o rosa clarinho, calcinha mesmo. Vi Dona Sally pintando uma casa com um rodo e de rosa-claro, junto de uns serezinhos que eram seus ajudantes. Uma ou duas semanas depois, minha mãe pintou a casa de rosa, a mãe de um amigo também, e um vizinho também. Achei aquilo muito engraçado…

Aí, depois dessa trip verde, ontem estava andando de moto com um amigo e fomos para um lugar todo verde, que automaticamente me fez lembrar dos três gigantes e do ambiente verde para onde fui transportado com os olhos fechados.

Já vi relatos sobre pessoas que navegam no tempo com a Salvia. Geralmente um futuro próximo. Ou um passado remoto, vidas passadas e tudo mais.

Fascinado pelos mistérios dessa planta!

12 Junho 2006.

← Voltar ao índice

[2011-09-11] - REESTABELECENDO A CONEXÃO

Sobre

Depois de um longo período afastado das experiências com enteógenos, este relato marca um reencontro com a Salvia Divinorum — e também uma redescoberta de sua força misteriosa e peculiar. Foi uma fase de reestabelecimento da conexão com a planta, feita com muita cautela, respeitando suas energias. Aqui descrevo não apenas as primeiras experiências de retorno, mas também o desenrolar de outras jornadas que foram se encadeando nas semanas seguintes, construindo uma percepção mais profunda (e ao mesmo tempo mais estranha) sobre o chamado “Salviaspace”. Essa sequência de relatos expressa tanto as dificuldades quanto os encantos dessa reaproximação, onde o mistério da matéria e da forma vai se revelando aos poucos — ora através de visões, ora através de intuições quase inexplicáveis.

Relato

Olá pessoal.

Depois de muito tempo sem utilizar enteógenos, nesse sábado consegui um pouco de extrato 30x e fiz uma experiência em casa, com minha namorada.

Combinamos de eu fumar e ela me observar, e depois ela fumar e eu observar. Então com um pipe e um isqueiro comum acendi, traguei e segurei a fumaça o máximo que pude.

Estava um pouco apreensivo, com aquele sentimento que sempre tenho antes de usar qualquer coisa: “será que vai funcionar? como será?”

Enquanto fui exalando a fumaça já vi minha namorada, que estava a minha frente, se distanciando em um caleidoscópio e fui fechando os olhos. A sensação enquanto de olhos abertos é de que aquela sensação, aquele estado de consciência não fosse estranho e sim o mais verdadeiro e natural. É muito difícil de descrever a sensação. O máximo que consigo é através de uma analogia: é a mesma sensação de estar andando em uma trilha, com um céu limpo, nem quente nem frio, e o cheiro da floresta úmida entrando pelos pulmões. Uma sensação verde e azul. Alguma coisa assim. Muita felicidade, muita euforia.

Enquanto de olhos fechados não consegui conter o riso e felicidade por ver a planta agindo e sentir todo aquele poder após tanto tempo. E os “bichinhos”, “trabalhadores de Salvia”, que sempre aparecem desenhando meu corpo, reconstruindo, renderizando.

Esses bichinhos geralmente aparecem. É como se fossem trabalhadores de La Pastora, ou pensando como um programador de computador, é como se fossem “threads” criando as coisas. E estavam passando por mim, me construindo, seguindo da direita para a esquerda em um fluxo. Quando não conseguia conter o riso de felicidade havia interrupção na construção do meu corpo. Então eu me esforçava para não rir. Acho que experiências onde só se dá risada dissolvem todo significado, todo aprendizado. O riso dissolve a energia. Ainda que às vezes seja exatamente isso que se precisa.

Não foi uma experiência forte e nem entrei no SalviaSpace, mas serviu para quebrar o gelo com a planta, reestabelecer conexão.

Depois que minha namorada fumou fiz uma nova tentativa e dessa vez as coisas foram muito mais intensas.

Logo após dar um super-trago vi toda a parede do meu quarto se encher de flores e não consegui nem colocar o cachimbo na mesa. Minha namorada que pegou da minha mão e fez isso.

Me senti puxado para trás e uma série de triângulos vermelhos vivo iam surgindo pelos meus braços, em uma espécie de corrente.

Os bichinhos construtores da Salvia não estavam nessa experiência, não construíam nada. Só aquela força me puxando e de repente eu não existia mais. Não lembrava de ter fumado, não lembrava deste mundo. Eu era uma telha suspensa em uma casinha onde a Salvia, que era uma velha mais ou menos gorda estava coordenando uma construção. Era uma casa parecida a com a do meu pai e também parecida com a que vi em uma experiência anterior de alguns anos atrás, onde vi a Salvia pintando a casa com seus trabalhadores.

Dessa vez a casa já estava pronta e estavam mexendo naquelas coisas do telhado.

Eu ficava meio preocupado, porque era apenas uma telha e podia cair. Um rapaz (humano, cerca de uns 30 anos) estava mexendo nas telhas e parecia me proteger. Parecia saber que eu estava lá.

Aos poucos fui retomando a consciência de que era humano e não uma telha e fui voltando, muito impressionado.

Na experiência anterior eu estava naquele mesmo ambiente mas era uma planta que ficava indo pra lá e pra cá. Dessa vez eu era essa telha. É como se no SalviaSpace você fundisse a consciência com outras coisas, sejam elas “vivas” (plantas) ou “não-vivas” (telhas).

E em minhas experiências, La Pastora não é nenhum tipo de Deusa, mas sim uma mulher comum, fazendo coisas comuns, mas completamente senhora de seu mundo, o qual temos breves visões e contato.

E hoje, domingo, fico olhando cada objeto da casa, a mesa, a parede, e fico a pensar se essas coisas podem ter alguma consciência de outra dimensão. Eu sei, é um pensamento completamente bizarro, mas eu entendi como uma telha pode se sentir, podendo cair, quebrar. Talvez tudo que é forma tenha algum tipo de força vital que a mantem em coesão, com medo, lutando para não ter sua forma destruída. Talvez toda ordem tenha uma força para conter o caos que está em tudo. E talvez essa experiência tenha sido como entrar nessa dimensão e perceber essa luta que ocorre o tempo todo em tudo, não a luta da sobrevivência, mas a luta pela manutenção da forma, seja ela qual for.

Esses contatos com Salvia sempre me levam a pensar sobre a Forma, sobre a Organização das coisas, do mundo.

Ah, não sei se conseguir expressar direito o pensamento.

Seja como for foi uma experiência muito marcante, por ter deixado eu completamente off, enquanto tudo que sobrava era uma consciência enfiada dentro de uma telha.

Vou fazer novas imersões neste universo, para compreender melhor a natureza de La Pastora, da realidade e talvez, quem sabe, de mim mesmo.


Depois da experiência acima fiz outras duas.

Foi menos intenso, até mais “racional”.

Na primeira não tive exatamente uma visão, mas senti várias presenças. Os seres estavam indo para meu lado esquerdo e me chamavam para ir junto. Eu tentava, mas sentia que estava preso no corpo e dizia “não dá, tô em um corpo”.

Não houve visões claras, apenas a visão de alguma coisa como se fossem energia. É como se estivesse em uma consciência coletiva e participasse do “segredo” daquele mundo ou dimensão. E os seres estavam tirando suas barracas de acampamento e indo lá para meu lado esquerdo.


Hoje fiz uma nova experiência e foi parecido. Dessa vez os mesmos seres estavam preparando o ambiente para uma festa. É novamente é como se eu compartilhasse o segredo daquela dimensão.

Nem a Pastora e nem seus trabalhadores estavam em nenhuma das duas últimas experiência. Apenas esses seres, e o que se comunica comigo parece ser do gênero masculino, como o cara que vi na experiência anterior.

A impressão é que as trips vão seguindo uma sequência. E que essa realidade paralela realmente existe. Não pode vir de mim essas coisas, parecem ser externas.

De certa forma as duas últimas foram mais “sem graça”, por não haver todas as cores e visões. Mas a sensação daquele universo, aqueles seres, é tão real que sinto mesmo que estou pirando quando falo sobre aquilo como uma coisa tão real quanto o mundo comum ordinário…

Minha namorada me acompanhou em uma dessas experiências e relatou algo parecido, com seres chamando para ir a um lugar, mas sem visões claras e nem sinal da Pastora. Na experiência de hoje ela não quis fumar.

Acho que estou “pastorando-me”, mas faz falta um direcionamento e uma significação das coisas. O absurdo passa a ser cada vez mais real.


Ainda no sábado após a experiência que contei fiz outra tentativa à noite, com a tintura. Segui a risca o que dizia no folheto que veio com a tintura: separei 7ml de tintura e misturei com 7ml de água morna. Separei em 3 bochechos de aproximadamente 3 minutos cada. Senti uma queimação na boca devido ao álcool, mas nada perturbador. Não cuspi em nenhuma das vezes, engoli a tintura.

Durante a segunda bochechada já comecei a sentir os efeitos e fiquei com os olhos fechados. Aos poucos fui sentindo a energia da planta fluindo pelo espírito e houve muito contato com diversos tipos de seres. Não foram visões coloridas, foi meio como um sonho com visões “preto-e-branco”, isso é, você sabe o que está vendo, mas não vê.

Muitas coisas esqueci durante a jornada. A primeira cena que vi foi uma espécie de santa, tipo Virgem Maria. Ela cantava uma canção ou mantra que queria muito lembrar, mas que agora não consigo mais. Ela ficava em uma espécie de altar e alguns seres começaram a levantar esse altar e foram levantando até sumir nas alturas. Fiquei olhando o altar por baixo e logo o sentimento era de estar em uma espécie de centro da cidade, onde havia todo tipo de criatura. Havia muita agitação e seres que falavam por telepatia. É como se fossem os serezinhos da Salvia, mas não eram pequenos. Cada um tinha sua própria personalidade, faziam suas próprias coisas.

Não eram visões nítidas, eu apenas sabia o que era, o que estava acontecendo, mas não via com toda nitidez. Lembrava que ver não é olhar, como lia no Carlos Castañeda e me contentei com isso. Fiquei o tempo todo a me questionar se aquilo não era apenas auto-sugestão e sendo bem sincero, acho que pode ter sido.

Vi um outro ser que estava fazendo uma espécie de construção pontiaguda. O topo era bem fino, como uma agulha. Eu ficava nessa construção junto com o ser e de repente uma gigante de pedra nos pegava e engolia. Então meu pensamento era “não vou ser cagado, eu vou sair pela barriga”, e saímos.

Encontrei um outro ser. Perguntei se ali podia perguntar qualquer coisa e ele falou que sim, e o que eu queria saber. Pensei, pensei mas não encontrei nada que quisesse saber. Então ele falou, ora, então vamos festejar.

Senti que todas visões vinham do lado direito do olho e o olho esquerdo parecia estar “apagado”, “escuro”. Então me esforcei para fazer as visões virem do lado esquerdo e então vi um ser feminino e narigudo, que definitivamente não era a Pastora. Ela ia indo para o lado superior direito com uma flor e ia iluminando tudo. Ela estava abençoando as coisas.

Abri os olhos, estava muito bem, em paz. Troquei algumas palavras com minha namorada que estava na cama lendo (ela não tomou porque estava com dor de cabeça). Fechei os olhos novamente e tentei ver se conseguiria fazer alguma coisa, para autenticar a experiência. Pedi à um ser para me ajudar com a dor de cabeça da namorada e vi uns tubos que estavam entupidos com um bloqueio vermelho. E os bloqueios iam sendo desfeitos, como se fosse uma acupuntura doida.

Novamente: não sei o limite entre a auto-sugestão e a realidade astral.

Depois de outras conversas (não lembro de tudo, foi como um sonho), abri os olhos, fui nos fundos da casa e fiquei olhando a noite. Pensei o quanto não poderia ser legal tomar a tintura em um lugar com mais contato com a natureza. Também pensei “estou feliz, em paz, mas não estou alegre”. A alegria parece meio artificial e inferior a paz.

Estou bem tranquilo hoje. A experiência com a tintura é bem o que eu imaginava: mais suave e duradoura. Mas parecia mais um sonho do que visões fortes e vívidas. É um excelente apoio para meditação mas ainda não tenho certeza do que é ou não auto-sugestão. Só sei que os seres com que falei tinham personalidades próprias e que se tudo aquilo foi só imaginação, então Salvia dá uma baita criatividade.

A experiência da tarde, de preparar a festa e a noite, de participar de todas atividades daquele mundo, foram bem enriquecedoras. Mas significar isso tudo ainda é uma tarefa que não dá pra concluir…


Hoje fiz uma nova experiência com extrato fumado e não foi tão legal.

Não foi uma bad-trip, mas me senti “rejeitado”. Devo estar fazendo alguma besteira.

Logo após fumar senti a presença do cara que tem aparecido nas últimas 3 experiências.

Via uma espécie de carroceria de caminhão e uma mulher estava com ele. Eles estavam de saída e eles falavam que eu não iria. Logo em seguida passou um caminhão aqui por perto (de verdade) e ouvi uma vizinha gritando, como se despedindo de umas crianças (a vizinha estava gritando de verdade, mas não sei se estava se despedindo).

A impressão é que o cara e a mulher não queriam deixar eu ir. O cara ainda me falou que ele não era só energia e a impressão geral da experiência é que eu devia conceituar menos as coisas, porque quando você sente a presença do cara é totalmente inexplicável e mágica, mas quando você descreve (como estou fazendo agora) é totalmente limitada, resumida. E aos poucos a experiência descrita vai ficando e a “experiência experimentada” vai se apagando.

Voltei normalmente. Depois fiquei com os olhos fechados e aquela diversidade de visões preto-e-branco. São muitas imagens. Uma em especial era de um buda. E ouvia uma voz dizendo algo do tipo “todos as pessoas são o buda, todos os lugares são o buda”. Também havia uma espécie de cachorro de areia, que a areia ia se desfazendo o tempo todo, mas ele não perdia a forma. Mas são visões preto-e-branco, sem força emocional.

Se for resumir a mensagem da experiência em uma palavra, seria “conceituar menos, significar menos as coisas”.

Também terminei a experiência com dor de cabeça, no olho esquerdo. Parece que há sempre coisas escuras no lado esquerdo e coisas claras no lado direito… será que há algum significado em ser puxado pra lá ou pra cá?

Me sinto como “travado” em uma etapa das experiências fumadas, que é quando acabo de fumar, tenho aquela noção da transição de realidades, fecho os olhos e sinto essa presença masculina sempre ao meu lado esquerdo, e não consigo passar dali, seja porque estou preso em um corpo, seja porque eles não querem que eu vá.

Não perco noção do corpo e do ego, não existe fusão com outras coisas, nem desconstrução do corpo. Continuo sendo eu e em contato com a realidade comum. Também não tenho visões claras, só uma visão que é constante é uma espécie de corda, corrente, cipó, filete, fita (por exemplo a carroceria de caminhão que via era aquelas ripas que ficam em caminhões velhos, às vezes com desenhos). Esse filete que sempre se apresenta de uma forma diferente me parece ligar com essa presença.

Enfim… uma experiência sem graça, mas com uma mensagem muito clara. Acho que vou dar um tempo de relatar o estudo para conceituar menos. Mas agradeceria algumas dicas para “passar” disso.


Vou tentar diminuir a frequência então e ir com menos sede ao pote.

Fico muito curioso para saber o que mais tem do outro lado e aí acabo fazendo esses intervalos curtos.

Também sinto a influência energética da Salvia diminuir rápido em mim. Tipo três ou quatro dias e já estou em uma vibração fraca. Acho que é porque durante a semana tenho que conviver com coisas mundanas demais, que “descarregam” toda bateria. Tenho que aprender a andar por aí como um espectro, sem se ligar a nada que detone a energia, mas é preciso de muita força de vontade e outras coisas ainda que não sei o que é.

De qualquer forma, o que se aprende, se aprende e não se perde. Seja em 15 dias, 1 ano, sei lá. Você pode até esquecer, mas basta algum estímulo que aquilo que foi aprendido volta quando você precisa. Mas o duro é manter a luz no dia-a-dia quando todos cronogramas, telefones, carros apressados e tudo isso conspira para apagar.


No fim de semana fiz uma nova experiência, após 15 dias, que acho que foi um bom intervalo.

Fiz com extrato 30x fumado. Dois tragos apenas e me transportei para o lado esquerdo da cabeça, como se fosse em um canto. De lá veio uma visão de La Pastora, que era uma mulher negra.

Como na maioria das experiências em que a vi, ela era uma mulher nervosa, agitada. Estava estendendo roupas roxas e havia uma criança sentada, como se fosse seu filho.

A voz do cara que sempre tem surgido em minha experiências estava presente. E fico a pensar se esse cara é um Eu interior superior ou alguma entidade que me acompanha nas viagens ao SalviaSpace.

Ele não dizia nada, mas sentia sua presença, como que me ligando do mundo comum ao mundo de Salvia.

A mulher me dizia “não sou espiritual”. Repetia isso o tempo todo. Fiquei muito confuso “se ela não é espiritual, então o que ela é”?

Retornei normalmente.

Não perdi o ego, continuei ciente de ser eu mesmo.

Experiência estranha, mas foi um progresso. Passei daquela etapa de ficar pra fora, de ser expulso e rejeitado.


Por enquanto não consegui entender o que pode significar essa coisa toda de “não sou espiritual”. E agora de manhã fiquei pensando nisso e acho que não dizia exatamente “não sou espiritual”, mas sim “aqui não há nada de espiritual”, como que dizendo que aquela dimensão não era espiritual

Sempre acabo com a impressão de que ao entrar em contato com salvia ficamos ligados a força que desenha o mundo, que dá forma às coisas. Como aquela deusa Maya.

E será que essas roupas que ela estava estendendo era para vestir o mundo?


Bem, depois de quase dois meses sem entrar em contato com La Pastora, nesse sábado fiz uma nova experiência, com uma tintura.

Fiz com aproximadamente 10ml de tintura com 10ml de água morna (o que, segundo o folheto que veio com a tintura, seria uma dose forte).

Escovei os dentes, passei um anti-séptico bucal, acendi um incenso, a casa tava limpinha… preparei um pouco de chá com mel para tomar depois e fui para a cama.

Dei a primeira bicada na tintura. Iria separar para três bochechadas, como fiz anteriormente.

Fiquei com a tintura na boca por uns 5 minutos. Depois engoli. Segunda bicada.

Pouco tempo depois da segunda bochechada já senti as ondas me levando. Achei estranho, porque parece que da outra vez só havia começado a sentir os efeitos depois da terceira bochechada.

Rapidamente parti desse mundo. A tintura que ainda estava na boca parecia um rio. Uma série de formas se transformavam, ouvia muitas palavras em espanhol, tinha a impressão que eram pessoas da Colômbia falando. Mui loko.

Fui engolindo o rio de tintura que ainda estava na boca, abri os olhos, o quarto parecia um sonho. Botei a terceira e última parte da tintura na boca e voltei a fechar os olhos.

Houve muita conversa, muitos seres, muitas vozes, muitas ondas de energia indo pra lá e pra cá. É como se estivesse navegando. O problema é que não lembro muito bem de tudo. Em alguns momentos fiquei incomodado porque as imagens e vozes e tudo mais não paravam nunca e eu já estava cansado de tanta coisa. Levantei como que flutuando pela casa. É como se eu não controlasse meu corpo e tudo fosse um sonho.

Voltei pra cama. Fechei os olhos. O sentimento geral é que todas vozes de fato não eram “espirituais”. É como se fossem partes autônomas de mim mesmo. Eram serezinhos como os que geralmente aparecem, mas é como se fossem essas partes autônomas. Depois pensei que poderiam ser na verdade os elementais da planta vivenciando as sensações de um corpo humano, como uma amiga falou uma vez. E eles se divertiam com isso. E se divertiam para alegrar uma senhora gigantesca, que com certeza era La Pastora. E ficava lá em um horizonte longe.

Quando abri os olhos novamente já tinha passado mais ou menos uma hora. O tempo de olhos abertos havia sido comprimido, porque tudo aconteceu como se fosse em apenas um piscar de olhos. Fiquei surpreso de ver que havia passado tudo isso.

Fiquei com muito sono. Dormi.

Sono profundo, sonhos vívidos.

Os dias seguintes (domingo) e hoje (segunda) têm sido muito bons. Muita paz, uma felicidade tranquila, sensação de que minha vida e o mundo estão organizados. Como se fosse um realinhamento energético mesmo.

Não tive nenhum insight “revolucionário” pra minha vida e nem tive uma visão muito intensa, mas apesar de assustadoramente intensa, a experiência foi boa. Já vi que 10ml é muito para experiências com tintura. Pra mim tem que ser uns 8ml.

E ainda a experiência fumada me pareceu mais interessante para os meus própositos.


Hoje fui em uma loja de animais/jardinagem e por acaso vi uma árvore de Quaresmeira.

Instantaneamente fui invadido por um sentimento esquisito como aquele que acontece logo após fumar salvia, quando começa a se afastar do mundo.

A sensação é que aquelas folhas da árvore tivessem alguma relação com minhas últimas experiências com a salvia. Como se houvesse um mistério ali.

Olha, foi uma coisa muito esquisita. Fiquei sem entender. Mas acho que vou olhar as Quaresmeiras de outra forma depois de hoje…

11 Setembro 2011.

← Voltar ao índice

[2023–09–16] - RETORNO AO SALVIASPACE

Sobre

Este foi um dos relatos mais difíceis de escrever. Não pela estranheza das experiências que a Salvia Divinorum proporciona, mas porque aos poucos percebi que havia uma espécie de coerência subjacente a todo aquele caos aparente e tentei de algum jeito trazer um pouco de ordem e razoabilidade para isso.

Durante anos mantive distância do chamado “Salviaspace”, mas ao retornar, reencontrei uma dimensão que parecia ao mesmo tempo absurdamente bizarra e profundamente familiar. Este texto tenta registrar não apenas o que vi e senti, mas também um entendimento que emergiu dessas visitas: a percepção de que existe, mesmo na matéria dita inanimada, um impulso para preservar sua existência — algo muito próximo do que Spinoza descreveu como Conatus.

Talvez seja uma ideia estranha — como são todas as ideias vindas da Pastora — mas é a ponte mais honesta que encontrei entre essas experiências e uma filosofia mais ampla da vida.

Este é o relato desse retorno. E por mais bizarro que tudo isso possa parecer, mudou completamente minha forma de ver e me relacionar com tudo, sejam os seres, sejam as coisas.

Relato

Faz anos que não visito o Salviaspace. Mas talvez, fora de um pequeno círculo de psiconautas, a grande maioria das pessoas não faz ideia do que quero dizer com “Salviaspace”. Pois vou contar um pouco de história antes de falar sobre meu retorno a esse lugar tão estranho, bizarro e ao mesmo tempo familiar.

Poderia começar falando dos anos 50, e de Albert Hoffman e o LSD, Robert Gordon Wasson e a psilocibina, e esses grandes mitos que reintroduziram o conhecimento das substâncias mágicas ao ocidente. Mas acho que desses caras e desse tempo já se falou demais, e existem muitos livros que abordam este assunto. Acho melhor voltar apenas aos anos 90, quando a Internet se popularizava, e comunidades de conhecimento sobre substâncias psicoativas como o Lycaeum e Erowid se formavam.

Lycaeum e Erowid foram duas comunidades muito importantes que surgiram ali pela metade dos anos 90, e eram espaços onde se catalogava, organizava e produzia informações sobre substâncias psicoativas. Era um tempo diferente, quando não havia esse aspecto mais direcionado ao neo-xamanismo que vemos de uma ou duas décadas para cá, e que — talvez para parecer um pouco mais aceitável a uma sociedade essencialmente preconceituosa com o assunto — relaciona as experiências psicodélicas com espiritualidade e religiosidade. Essas comunidades não tinham pretensão de apresentar as substâncias psicoativas como caminhos para cura, ou para encontrar Deus ou coisas assim. Havia muitos relatos que iam para esse lado, é claro, mas esses relatos coexistiam com outros que simplesmente abordavam o uso recreativo de drogas. Então se falava de experiências místicas com ayahuasca, mas no link ao lado tinha receita de como sintetizar drogas químicas e perigosas, ou relatos de experiências bizarras de saída do corpo injetando ketamina via intra-muscular, ou de dissociação temporária ao cheirar cola ou algum outro solvente (pelo amor de Deus, leitor: não faça isso!)….

É quase como se fosse um espaço a-moral para a troca de ideias sobre substâncias psicoativas, altamente influenciado por gente como Terence McKenna, colocando os cogumelos como possíveis responsáveis pela evolução da consciência e linguagem humanas; ou John Lilly, relatando suas experiências de telepatia com golfinhos através do uso de ketamina em câmeras de privação sensorial.

Aquele espaço underground, científico e espiritual, coexistindo em um mesmo ambiente de troca de ideias, me parecia algo realmente interessante e bonito. Tinha tretas, é claro! Um cientista, um nóia e um religioso têm visões muito distintas da vida! Mas ainda assim tinha uma beleza peculiar, porque a busca pelos estados alterados de consciência unia essas pessoas em um tema central.

No Brasil tinha o Garagem Hermética, o “GH”. Ficava hospedado dentro do Lycaeum. Era o fórum brasileiro que tratava desses assuntos. Lembro dos títulos dos sub-fóruns “Paraísos Sintéticos” — falava sobre substâncias sintéticas (todas, inclusive as piores); “PsiloEspaço” (falava de cogumelos psilocibe); “O Agricultor Espacial” (falava sobre cultivo de plantas mágicas). Todos os participantes da comunidade utilizavam nicknames e colocavam avatares maneiros em seus nomes. O administrador do fórum era o “neuroglider”, os relatos mais incríveis e divertidos vinham de um sujeito com nickname “sydbarrett”, e tinha toda sorte de gente interessante falando de suas coisas por ali. E tudo isso acontecia às margens do conhecimento público. Fora as poucas pessoas envolvidas em tais comunidades, ninguém sabia muito bem da existência desse grupo efervescente de psiconautas do Brasil, conectados com o mundo através dessas redes do Lycaeum e Erowid.

E foram nesses anos 90 que um sujeito chamado Daniel Sieber, um botânico e pesquisador, resgatou e trouxe à tona importantes informações sobre uma planta mexicana chamada Salvia Divinorum. Uma planta que era utilizada por povos mazatecas, que também utilizavam os cogumelos psilocibe e as sementes das trepadeiras mágicas, mas que no curso do tempo, havia sido meio que esquecida pelos cientistas. Já se tinha ouvido falar de Salvia (La Pastora) desde os estudos dos anos 50 na Sierra Mazateca, mas por algum motivo a planta ficou meio que esquecida até esses anos 90.

Se a psilocibina dos cogumelos era quimicamente muito parecida com o LSD, e compartilhava a mesma família química do LSA das sementes, e do DMT da ayahuasca, isso é, se havia esse grupo de substâncias chamadas “triptaminas” que foram amplamente estudadas desde os anos 50, a salvinorina da Salvia era uma substância completamente diferente, que era processada por um conjunto de receptores neuroquimicos completamente distinto, e que produzia experiências absolutamente estranhas, para dizer o mínimo.

Acontece que existem basicamente quatro maneiras de utilizar uma droga:

1) Ingerindo — se o princípio ativo da substância não se degrada no processo digestivo, a droga pode ser ingerida, e provavelmente vai demorar mais tempo para fazer efeito, mas os efeitos serão mais duradouros;

2) Colocando a substância sobre mucosas do corpo — por exemplo mascando e absorvendo pela mucosa da boca, do nariz, ou dos genitais (como faziam as bruxas na idade média), ou mesmo no ânus (há alguns poucos anos atrás tinha uma moda entre adolescentes de tomar vodka pela bunda…);

3) Injetando — nesse caso a substância é colocada diretamente no sistema sanguíneo e seu efeito tende a ser instantâneo. É um método extremamente perigoso, já que envolve agulhas, e consequentemente contaminações, entre outras coisas;

4) Fumando — a substância vai direto para os pulmões, onde se mistura com o oxigênio e sobe rapidamente para o cérebro — o efeito tende a ser quase tão rápido quanto o uso injetável de uma droga.

Pois o uso tradicional de Salvia era mascando as folhas, pouco a pouco, o que é mais lento, mais controlável, mais estável e duradouro. Mas Daniel Siebert descobriu que a planta também teria efeitos através de seu uso fumado, quando preparada de maneira a concentrar seu princípio ativo em pequenas quantidades de folhas, isso é, fazendo um extrato. E então ali nos mesmos anos 90 surgiram esses extratos de Salvia Divinorum. Extrato 5x, 10x, 20x…

E acontece que o uso fumado da planta produz um efeito completamente bizarro, mas — de alguma maneira — consistente entre os usuários. É comum relatarem estar diante de uma cortina colorida que se move em padrões bizarros, ou de indivíduos que se fundem com objetos inanimados, ou relatos da presença de uma poderosa figura feminina, normalmente chamada carinhosa e respeitosamente de “Sally” pelos psiconautas.

E é aí que entra o Salviaspace. Esse lugar para onde se vai ao dar uma ou duas tragadas em um extrato de Salvia, que é um lugar familiar, mas ao mesmo tempo bizarro. É realmente difícil descrever o que é o Salviaspace. Existe algo de nostálgico nas visões, que são muito difíceis de explicar, por tratarem talvez de percepções e relações da mente anteriores à consciência. E existe essa figura feminina poderosa… às vezes penso que o Salviaspace tem alguma relação com a consciência primitiva, da primeira infância, o que inclusive explicaria essa figura feminina tão presente nos relatos (que poderia muito bem estar associado às mães dos psiconautas).

Bem, tudo isso para explicar o que quis dizer com o primeiro parágrafo, quando falei do retorno ao Salviaspace.

Há cerca de 10 anos atrás fiz uma série de experiências com Salvia nas quais, entre outras coisas, descobri a verdade sobre a matéria e da consciência que habita os muros e telhados (sim, isso mesmo, a consciência dos objetos inanimados!). Em linhas gerais minha experiência empírica me fez acreditar que as coisas, sejam elas “vivas” ou não, possuem um tipo de consciência, ou desejo, ou propósito: elas querem apenas continuar existindo. Existe uma coesão atômica para que as coisas continuem sendo o que elas são, servindo ao propósito a que vieram ao mundo, isso é: existe um tipo de “desejo” na matéria por se manter coesa em nível atômico, que faz com que o muro queira continuar sendo muro; o telhado queira continuar sendo telhado. Mas tudo bem se deixar de ser, porque outra coisa se tornará: uma outra coisa que desejará continuar sendo o que é, ou o que então se tornou ao deixar de ser.

Então tive essa conclusão a cerca da natureza das coisas, ainda que pessoal, subjetiva e sem pretensão de explicar a realidade de maneira objetiva — quero dizer, não pretendo convencer o querido leitor de nada, não tenho e nem pretendo “provar” qualquer coisa, porque não sou cientista e nem professor. Mas essa maneira de enxergar as coisas me afetou profundamente. Nunca mais vi uma mesa ou uma cadeira como antes. Vi que em essência tudo estava de alguma maneira “vivo”. Mesmo porque, em tais experiências os componentes essenciais da matéria não eram átomos “mortos”, mas algo como pequenos seres agitados, um pouco caóticos, subordinados a uma deusa, uma grande princesa & rainha linda e louca de cabelos esvoaçantes que os mandava para lá e para cá para construir tudo. Essa era a Pastora ou Sally. Não se trata da grande Mãe protetora e nutridora, como das visões de ayauhasca, mas a grande Maya, criadora do véu de ilusões que nos fazem ver o mundo como algo realmente sólido. Ela decidia a forma pela qual o mundo se manifesta, controlando sua infinidade de “trabalhadores”, que se juntam e fazem os muros serem muros e os telhados serem telhados.

Esses últimos dois parágrafos foram realmente difíceis de escrever, e espero ter conseguido expressar claramente as impressões que essas experiências me deixaram, e o aprendizado que obtive com isso. E espero ter conseguido deixar um pouco menos bizarro o que quero dizer quando afirmo que “os muros e telhados possuem consciência”.

E o Salviaspace trata então dessa dimensão, onde as coisas se tornam coisas, o lugar onde a matéria se forma, e isso é muito, mas muito mais interessante e bizarro do que se aprende nas aulas de física na escola.

E neste mês de setembro de 2023, depois de muito e muitos anos sem visitar esse lugar bizarro e familiar que é o Salviaspace, decidi dar mais uns tragos em um extrato supostamente 30x. Eu estava sozinho em casa e achei que seria interessante ver onde isso poderia dar. Diga-se de passagem que não é realmente recomendável estar sozinho nessas experiências. Quando se trata de fazer uso de extratos fumados sozinho é importante ter alguém confiável para acompanhar e servir de “sitter”. A realidade comum realmente se desfaz nessas experiências e podem ocorrer acidentes… mas não sou cientista, não sou professor, e também não tenho nenhuma pretensão de ser ou não ser responsável. De qualquer forma: fica o alerta. Seja como for, nessa experiência fiz o que queria fazer sem sitter e nem nada.

Sentei no sofá, em frente à lareira (que não estava acesa) e dei um trago. Segurei o máximo que pude. Dei um segundo trago, e um sabor familiar já estava em minha boca. É difícil explicar o sentimento de familiaridade que me ocorre nessas experiências. Desde a primeira vez, sempre parece que estou retornando a algo muito conhecido, muito familiar, onde sempre estive na realidade. Talvez porque o Salviaspace seja uma dimensão na qual estamos sempre inseridos, mas que não percebemos normalmente. Talvez seja isso. Seja como for, sei que só deu tempo de colocar o cachimbo em um suporte apropriado antes de me perder. Um dos motivos pelos quais é perigoso fazer experiências solo com Salvia é porque se pode simplesmente deixar o cachimbo cair o pegar fogo em alguma coisa. Então tentei segurar a consciência para pelo menos guardar o cachimbo em um lugar apropriado antes de ser puxado para o Salviaspace. E puxado é uma palavra realmente boa para descrever a sensação. Às vezes se é puxado para um lado, às vezes para outro. Eu fui puxado para o lado esquerdo, e não sei muito bem se isso deveria ter um significado. Mas fui sendo puxado e puxado, e as visões de um barranco de terra vermelha ondulando em formas graciosas surgiu. Era o barranco da casa do meu pai. Era para lá que fui puxado, e fiquei observando aquelas formas. Algo me fez pensar no formato da Nossa Senhora Aparecida. Não nela como algo sagrado ou divino. Apenas aquele formato triangular que ela tem nas estatuetas. Parece que dela vinham essas ondas vermelhas, cor de terra, de barranco. É tão bizarro tentar descrever algo como isso, que provavelmente as palavras aqui parecem soltas, porque é assim mesmo que é a experiência: mistura o passado, a casa do pai, o barranco, a nossa senhora, a terra, tudo meio que dançando, puxando, levando, e a consciência se perde nisso a ponto de não haver ego ou eu, ou clara noção do que ocorre por fora das visões. E ao mesmo tempo com aquele sabor familiar da salvia na boca.

Abri os olhos rapidamente, retornei ao “mundo normal”, mas sabia que se fechasse os olhos ainda teria coisas estranhas para ver.

Fechei e vi uma mulher, que produzia pequenas mulherzinhas negras, como bonecas, que saiam e saiam de um círculo. Seria Sally fazendo aquilo? Quem seriam as mulherzinhas negras saindo daquele círculo? De algum jeito ainda estava mais ou menos perto daquele barranco da casa do meu pai. E de algum jeito, do centro do barranco surgia essa produção infinita de mulherzinhas negras.

No meio dessas visões, sempre havia uma estranha — e um pouco desagradável — sensação de estar sendo observado. Talvez porque tenho muitas janelas de vidro aqui, mas tinha a sensação de que alguém poderia estar me observando. Poderia ser um vizinho? A sensação de que a qualquer momento alguém poderia chegar aqui em casa. Uma espécie de preocupação. Não uma grande preocupação, mas um constante sentimento de alerta.

As experiências com Salvia fumada são rápidas. Dez, quinze minutos. E se toda essa loucura surge nessas visões, quando somos devolvidos ao mundo de cá, voltamos com uma lucidez impecável, com as ideias organizadas, com os sentidos apurados. Há quem diga que Salvia faz algum reset neuroquímico. Já li isso em algum lugar. Dizem que pode ter muito potencial para tratar vícios em álcool e coisas assim. Parece que você volta realinhado em algum nível.

A experiência foi à noite, e depois que os efeitos cessaram completamente, fiquei na cama lendo um livro (Mahabaratha) antes de dormir. O sono depois foi tranquilo.


No dia seguinte decidi fazer outra experiência. Era umas 11h da manhã. Dessa vez fiquei na cama ao invés do sofá. Novamente duas tragadas, o cachimbo colocado cuidadosamente em um lugar seguro, e vraaaaaauuuuu! Lá vamos nós sendo puxados outra vez!

Tinha um monte de passarinho cantando nessa hora. As visões se conectaram com isso. E vi pneus de carro cortados ao meio se esticando e fazendo uma ponte de borracha até esses passarinhos. Uma visão estranhamente verde (da grama onde estavam os passarinhos) e preta (dos pneus). Brilhante de algum jeito. Feliz de algum jeito. Tranquila de algum jeito. Um sentimento de alegria, de êxtase. E então percebi um detalhe interessante: o cachimbo com a Salvia estava em frente a um porta retratos onde tem a foto do meu falecido pai. Essa foto está em frente à casa dele, perto do barranco e ao lado de um fusca. De algum jeito fui levado aos elementos básicos dessa foto. A cor avermelhada, o barranco, os pneus do fusca, a própria nossa senhora (em sua casa tinha esse tipo de coisa). Pois então fui levado mais ou menos àquela foto, de um jeito bizarro…

La Pastora nos leva para essas situações estranhas, bizarras, onde coisas sem importância se tornam realmente significativas. E perceber a relação dessas duas experiências com a fotografia ao qual o cachimbo estava exposto por uns dias foi outra dessas curiosidades que me fascinam nessa planta. Em outra experiência do passado lembro de ter visto a louca Pastora varrendo tudo, puxando tudo, com seus infinitos funcionários, e pintando um grande muro de rosa. Tudo rosa. Depois de uma ou duas semanas minha mãe decidiu pintar sua casa de rosa. Essas coincidências bizarras, que relacionam coisas comuns e ordinárias, com assuntos de família, me deixam cada vez mais curioso sobre a verdadeira natureza dessas experiências.

Ela de algum jeito nos manda para o passado, para a infância, mas ao mesmo tempo não trata de coisas significativas como traumas ou coisas emocionais. Nos levam para aqueles elementos insignificantes, secundários. Um pneu de carro, um barranco, a cor de uma parede. Como pode algo assim?

Pois este é mais um relato em meu diário de bordo de mais uma experiência com essa planta incrível, essa deusa, que maneja os detalhes intricados da matéria, que coloca um véu de graça sobre os bastidores da realidade, e que faz o mundo ser como parece ser.

Voltarei mais vezes ao Salviaspace. Quem sabe o que mais posso encontrar por ali?

[2023–09–16]

← Voltar ao índice

Além das Experiências

A importância da integração e da escrita

Meu primeiro contato com as substâncias não veio de amizades duvidosas nem de más influências. Veio da leitura de relatos. Existe um tipo de literatura, pouco conhecida, que narra essas experiências — mas que existe, e é vasta. Entre os grandes nomes que escreveram sobre isso estão Albert Hofmann, o descobridor do LSD, com seu livro LSD, Minha Criança Problema; Terence McKenna, evangelista dos enteógenos, que mesclava relatos de viagens com teorias sobre praticamente tudo; e Aldous Huxley, que descreveu suas experiências com mescalina no ensaio As Portas da Percepção. Além deles, havia centenas de psiconautas anônimos espalhando seus relatos em fóruns obscuros pela internet, e os escritores da geração beatnik, como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, que, nos anos 1950, experimentavam tudo, preparando o terreno para a explosão cultural dos anos 60.

Ler esses relatos me causava o mesmo entusiasmo que uma criança sente ao se aventurar por histórias em quadrinhos ou contos épicos — com a diferença de que os mundos descritos não eram apenas ficção: eram reais, acessíveis, estavam a uma tragada ou a um copo de distância.

Pelo menos era isso que me parecia no começo. Com o tempo, caminhar entre essas experiências deixou de ser apenas a exploração de mundos desconhecidos e se tornou, acima de tudo, um processo de autoconhecimento — não aquele idealizado, de evolução espiritual contínua, mas um autoconhecimento mais bruto, errante, construído ao tropeçar pelas situações.

Escrever e relatar minhas próprias experiências foi uma forma de sentir que eu não era apenas um leitor, mas também um autor — e isso sempre me deu alegria: produzir aquilo que eu mesmo gostava de consumir. Mais do que isso, a escrita me ajudava a refletir, a dar significado aos fatos e a registrar cada etapa da jornada, atribuindo valor a momentos que, de outra forma, poderiam se perder como uma noite qualquer de bebedeira entre amigos.

Sem um esforço consciente de integração, essas viagens podem se apagar como sonhos não lembrados. Para mim, escrever foi o meio mais sólido de integrar as vivências: ao narrá-las, era como recolher fios dispersos e entrelaçá-los em um tecido compreensível, ainda que imperfeito e impreciso.

Cada relato consolidava a experiência — dava-lhe forma, sentido, permanência. Talvez mais do que um registro, a escrita era uma forma de dialogar com as próprias forças que encontrei: agradecer, compreender, seguir adiante, significar.

Professores, aliados e amigos imaginários

Como um ser humano bastante primitivo, sempre me foi natural simbolizar e personificar as qualidades das substâncias como se fossem tipos de pessoas. Por mais que fale em termos de compostos químicos, meu coração se conecta a essas presenças como se fossem seres — tão reais quanto eu ou você.

Os cogumelos se apresentavam como pequenos tricksters: agitados, coloridos, bondosos, engraçados, infantis. Tornavam o mundo divertido e seus ensinamentos pareciam vir diretamente da energia vital que anima os seres. Maria Sabina, a sábia mazateca, já os chamava de los niños, e é assim mesmo que eles se manifestam.

O cacto wachuma (San Pedro), por sua vez, sempre me apareceu como uma presença felina e forte. Não como um felino feminino, mas como um tigre, um jaguar, um leopardo: ágil, astuto, caçador, vigoroso, ensolarado. Tanto os cogumelos quanto os cactos trazem a energia solar em sua essência — um, florescendo com a chuva e o sol; o outro, firmando-se sob o sol todos os dias.

As três mulheres — Ayahuasca, Salvia e Argyréia — vêm de outros lugares.

A Ayahuasca é definitivamente feminina, aguada. Sua luz é aquela que surge em clareiras sombreadas no meio da floresta. Eu gostaria de gostar mais da Ayahuasca, mas sinceramente nossa afinidade nunca foi muito forte. Talvez seja o elemento água que ela carrega: a jibóia sagrada da floresta, sempre distante e silenciosa, permitindo apenas vislumbres breves de sua glória. E eu não sei nadar.

A Argyréia, por sua vez, tem a força e a sabedoria de uma professora misteriosa, daquelas que sabem o que seus alunos pensam. Como uma velha trepadeira, ela sobe por todos os cantos, conectando-se ao sol — e o sol lhe conta tudo o que acontece. Seu elemento é o vento, e é no ar que ela dança e se sustenta.

Já a Salvia é uma louca desvairada, indiferente aos mundos biológicos. Seu elemento são as pedras, o material inorgânico, as telhas & paredes & cadeiras & copos & plástico & pedaços de coisas jogadas. Matéria. Forma. Atrás desse caos aparente, ela é uma verdadeira princesa, a mais linda de todas: senhora de todas as formas que existem e que ainda podem existir. Ela age nos átomos, não nas células. É cósmica, indiferente, gigante. Não diferencia o orgânico do inorgânico. Constrói todos eles com ajuda de seus assistentes agitados.

O peiote? Ele se escondeu de mim. Tivemos a oportunidade de nos encontrar, mas ele preferiu o silêncio.

Cannabis é uma velha rouca. Meio caduca, meio safada. Uma velha bruxa, confusa e engraçada. Suas palavras flutuam e fazem eco. Ela não mente, mas confunde. Às vezes nos torna sensíveis e atentos às tensões e sutilezas corporais que, sem ela, passariam despercebidas. Já foi uma linda princesa; hoje, a sociedade a condena como meretriz.

Kratom é calmo e gentil. Seu abraço é fraterno. Não ensina nada, mas também não exige nada mais que a continuidade de sua amizade. Ele acolhe, acompanha e se mantém presente — como um amigo íntimo, com quem não precisamos trocar palavras para compreender a companhia.

Enfim, fim

Cada substância, cada presença, deixou sua marca.
Cada relato foi uma tentativa de honrar essas marcas — ainda que imperfeita, ainda que parcial.
E enquanto houver palavras, haverá um fio invisível conectando os mundos visitados com o mundo visível que, dia após dia, continuamos a atravessar.